A história do Brasil é feita de personagens controversas, muitas vezes tidas como heróis por alguns e como marginais por outros. Carlos Marighella é uma dessas personagens. Dedicou a sua vida à causa revolucionária comunista, passou a maior parte dela preso ou na clandestinidade.
Ainda na juventude, Marighella descobriu a ideologia comunista, tornou-se um destacado membro do Partido Comunista, abraçando a sua luta. Passou pelo Estado Novo preso nas masmorras, educando os companheiros de cela para que se rebelassem contra a ditadura vigente. A partir de 1945, experimentou por um curto espaço de tempo a democracia no Brasil, vendo inclusive a legalização do PCB, por onde se elegeu deputado, mostrando-se um grande articulador político.
Com a extinção da legalidade do PCB, Marighella teve os seus direitos parlamentares cassados. Passou a exercer a sua influência nos bastidores da política. Escreveu discursos para vários políticos, desde João Goulart ao traiçoeiro cabo Anselmo.
Com o golpe de estado militar, em 1964, Carlos Marighella viu uma nova ditadura florir no Brasil. Mais uma vez conheceu o ostracismo da clandestinidade. Passou a exercer uma grande resistência ao regime da caserna. Defendia que para derrotar a ditadura militar, só mesmo pegando em armas e provocando um estado revolucionário, incitado por guerrilhas. Sua posição ia contra o PCB, que adotara uma linha mais moderada, ditada por Moscou. Marighella ousou a ir contra o partido pelo qual dedicara toda a sua juventude. Desligou-se da sua direção central e terminou por ser expulso. Após a saída do PCB, fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), movimento de esquerda que radicalizou a luta contra o governo militar. De armas em punho, Carlos Marighella promoveu, através da ALN, assaltos a bancos, guerrilhas urbanas e o famoso seqüestro ao embaixador norte-americano Charles Elbrick, realizado em associação com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).
Em 1969, Carlos Marighella foi declarado pelo regime militar o inimigo número um do Brasil. Sua cabeça foi posta a prêmio, tendo cartazes com sua imagem espalhados por todo o país. A derrota da ditadura diante da bem-sucedida ação de seqüestro, fez com que ela endurecesse ainda mais. Iniciou-se uma caça implacável a Carlos Marighella, que só encerrou com a sua execução em 4 de novembro de 1969. Naquele dia, o líder da guerrilha foi atraído para um ponto da alameda Casa Branca, em São Paulo; ao chegar, foi recebido a tiros, sem possibilidades de defesa. Os militares eliminavam o seu maior inimigo. Morria um dos homens mais inteligentes da resistência e militância comunista no Brasil. Marighella é hoje um nome que atrai a curiosidade e o respeito dos brasileiros. Por muitos é visto como um herói revolucionário, por outros como um terrorista de esquerda. Sua importância na história recente do país vem sendo cada vez mais analisada, ganhando mais admiradores do que críticos. Marighella tornou-se uma figura mítica, retrato de uma época que se tentou apagar ou amenizar, de um Brasil que pegou em armas e em nome das ideologias, fez o sangue jorrar.
A Primeira Prisão
A história de Carlos Marighella confunde-se com o período das grandes ditaduras do governo republicano, a do Estado Novo (1937 – 1945) e a militar (1964 – 1985). Nascido na segunda década do século XX, em 5 de dezembro de 1911, em Salvador, Bahia; Carlos Marighella era filho de um imigrante italiano, Augusto Marighella, um operário dono de uma oficina mecânica, e da baiana Maria Rita do Nascimento, negra filha de escravos haussás. Era um dos sete filhos do casal. A mistura de raças refletia na sua pele mulata, nos olhos verdes, cabelos aloirados, e na singularidade da raça brasileira.
A origem humilde definiu o caráter de Marighella. Era visto como um homem alegre, inteligente e de sensível percepção social, que gostava de fazer versos, revelando-se um poeta surpreendente. Na época da sua adolescência, o Brasil passava por um progresso lento, quase letárgico, vivendo a decadência das oligarquias da República Velha, os movimentos tenentistas, a fundação do Partido Comunista em 1922, a Coluna Prestes. Um Brasil sufocado que insistia em sair das garras de uma elite secular.
Aluno brilhante, estudou no Ginásio da Bahia. No quinto ano, em 1929, respondeu a uma dissertação de Física, sobre espelhos, em versos. Aos dezoito anos, Carlos Marighella, passou a freqüentar o curso de engenharia na Escola Politécnica da Bahia. A queda da Bolsa de Nova York atingia ao Brasil, levando à falência vários senhores da oligarquia sustentada pelo café. A crise mundial contribuiu para o fim da República Velha, culminando na Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas à presidência. O jovem Marighella entrava em contacto com o PCB, ingressando na Juventude Comunista, em 1932. Revela-se um arrebatado militante, deixando-se seduzir pelas manifestações contra o regime do governador da Bahia, Juracy Magalhães, então nomeado para o cargo por Getúlio Vargas, em 1931, intitulando-se como interventor. Marighella compõe versos que ridicularizam o interventor, enfurecendo-o a ponto de ordenar que prenda e espanque o jovem. Seria a primeira prisão da vida de Marighella. Após ter sido libertado, continuou com firmeza na militância política. Deixaria, em 1932, o curso de engenharia e seguiria para São Paulo.
Os Comunistas e a Ditadura do Estado Novo
Na primeira metade da década de 1930, Luiz Carlos Prestes tornou-se um grande líder dos comunistas brasileiros. Passou alguns anos na União Soviética sendo treinado, voltando ao país com a intenção de promover um movimento revolucionário. Em 1935, um grande levante programado para atingir todo o país, foi violentamente reprimido pela polícia secreta do governo Vargas. O levante ficou conhecido como a Intentona Comunista, levando as maiores lideranças do PCB à prisão, entre eles o próprio Prestes e a mulher, Olga Benário. Com a prisão dos seus líderes, o PCB sofreu um duro golpe em suas fileiras. Carlos Marighella foi designado pela direção a vir para São Paulo, com a finalidade de reorganizar as células do partido e combater a cisão trotskista interna. Mas cai nas malhas da repressão da polícia política liderada por Filinto Muller na perseguição aos comunistas. No dia 1 de maio de 1936, Carlos Marighella é preso, sendo torturado durante vinte e três dias, tendo as solas dos pés queimadas por maçarico, as unhas separadas da pele por finos estiletes nelas enfiadas. A sua resistência às torturas, sem dizer uma palavra, atraiu até a admiração dos seus algozes, o delegado Romano, diretor do DOPS carioca em 1936, afirmava: “Só existe um macho no Partido Comunista, é esse baiano Marighella”. Só seria libertado em 1937, através da anistia assinada pelo ministro Macedo Soares. Naquele ano, Getúlio Vargas, no poder desde 1930, consolidava a sua ditadura, criando o Estado Novo, inaugurando um dos momentos de maior repressão da história da República no Brasil.
Após a libertação, Marighella foi designado pelo PCB a ir para São Paulo, tendo como missão principal combater a eterna dissidência interna que sofria o partido. A liberdade durou pouco. Em 1939, sob a truculência cada vez maior do Estado Novo, foi preso e confinado em Fernando de Noronha. Na prisão, os presos revolucionários criaram uma espécie de universidade popular, cabendo a Marighella dar aulas de filosofia e matemática. Provocada pela Segunda Guerra Mundial, a prisão em Fernando de Noronha foi extinta em 1942, quando a ilha passou a ser usada como base de apoio às operações militares dos aliados no Atlântico Sul. Os presos foram transferidos para a Ilha Grande, no litoral fluminense.
Mesmo sob a mão pesada da repressão do governo ditatorial de Getúlio Vargas, o PCB passou a apoiá-lo em razão da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Marighella era contra a posição do partido, mas a acatou em nome da militância. Em 1943, mesmo nas masmorras da Ilha Grande, ele foi eleito para o Comitê Central do partido, na Conferência da Mantiqueira. Marighella e outros líderes comunistas, como Luiz Carlos Prestes, só seriam libertados com a anistia decretada em abril de 1945. Terminava naquele ano a Segunda Guerra Mundial, e também a ditadura do Estado Novo, com o fim do governo de quinze anos de Getúlio Vargas.
O Brasil Adere à Guerra Fria
Com o fim da ditadura, em 1945, o Brasil entraria em um período de curta primavera democrática. Pela primeira e única vez desde a sua fundação, em 1922, o PCB é legalizado, tornando-se uma força nacional, visível e elegível. Uma nova Constituinte é elaborada e o partido participa da sua elaboração. Carlos Marighella foi eleito deputado federal constituinte pelo estado da Bahia, com uma ampla votação. Ele participaria ativamente como um dos redatores da nova Constituinte, promulgada em 1946.
Em 1946 Marighella conheceria Clara Charf, aquela que futuramente seria a sua esposa e companheira pelo resto da vida. Viveria, entretanto, uma relação amorosa com Elza Sento Sé, durante 1947, romance que resultaria no nascimento do seu filho Carlos Augusto, em maio de 1948.
O tempo que Marighella hauriu a liberdade física e política, duraria pouco. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma nova guerra começava a desenhar-se no cenário mundial, a Guerra Fria, promovida pelas potências aliadas vencedoras, de um lado os capitalistas liderados pelos Estados Unidos, do outro os comunistas, liderados pela União Soviética. Entre 15 de agosto e 2 de setembro de 1947, realizou-se em Petrópolis, Rio de Janeiro, a Conferência Interamericana de Manutenção da Paz e Segurança, na qual participou Eva Perón, mulher do presidente da Argentina Juan Domingo Perón. Na conferência foi assinado o Tratado da Assistência Recíproca, que permitia aos Estados Unidos intervir onde quer que a paz e a segurança estivessem ameaçadas. Na conferência, a expansão da ideologia soviética pela Europa foi apontada como a grande ameaça ao mundo. Assinando o tratado, o Brasil participava da gestação da Guerra Fria, escolhendo o seu lado.
As conseqüências logo vieram. A União da Juventude Comunista foi a primeira a ser fechada. Em outubro de 1947, o Brasil rompeu as relações diplomáticas com a União Soviética. No início de 1948, o PCB foi posto novamente na clandestinidade, sendo cassados os mandatos dos deputados, senadores e vereadores eleitos pela legenda. Como deputado, Carlos Marighella proferiu, em menos de dois anos de mandato, cerca de duzentos discursos, ficando conhecido como um combatente parlamentar, denunciando sempre as precárias condições de vida do brasileiro e a sua miséria contemporânea, promovendo intensamente as lutas sindicais e agrárias no país. Tornou-se um político respeitado até mesmo por seus inimigos.
Cassado o deputado, extinto o PCB, restava o militante clandestino, o homem, que naquele ano iniciaria um romance com Clara Charf, companheira de vida e de luta, que permaneceria ao seu lado até a sua morte.
A Ditadura Militar e as Organizações de Guerrilhas
O período que decorreu entre a cassação parlamentar e a instauração da ditadura militar, fez Marighella redigir vários textos de reflexão sobre a questão agrária no Brasil. Viajou pela China e pela União Soviética. Através das viagens, observava de perto as experiências dos países que aderiram aos regimes revolucionários.
Com a morte de Stálin, a União Soviética adotou uma política revisionista, expandindo-a aos partidos comunistas de todo o mundo. Em 1956, foi divulgado o Relatório Kruschev, denunciando os crimes de Stálin. Marighella, um stalinista histórico, passou um mês sem dormir, chorando na cama como uma criança. A nova linha seguida por Moscou, era considerada demasiadamente branda e conciliadora para que se instaurasse um clima revolucionário. A questão gerou uma crise dentro do PCB, que culminaria com a mudança de nome na legenda, passando de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista Brasileiro. Uma cisão no partido, em 1962, gerou o PC do B, que assumiu o antigo nome do partido.
A linha reformista do PCB contribuiu para que fizesse uma avaliação errônea do golpe militar de 1964. Os militares já marchavam nas estradas e ruas do país, e o Comitê Central do partido insistia que não ofereciam perigo, que não havia clima para um golpe no Brasil. Um erro de avaliação política fatal.
Após o golpe, Luiz Carlos Prestes foi um dos primeiros a perder qualquer direito político. Carlos Marighella foi acossado pela polícia política do novo regime, em um cinema do bairro carioca da Tijuca, em 9 de maio de 1964. Resistiu à prisão, levou três tiros no peito, foi carregado no meio do público até a rua. Já dentro do carro da polícia, ferido, ainda acertou com socos os inimigos, sendo finalmente vencido pelos golpes físicos desferidos por seus algozes. Sua prisão causou repercussão nacional, sua resistência foi transformada em um ato de coragem contra as novas forças políticas instauradas. Após oitenta dias de prisão, foi solto através de hábeas corpus pedido pelo mítico advogado Sobral Pinto.
A falta de visão do PCB diante do golpe militar, a linha reformista que insistia em seguir, divergências entre lideranças, a perseguição do regime, fizeram com que o partido enfraquecesse e fragmentasse, surgindo várias organizações de esquerda. Carlos Marighella passou a criticar abertamente a linha seguida pelo PCB, defendendo a luta armada contra a ditadura. As divergências tornaram-se claras, quando na Conferência Estadual de São Paulo, em 1967, as idéias de Marighella, em oposição às de Luiz Carlos Prestes, saíram vitoriosas. Prestes passou a intervir nos estados brasileiros, para evitar que delegados ligados a Marighella saíssem vitoriosos no VI Congresso.
A crise entre Marighella e o PCB tornou-se aguda quando ele viajou para Cuba, para participar da conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS). O PCB enviou um telegrama ao militante, desautorizando-o a participar do evento, ameaçando-o de expulsão. Marighella respondeu que um comunista não precisa de autorização para participar de atos revolucionários, rompendo oficialmente com o Comitê Central. Em represália, o PCB concretizou a sua expulsão.
Longe do PCB, partido no qual militara toda a sua vida, Marighella fundou, em julho de 1968, a Ação Nacional Libertadora (ALN). Através da ALN, promove e dá início à luta armada no Brasil. As ações surpreendem e irritam ao governo. Assaltos a bancos e supermercados possibilitam a arrecadação de fundos para a sobrevivência da organização. Armas são saqueadas dos quartéis. Em setembro de 1969, a ALN e o MR-8 realizavam em conjunto, o mais audacioso dos seus planos, o seqüestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. O ato expõe internacionalmente a prática de tortura, até então veementemente negada pelo regime, cria uma situação diplomática desconfortável com o governo da Casa Branca, culminando com a troca de presos políticos pela vida do embaixador. A ação foi a maior vitória dos guerrilheiros revolucionários contra a ditadura dos militares.
A humilhação acirrou o endurecimento da ditadura, deflagrando uma grande operação para prender Carlos Marighella e os seus companheiros, considerados como terroristas. O líder da ALN passou a ser considerado como inimigo público número um, com cartazes de “Procura” espalhados por todo o país. Um ato institucional introduziu a prisão perpétua e a pena de morte para quem praticasse atos terroristas. Estava aberta a caça a Marighella, vivo ou morto.
Prelúdio da Emboscada Final
No último ano de vida de Carlos Marighella, o seu nome apareceu constantemente na imprensa nacional. Chegou a ser capa da revista Veja, na edição número 11, de 20 de novembro de 1968, voltando várias vezes às suas páginas durante 1969. Marighella causava nas pessoas medo pelos seus atos de violência e de guerrilha, e ao mesmo tempo, uma certa admiração aos que se opunham às truculências da ditadura. A imprensa descrevia-o de forma imparcial, fazendo dele uma figura cruel, e ao mesmo tempo romântica, numa época sangrenta e de radicalização da esquerda agonizante e da direita especializada na arte da tortura e do assassínio.
Por outro lado, Marighella apostava intensamente na deflagração da guerrilha rural. Planejava deixar São Paulo e o perímetro urbano, mudando-se para o meio rural. Tinha a viagem programada para 9 de novembro de 1969. Os seus planos vazaram, e os militares tinham pressa em capturá-lo e eliminá-lo de vez.
Em 1969, a “Veja” número 59, de 22 de outubro, três edições antes de trazer na capa um Marighella fuzilado e morto, apontava para um possível fim dos atos terroristas no Brasil, sugerindo explicitamente que o líder da ALN estaria em São Paulo, e que todas as saídas para Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, litoral e oeste paulistas estavam vigiados, e que não havia como o líder guerrilheiro fugir sem ser morto. O cerco e a morte estavam anunciados.
Sob tortura, o militante da ALN Paulo de Tarso Venceslau, revelou uma importante pista à polícia do regime, a de que Marighella tinha uma ligação com membros da ordem religiosa dos dominicanos.
Ao investigar a pista, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, considerado o maior carniceiro dos porões da ditadura, descobriu que era verdadeira. Os dominicanos Fernando, Betto, Ivo, Ratton, Oswaldo, Tito e Magno colaboravam com algumas organizações ligadas às guerrilhas urbanas, escondiam perseguidos, ajudavam a que atravessassem as fronteiras no sul do país ou que se deslocassem para outras cidades. Os dominicanos passaram a ser alvo de intensas investigações.
No primeiro fim de semana de novembro de 1969, Frei Fernando seguiu para o Rio de Janeiro, para encontrar Sinval de Itacaramby Leão, da Editora Vozes, para acertar uma publicação. Fernando trabalhava na Livraria Duas Cidades, em São Paulo. Na viagem, foi acompanhado por Frei Ivo, que aproveitaria para visitar a família. No domingo, 2 de novembro, foram presos no Catete, pela equipe de Fleury, levados para o Cenimar (Centro de Informações da Marinha), e submetidos a torturas durante horas consecutivas. Frei Fernando sucumbiu às torturas, revelando a senha que possibilitaria um encontro com Marighella.
Transferido para a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, Fernando teve a permissão para um banho e para fazer a barba. No dia 4 de novembro foi levado para a Livraria Duas Cidades, para que trabalhasse sob vigilância. Por volta das 16h00 recebeu um telefonema cifrado: “Ernesto pediu que vocês o encontrem na gráfica hoje, às 20h00.” Fernando respondeu: “Sim”.
A voz era de Antonio Flávio Médici de Camargo, contato de Marighella. “Ernesto” era a senha. O telefonema estava sob escuta. Imediatamente foi montado um esquema de emboscada para que se efetuasse a prisão de Marighella. Horas depois, Fernando e Ivo foram obrigados a participarem da emboscada, sendo postos no fusca azul que costumavam usar para os encontros com o líder da ALN. Escoltados, seguiram para o bairro dos Jardins, no centro de São Paulo.
Emboscada e Morte
Por volta das 18h30, começava a ser armada a emboscada na Alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins. Coordenada por Rubens Cardoso de Mello Tucunduva e executada pelo delegado Sérgio Fleury. Cinco veículos trouxeram os policiais que participariam da operação. Em um dos carros estava Fleury e duas investigadoras, dois outros automóveis foram distribuídos no cruzamento das alamedas Casa Branca e Lorena, servindo de cobertura; um carro foi posto na esquina da rua Tatuí, outro em um estacionamento da Alameda Casa Branca. O número de policiais envolvidos na emboscada diverge nos relatos, uns apontam para 29 homens, outros para exatos 45 e mais o cão Átila.
A noite parecia tranqüila, era uma terça-feira, 4 de novembro de 1969. Poucos minutos antes das 20h00, o militante Jeová de Assis Gomes deixou Carlos Marighella e Luís José Cunha, o Gaúcho, na esquina da rua Oscar Freire com a Alameda Casa Branca. Marighella ficou à espera que Gaúcho fizesse o reconhecimento do local e atestasse a sua segurança. Gaúcho caminhou lentamente pela Casa Branca, observando todos os detalhes e possíveis perigos. Viu um dos carros ocupados por Fleury, um investigador e duas investigadoras, que simulavam um encontro de inocentes namorados. Chegou a um ponto onde estavam policiais disfarçados de operários, a simularem a entrega de material numa construção. Avistou o fusca com Frei Fernando e Frei Ivo dentro. Tranqüilizou-se, indo ao encontro de Marighella, apontou o polegar para cima, em sinal de que estava tudo sobre controle. O líder guerrilheiro começou a atravessar a alameda, rumo ao carro dos frades. Naquele momento, ignorava que 23 dominicanos tinham sido presos, entre eles Frei Fernando e Frei Ivo. Imprudentemente, ele caminhou sozinho e confiante até o carro dos frades, trajando um terno claro, camisa branca de riscas azuis, tendo apenas uma peruca de cabelos castanhos como disfarce. De repente, tiros começaram a soar de todas as direções. Cinco minutos depois, o temido guerrilheiro estava morto.
A versão oficial dos detalhes da emboscada, dizia que Sérgio Fleury deu ordem para que Marighella se rendesse, mas ele não obedeceu. A polícia afirmava que entrou em confronto com cerca de treze homens da segurança de Marighella, o que gerou o tiroteio que mataria além do guerrilheiro, a investigadora Estela Borges, que se fazia de namorada de Fleury, e, o alemão Friedrich Adolf Rohmann, um protético de 54 anos, que passava pelo local, dirigindo um Buick preto. Feriria ainda Tucunduva na perna, fazendo-o passar por doze cirurgias.
Na versão oficial, divulgada pela revista “Veja”, dois tiros teriam atingido o rosto de Carlos Marighella, um outro no ventre, e o que lhe causara a morte, na perna, perfurando a artéria femoral, provocando intensa hemorragia seguida de morte. Ele teria sido morto dentro do fusca dos frades dominicanos. A imagem de Marighella morto dentro do fusca, estampada na capa da revista, ficaria famosa. Marighella não teve tempo de usar a arma que trazia, ela estava intacta, dentro da capanga, que continha ao lado uma escova de dente, um aparelho de barbear e duas cápsulas de cianureto, que deveria engolir caso fosse capturado.
O laudo cadavérico foi feito pelo legista Harry Shibata, famoso por assinar falsos atestados de óbitos de militantes mortos por tortura. Este laudo foi cuidadosamente analisado pelo médico legista Nelson Massini, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Massini analisou também dezessete fotografias dos arquivos, tiradas da emboscada. Concluiu que Marighella não foi morto dentro do fusca, nas fotos a camisa dele está levantada e a calça um pouco abaixada, o que sugere que foi arrastado pelos braços. Também as balas encontradas no corpo não coincidem com as marcas encontradas no fusca. O ângulo da perfuração, segundo Massini, torna impossível que o tiro final tenha sido dado dentro do veículo. Na sua análise, Marighella recebeu quatro tiros, um nas nádegas, outro na região pélvica, um de raspão no queixo e o quarto, à queima-roupa, que lhe perfurou a aorta e o pulmão, provocando a hemorragia interna que o matou. O tiro de misericórdia foi desferido ainda com Marighella vivo, que tentou, intuitivamente defender-se segurando a arma do seu algoz, fazendo com que a bala que o matou, dilacerasse um dos seus dedos da mão esquerda. O tiro fatal foi feito de uma curta distância. Depois de morto, o seu corpo foi carregado para dentro do fusca, deixado em estranha posição.
O tiroteio que a polícia alegou ocorreu entre ela mesma, e não contra os seguidores de Marighella, visto que em um confronto entre supostos treze militantes e quarenta policiais, não tombou um guerrilheiro. Carlos Marighella morreria executado sem nenhuma possibilidade de defesa. Sua morte já tinha sido determinada nos bastidores da ditadura. Após a autópsia realizada em sigilo, foi enterrado em uma cova rasa, no cemitério de Vila Formosa, São Paulo. Seu corpo foi escoltado por duas viaturas do DOPS, além de quinze agentes armados de metralhadoras, impedindo que alguém se aproximasse.
Dez anos depois, em dezembro de 1979, o corpo foi trasladado para o cemitério das Quintas dos Lázaros, em Salvador. Foi proferido um discurso em sua homenagem, escrito por Jorge Amado. Seu túmulo foi projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. No local da execução de Marighella, no número 822 da Alameda Casa Branca, foi posta uma placa em sua homenagem, com nome e data. Em 1996, o Estado reconheceu a sua responsabilidade na execução de Marighella, e a sua mulher, Clara Charf, teve direito a indenização, em 2008.
Quatro décadas após a morte de Carlos Marighella, ele continua a ser uma personagem enigmática da história brasileira. Poeta, revolucionário, político, guerrilheiro, inteligente, violento, sua mítica fascina muitos e traz repugnância a outros. Aclamado assassino e terrorista pelas autoridades, e, herói da resistência à ditadura pela população, Marighella continuará a ser um enigma, que se decifrado, revelará uma face ainda obscura do Brasil recente.
Ainda na juventude, Marighella descobriu a ideologia comunista, tornou-se um destacado membro do Partido Comunista, abraçando a sua luta. Passou pelo Estado Novo preso nas masmorras, educando os companheiros de cela para que se rebelassem contra a ditadura vigente. A partir de 1945, experimentou por um curto espaço de tempo a democracia no Brasil, vendo inclusive a legalização do PCB, por onde se elegeu deputado, mostrando-se um grande articulador político.
Com a extinção da legalidade do PCB, Marighella teve os seus direitos parlamentares cassados. Passou a exercer a sua influência nos bastidores da política. Escreveu discursos para vários políticos, desde João Goulart ao traiçoeiro cabo Anselmo.
Com o golpe de estado militar, em 1964, Carlos Marighella viu uma nova ditadura florir no Brasil. Mais uma vez conheceu o ostracismo da clandestinidade. Passou a exercer uma grande resistência ao regime da caserna. Defendia que para derrotar a ditadura militar, só mesmo pegando em armas e provocando um estado revolucionário, incitado por guerrilhas. Sua posição ia contra o PCB, que adotara uma linha mais moderada, ditada por Moscou. Marighella ousou a ir contra o partido pelo qual dedicara toda a sua juventude. Desligou-se da sua direção central e terminou por ser expulso. Após a saída do PCB, fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), movimento de esquerda que radicalizou a luta contra o governo militar. De armas em punho, Carlos Marighella promoveu, através da ALN, assaltos a bancos, guerrilhas urbanas e o famoso seqüestro ao embaixador norte-americano Charles Elbrick, realizado em associação com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).
Em 1969, Carlos Marighella foi declarado pelo regime militar o inimigo número um do Brasil. Sua cabeça foi posta a prêmio, tendo cartazes com sua imagem espalhados por todo o país. A derrota da ditadura diante da bem-sucedida ação de seqüestro, fez com que ela endurecesse ainda mais. Iniciou-se uma caça implacável a Carlos Marighella, que só encerrou com a sua execução em 4 de novembro de 1969. Naquele dia, o líder da guerrilha foi atraído para um ponto da alameda Casa Branca, em São Paulo; ao chegar, foi recebido a tiros, sem possibilidades de defesa. Os militares eliminavam o seu maior inimigo. Morria um dos homens mais inteligentes da resistência e militância comunista no Brasil. Marighella é hoje um nome que atrai a curiosidade e o respeito dos brasileiros. Por muitos é visto como um herói revolucionário, por outros como um terrorista de esquerda. Sua importância na história recente do país vem sendo cada vez mais analisada, ganhando mais admiradores do que críticos. Marighella tornou-se uma figura mítica, retrato de uma época que se tentou apagar ou amenizar, de um Brasil que pegou em armas e em nome das ideologias, fez o sangue jorrar.
A Primeira Prisão
A história de Carlos Marighella confunde-se com o período das grandes ditaduras do governo republicano, a do Estado Novo (1937 – 1945) e a militar (1964 – 1985). Nascido na segunda década do século XX, em 5 de dezembro de 1911, em Salvador, Bahia; Carlos Marighella era filho de um imigrante italiano, Augusto Marighella, um operário dono de uma oficina mecânica, e da baiana Maria Rita do Nascimento, negra filha de escravos haussás. Era um dos sete filhos do casal. A mistura de raças refletia na sua pele mulata, nos olhos verdes, cabelos aloirados, e na singularidade da raça brasileira.
A origem humilde definiu o caráter de Marighella. Era visto como um homem alegre, inteligente e de sensível percepção social, que gostava de fazer versos, revelando-se um poeta surpreendente. Na época da sua adolescência, o Brasil passava por um progresso lento, quase letárgico, vivendo a decadência das oligarquias da República Velha, os movimentos tenentistas, a fundação do Partido Comunista em 1922, a Coluna Prestes. Um Brasil sufocado que insistia em sair das garras de uma elite secular.
Aluno brilhante, estudou no Ginásio da Bahia. No quinto ano, em 1929, respondeu a uma dissertação de Física, sobre espelhos, em versos. Aos dezoito anos, Carlos Marighella, passou a freqüentar o curso de engenharia na Escola Politécnica da Bahia. A queda da Bolsa de Nova York atingia ao Brasil, levando à falência vários senhores da oligarquia sustentada pelo café. A crise mundial contribuiu para o fim da República Velha, culminando na Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas à presidência. O jovem Marighella entrava em contacto com o PCB, ingressando na Juventude Comunista, em 1932. Revela-se um arrebatado militante, deixando-se seduzir pelas manifestações contra o regime do governador da Bahia, Juracy Magalhães, então nomeado para o cargo por Getúlio Vargas, em 1931, intitulando-se como interventor. Marighella compõe versos que ridicularizam o interventor, enfurecendo-o a ponto de ordenar que prenda e espanque o jovem. Seria a primeira prisão da vida de Marighella. Após ter sido libertado, continuou com firmeza na militância política. Deixaria, em 1932, o curso de engenharia e seguiria para São Paulo.
Os Comunistas e a Ditadura do Estado Novo
Na primeira metade da década de 1930, Luiz Carlos Prestes tornou-se um grande líder dos comunistas brasileiros. Passou alguns anos na União Soviética sendo treinado, voltando ao país com a intenção de promover um movimento revolucionário. Em 1935, um grande levante programado para atingir todo o país, foi violentamente reprimido pela polícia secreta do governo Vargas. O levante ficou conhecido como a Intentona Comunista, levando as maiores lideranças do PCB à prisão, entre eles o próprio Prestes e a mulher, Olga Benário. Com a prisão dos seus líderes, o PCB sofreu um duro golpe em suas fileiras. Carlos Marighella foi designado pela direção a vir para São Paulo, com a finalidade de reorganizar as células do partido e combater a cisão trotskista interna. Mas cai nas malhas da repressão da polícia política liderada por Filinto Muller na perseguição aos comunistas. No dia 1 de maio de 1936, Carlos Marighella é preso, sendo torturado durante vinte e três dias, tendo as solas dos pés queimadas por maçarico, as unhas separadas da pele por finos estiletes nelas enfiadas. A sua resistência às torturas, sem dizer uma palavra, atraiu até a admiração dos seus algozes, o delegado Romano, diretor do DOPS carioca em 1936, afirmava: “Só existe um macho no Partido Comunista, é esse baiano Marighella”. Só seria libertado em 1937, através da anistia assinada pelo ministro Macedo Soares. Naquele ano, Getúlio Vargas, no poder desde 1930, consolidava a sua ditadura, criando o Estado Novo, inaugurando um dos momentos de maior repressão da história da República no Brasil.
Após a libertação, Marighella foi designado pelo PCB a ir para São Paulo, tendo como missão principal combater a eterna dissidência interna que sofria o partido. A liberdade durou pouco. Em 1939, sob a truculência cada vez maior do Estado Novo, foi preso e confinado em Fernando de Noronha. Na prisão, os presos revolucionários criaram uma espécie de universidade popular, cabendo a Marighella dar aulas de filosofia e matemática. Provocada pela Segunda Guerra Mundial, a prisão em Fernando de Noronha foi extinta em 1942, quando a ilha passou a ser usada como base de apoio às operações militares dos aliados no Atlântico Sul. Os presos foram transferidos para a Ilha Grande, no litoral fluminense.
Mesmo sob a mão pesada da repressão do governo ditatorial de Getúlio Vargas, o PCB passou a apoiá-lo em razão da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Marighella era contra a posição do partido, mas a acatou em nome da militância. Em 1943, mesmo nas masmorras da Ilha Grande, ele foi eleito para o Comitê Central do partido, na Conferência da Mantiqueira. Marighella e outros líderes comunistas, como Luiz Carlos Prestes, só seriam libertados com a anistia decretada em abril de 1945. Terminava naquele ano a Segunda Guerra Mundial, e também a ditadura do Estado Novo, com o fim do governo de quinze anos de Getúlio Vargas.
O Brasil Adere à Guerra Fria
Com o fim da ditadura, em 1945, o Brasil entraria em um período de curta primavera democrática. Pela primeira e única vez desde a sua fundação, em 1922, o PCB é legalizado, tornando-se uma força nacional, visível e elegível. Uma nova Constituinte é elaborada e o partido participa da sua elaboração. Carlos Marighella foi eleito deputado federal constituinte pelo estado da Bahia, com uma ampla votação. Ele participaria ativamente como um dos redatores da nova Constituinte, promulgada em 1946.
Em 1946 Marighella conheceria Clara Charf, aquela que futuramente seria a sua esposa e companheira pelo resto da vida. Viveria, entretanto, uma relação amorosa com Elza Sento Sé, durante 1947, romance que resultaria no nascimento do seu filho Carlos Augusto, em maio de 1948.
O tempo que Marighella hauriu a liberdade física e política, duraria pouco. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma nova guerra começava a desenhar-se no cenário mundial, a Guerra Fria, promovida pelas potências aliadas vencedoras, de um lado os capitalistas liderados pelos Estados Unidos, do outro os comunistas, liderados pela União Soviética. Entre 15 de agosto e 2 de setembro de 1947, realizou-se em Petrópolis, Rio de Janeiro, a Conferência Interamericana de Manutenção da Paz e Segurança, na qual participou Eva Perón, mulher do presidente da Argentina Juan Domingo Perón. Na conferência foi assinado o Tratado da Assistência Recíproca, que permitia aos Estados Unidos intervir onde quer que a paz e a segurança estivessem ameaçadas. Na conferência, a expansão da ideologia soviética pela Europa foi apontada como a grande ameaça ao mundo. Assinando o tratado, o Brasil participava da gestação da Guerra Fria, escolhendo o seu lado.
As conseqüências logo vieram. A União da Juventude Comunista foi a primeira a ser fechada. Em outubro de 1947, o Brasil rompeu as relações diplomáticas com a União Soviética. No início de 1948, o PCB foi posto novamente na clandestinidade, sendo cassados os mandatos dos deputados, senadores e vereadores eleitos pela legenda. Como deputado, Carlos Marighella proferiu, em menos de dois anos de mandato, cerca de duzentos discursos, ficando conhecido como um combatente parlamentar, denunciando sempre as precárias condições de vida do brasileiro e a sua miséria contemporânea, promovendo intensamente as lutas sindicais e agrárias no país. Tornou-se um político respeitado até mesmo por seus inimigos.
Cassado o deputado, extinto o PCB, restava o militante clandestino, o homem, que naquele ano iniciaria um romance com Clara Charf, companheira de vida e de luta, que permaneceria ao seu lado até a sua morte.
A Ditadura Militar e as Organizações de Guerrilhas
O período que decorreu entre a cassação parlamentar e a instauração da ditadura militar, fez Marighella redigir vários textos de reflexão sobre a questão agrária no Brasil. Viajou pela China e pela União Soviética. Através das viagens, observava de perto as experiências dos países que aderiram aos regimes revolucionários.
Com a morte de Stálin, a União Soviética adotou uma política revisionista, expandindo-a aos partidos comunistas de todo o mundo. Em 1956, foi divulgado o Relatório Kruschev, denunciando os crimes de Stálin. Marighella, um stalinista histórico, passou um mês sem dormir, chorando na cama como uma criança. A nova linha seguida por Moscou, era considerada demasiadamente branda e conciliadora para que se instaurasse um clima revolucionário. A questão gerou uma crise dentro do PCB, que culminaria com a mudança de nome na legenda, passando de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista Brasileiro. Uma cisão no partido, em 1962, gerou o PC do B, que assumiu o antigo nome do partido.
A linha reformista do PCB contribuiu para que fizesse uma avaliação errônea do golpe militar de 1964. Os militares já marchavam nas estradas e ruas do país, e o Comitê Central do partido insistia que não ofereciam perigo, que não havia clima para um golpe no Brasil. Um erro de avaliação política fatal.
Após o golpe, Luiz Carlos Prestes foi um dos primeiros a perder qualquer direito político. Carlos Marighella foi acossado pela polícia política do novo regime, em um cinema do bairro carioca da Tijuca, em 9 de maio de 1964. Resistiu à prisão, levou três tiros no peito, foi carregado no meio do público até a rua. Já dentro do carro da polícia, ferido, ainda acertou com socos os inimigos, sendo finalmente vencido pelos golpes físicos desferidos por seus algozes. Sua prisão causou repercussão nacional, sua resistência foi transformada em um ato de coragem contra as novas forças políticas instauradas. Após oitenta dias de prisão, foi solto através de hábeas corpus pedido pelo mítico advogado Sobral Pinto.
A falta de visão do PCB diante do golpe militar, a linha reformista que insistia em seguir, divergências entre lideranças, a perseguição do regime, fizeram com que o partido enfraquecesse e fragmentasse, surgindo várias organizações de esquerda. Carlos Marighella passou a criticar abertamente a linha seguida pelo PCB, defendendo a luta armada contra a ditadura. As divergências tornaram-se claras, quando na Conferência Estadual de São Paulo, em 1967, as idéias de Marighella, em oposição às de Luiz Carlos Prestes, saíram vitoriosas. Prestes passou a intervir nos estados brasileiros, para evitar que delegados ligados a Marighella saíssem vitoriosos no VI Congresso.
A crise entre Marighella e o PCB tornou-se aguda quando ele viajou para Cuba, para participar da conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS). O PCB enviou um telegrama ao militante, desautorizando-o a participar do evento, ameaçando-o de expulsão. Marighella respondeu que um comunista não precisa de autorização para participar de atos revolucionários, rompendo oficialmente com o Comitê Central. Em represália, o PCB concretizou a sua expulsão.
Longe do PCB, partido no qual militara toda a sua vida, Marighella fundou, em julho de 1968, a Ação Nacional Libertadora (ALN). Através da ALN, promove e dá início à luta armada no Brasil. As ações surpreendem e irritam ao governo. Assaltos a bancos e supermercados possibilitam a arrecadação de fundos para a sobrevivência da organização. Armas são saqueadas dos quartéis. Em setembro de 1969, a ALN e o MR-8 realizavam em conjunto, o mais audacioso dos seus planos, o seqüestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. O ato expõe internacionalmente a prática de tortura, até então veementemente negada pelo regime, cria uma situação diplomática desconfortável com o governo da Casa Branca, culminando com a troca de presos políticos pela vida do embaixador. A ação foi a maior vitória dos guerrilheiros revolucionários contra a ditadura dos militares.
A humilhação acirrou o endurecimento da ditadura, deflagrando uma grande operação para prender Carlos Marighella e os seus companheiros, considerados como terroristas. O líder da ALN passou a ser considerado como inimigo público número um, com cartazes de “Procura” espalhados por todo o país. Um ato institucional introduziu a prisão perpétua e a pena de morte para quem praticasse atos terroristas. Estava aberta a caça a Marighella, vivo ou morto.
Prelúdio da Emboscada Final
No último ano de vida de Carlos Marighella, o seu nome apareceu constantemente na imprensa nacional. Chegou a ser capa da revista Veja, na edição número 11, de 20 de novembro de 1968, voltando várias vezes às suas páginas durante 1969. Marighella causava nas pessoas medo pelos seus atos de violência e de guerrilha, e ao mesmo tempo, uma certa admiração aos que se opunham às truculências da ditadura. A imprensa descrevia-o de forma imparcial, fazendo dele uma figura cruel, e ao mesmo tempo romântica, numa época sangrenta e de radicalização da esquerda agonizante e da direita especializada na arte da tortura e do assassínio.
Por outro lado, Marighella apostava intensamente na deflagração da guerrilha rural. Planejava deixar São Paulo e o perímetro urbano, mudando-se para o meio rural. Tinha a viagem programada para 9 de novembro de 1969. Os seus planos vazaram, e os militares tinham pressa em capturá-lo e eliminá-lo de vez.
Em 1969, a “Veja” número 59, de 22 de outubro, três edições antes de trazer na capa um Marighella fuzilado e morto, apontava para um possível fim dos atos terroristas no Brasil, sugerindo explicitamente que o líder da ALN estaria em São Paulo, e que todas as saídas para Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, litoral e oeste paulistas estavam vigiados, e que não havia como o líder guerrilheiro fugir sem ser morto. O cerco e a morte estavam anunciados.
Sob tortura, o militante da ALN Paulo de Tarso Venceslau, revelou uma importante pista à polícia do regime, a de que Marighella tinha uma ligação com membros da ordem religiosa dos dominicanos.
Ao investigar a pista, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, considerado o maior carniceiro dos porões da ditadura, descobriu que era verdadeira. Os dominicanos Fernando, Betto, Ivo, Ratton, Oswaldo, Tito e Magno colaboravam com algumas organizações ligadas às guerrilhas urbanas, escondiam perseguidos, ajudavam a que atravessassem as fronteiras no sul do país ou que se deslocassem para outras cidades. Os dominicanos passaram a ser alvo de intensas investigações.
No primeiro fim de semana de novembro de 1969, Frei Fernando seguiu para o Rio de Janeiro, para encontrar Sinval de Itacaramby Leão, da Editora Vozes, para acertar uma publicação. Fernando trabalhava na Livraria Duas Cidades, em São Paulo. Na viagem, foi acompanhado por Frei Ivo, que aproveitaria para visitar a família. No domingo, 2 de novembro, foram presos no Catete, pela equipe de Fleury, levados para o Cenimar (Centro de Informações da Marinha), e submetidos a torturas durante horas consecutivas. Frei Fernando sucumbiu às torturas, revelando a senha que possibilitaria um encontro com Marighella.
Transferido para a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, Fernando teve a permissão para um banho e para fazer a barba. No dia 4 de novembro foi levado para a Livraria Duas Cidades, para que trabalhasse sob vigilância. Por volta das 16h00 recebeu um telefonema cifrado: “Ernesto pediu que vocês o encontrem na gráfica hoje, às 20h00.” Fernando respondeu: “Sim”.
A voz era de Antonio Flávio Médici de Camargo, contato de Marighella. “Ernesto” era a senha. O telefonema estava sob escuta. Imediatamente foi montado um esquema de emboscada para que se efetuasse a prisão de Marighella. Horas depois, Fernando e Ivo foram obrigados a participarem da emboscada, sendo postos no fusca azul que costumavam usar para os encontros com o líder da ALN. Escoltados, seguiram para o bairro dos Jardins, no centro de São Paulo.
Emboscada e Morte
Por volta das 18h30, começava a ser armada a emboscada na Alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins. Coordenada por Rubens Cardoso de Mello Tucunduva e executada pelo delegado Sérgio Fleury. Cinco veículos trouxeram os policiais que participariam da operação. Em um dos carros estava Fleury e duas investigadoras, dois outros automóveis foram distribuídos no cruzamento das alamedas Casa Branca e Lorena, servindo de cobertura; um carro foi posto na esquina da rua Tatuí, outro em um estacionamento da Alameda Casa Branca. O número de policiais envolvidos na emboscada diverge nos relatos, uns apontam para 29 homens, outros para exatos 45 e mais o cão Átila.
A noite parecia tranqüila, era uma terça-feira, 4 de novembro de 1969. Poucos minutos antes das 20h00, o militante Jeová de Assis Gomes deixou Carlos Marighella e Luís José Cunha, o Gaúcho, na esquina da rua Oscar Freire com a Alameda Casa Branca. Marighella ficou à espera que Gaúcho fizesse o reconhecimento do local e atestasse a sua segurança. Gaúcho caminhou lentamente pela Casa Branca, observando todos os detalhes e possíveis perigos. Viu um dos carros ocupados por Fleury, um investigador e duas investigadoras, que simulavam um encontro de inocentes namorados. Chegou a um ponto onde estavam policiais disfarçados de operários, a simularem a entrega de material numa construção. Avistou o fusca com Frei Fernando e Frei Ivo dentro. Tranqüilizou-se, indo ao encontro de Marighella, apontou o polegar para cima, em sinal de que estava tudo sobre controle. O líder guerrilheiro começou a atravessar a alameda, rumo ao carro dos frades. Naquele momento, ignorava que 23 dominicanos tinham sido presos, entre eles Frei Fernando e Frei Ivo. Imprudentemente, ele caminhou sozinho e confiante até o carro dos frades, trajando um terno claro, camisa branca de riscas azuis, tendo apenas uma peruca de cabelos castanhos como disfarce. De repente, tiros começaram a soar de todas as direções. Cinco minutos depois, o temido guerrilheiro estava morto.
A versão oficial dos detalhes da emboscada, dizia que Sérgio Fleury deu ordem para que Marighella se rendesse, mas ele não obedeceu. A polícia afirmava que entrou em confronto com cerca de treze homens da segurança de Marighella, o que gerou o tiroteio que mataria além do guerrilheiro, a investigadora Estela Borges, que se fazia de namorada de Fleury, e, o alemão Friedrich Adolf Rohmann, um protético de 54 anos, que passava pelo local, dirigindo um Buick preto. Feriria ainda Tucunduva na perna, fazendo-o passar por doze cirurgias.
Na versão oficial, divulgada pela revista “Veja”, dois tiros teriam atingido o rosto de Carlos Marighella, um outro no ventre, e o que lhe causara a morte, na perna, perfurando a artéria femoral, provocando intensa hemorragia seguida de morte. Ele teria sido morto dentro do fusca dos frades dominicanos. A imagem de Marighella morto dentro do fusca, estampada na capa da revista, ficaria famosa. Marighella não teve tempo de usar a arma que trazia, ela estava intacta, dentro da capanga, que continha ao lado uma escova de dente, um aparelho de barbear e duas cápsulas de cianureto, que deveria engolir caso fosse capturado.
O laudo cadavérico foi feito pelo legista Harry Shibata, famoso por assinar falsos atestados de óbitos de militantes mortos por tortura. Este laudo foi cuidadosamente analisado pelo médico legista Nelson Massini, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Massini analisou também dezessete fotografias dos arquivos, tiradas da emboscada. Concluiu que Marighella não foi morto dentro do fusca, nas fotos a camisa dele está levantada e a calça um pouco abaixada, o que sugere que foi arrastado pelos braços. Também as balas encontradas no corpo não coincidem com as marcas encontradas no fusca. O ângulo da perfuração, segundo Massini, torna impossível que o tiro final tenha sido dado dentro do veículo. Na sua análise, Marighella recebeu quatro tiros, um nas nádegas, outro na região pélvica, um de raspão no queixo e o quarto, à queima-roupa, que lhe perfurou a aorta e o pulmão, provocando a hemorragia interna que o matou. O tiro de misericórdia foi desferido ainda com Marighella vivo, que tentou, intuitivamente defender-se segurando a arma do seu algoz, fazendo com que a bala que o matou, dilacerasse um dos seus dedos da mão esquerda. O tiro fatal foi feito de uma curta distância. Depois de morto, o seu corpo foi carregado para dentro do fusca, deixado em estranha posição.
O tiroteio que a polícia alegou ocorreu entre ela mesma, e não contra os seguidores de Marighella, visto que em um confronto entre supostos treze militantes e quarenta policiais, não tombou um guerrilheiro. Carlos Marighella morreria executado sem nenhuma possibilidade de defesa. Sua morte já tinha sido determinada nos bastidores da ditadura. Após a autópsia realizada em sigilo, foi enterrado em uma cova rasa, no cemitério de Vila Formosa, São Paulo. Seu corpo foi escoltado por duas viaturas do DOPS, além de quinze agentes armados de metralhadoras, impedindo que alguém se aproximasse.
Dez anos depois, em dezembro de 1979, o corpo foi trasladado para o cemitério das Quintas dos Lázaros, em Salvador. Foi proferido um discurso em sua homenagem, escrito por Jorge Amado. Seu túmulo foi projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. No local da execução de Marighella, no número 822 da Alameda Casa Branca, foi posta uma placa em sua homenagem, com nome e data. Em 1996, o Estado reconheceu a sua responsabilidade na execução de Marighella, e a sua mulher, Clara Charf, teve direito a indenização, em 2008.
Quatro décadas após a morte de Carlos Marighella, ele continua a ser uma personagem enigmática da história brasileira. Poeta, revolucionário, político, guerrilheiro, inteligente, violento, sua mítica fascina muitos e traz repugnância a outros. Aclamado assassino e terrorista pelas autoridades, e, herói da resistência à ditadura pela população, Marighella continuará a ser um enigma, que se decifrado, revelará uma face ainda obscura do Brasil recente.
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