DAMARIS DE ANGELO
Para quem não acompanhou o processo, esta entrevista é fruto de um dos contatos que recebi após publicarmos o artigo "Nascido no corpo errado".
A foto acima é de Walesca Timmen
À partir do contato, deixado no final do post, conseguimos agendar uma entrevista Elle para falar de perto sobre a transsexualidade.
À partir do contato, deixado no final do post, conseguimos agendar uma entrevista Elle para falar de perto sobre a transsexualidade.
As primeiras coisas que notei, quando conversei com Elle de Bernardini: a voz doce, fina e o formato arredondado de sua boca compondo uma construção lindíssima de traços femininos em seu rosto.
Em nossa conversa tudo ocorreu como combinado, mesmo combinando coisa nenhuma. Ao contar suas histórias, Elle acompanhava o rascunho de meu caderno sem saber, e ia pouco a pouco respondendo a sequência de questões que eu tinha planejado fazer a ela. Elle carrega consigo uma energia boa. Sua segurança, combinada à ótima vibração foram os carros condutores da conversa.
Fotografia de Vitor Ceolin.
Começamos tudo com a declaração: "Sempre me vi como mulher e homem ao mesmo tempo, e com muita naturalidade". Desde criança, nunca existiu para Elle uma relação de escolha quanto a sua sexualidade. Seu processo de "transformação" na verdade nunca existiu. O que houve foi sempre a unicidade, natural e completa. Foi interessante desde o início conversar com Elle, porque foi possível, nas características dela, ver uma diferença que poderia definir muita gente por aí.
Fotografia de Ana Marin, Londres 2012
Bailarina Clássica pelo Royal Ballet de Londres, do Rio Grande do Sul - Santa Maria, Elle é o resultado de uma boa educação, direcionada pela mãe pedagoga e por sua relação com a arte e a dança. Nas artes visuais é autodidata, tendo praticado a pintura e a escultura desde muito jovem. Batizada pelo nome de Fellipe de Bernardini, a dançarina conta nunca ter sentido a necessidade de se definir, ou "categorizar" -- "Sempre me senti em trânsito, entre uma coisa e a outra". Na conversa, ela diz que um dos acontecimentos mais importantes de sua vida se deu em um dia de treinamento de ballet, quando ainda estava em Londres. Elle me contou que mesmo com a rigidez da dança quanto à categorização dos bailarinos, pôde escolher se dançaria na divisão masculina ou feminina.
Foto por Ana Paula Foletto Marin
"Essa situação foi um marco pra mim, porque o ballet é uma dança característica subdivisoria. O feminino e o masculino são representados com bastante contraste, seja nas vestes dos dançarinos, quanto à disposição física deles. Existe muito rigor em relação a isso principalmente pela condição física, por estar relacionada diretamente a força e a desenvoltura da dança. Mas mesmo assim eu pude escolher como eu me formaria".
Fotografia de Walesca Timmen
Elle acredita que sua aparência andrógina teve grande efeito na aceitação das pessoas com sua identidade. Elle conta também que nunca pretendeu "ser mulher", nunca fez ou deseja fazer qualquer tipo de cirurgia, nunca tomou hormônio, nunca quis "colocar peito", ou usar cabelo comprido. E o bonito disso tudo é que a aceitação de todas essas características únicas de Elle faz com que ela seja um ato de rebelião meio a tanto padrão e vontade de “pertencer”. Em diversos momentos da conversa foi um prazer observar Elle defender sua identidade. Sua naturalidade em se saber bonita é um próprio manifesto.
Retrato de Walesca Timmen
Quando perguntei da sua relação com a mãe, e a aceitação dela em reação a isso, Elle me disse que sua mãe sempre foi muito centrada. "Quando conversei sobre minha sexualidade com minha mãe, lembro que ela acabou por definir meu pensamento à partir dali. Lembro-me dela dizer que minha sexualidade era algo particular, e que só diz respeito a mim, e que uma característica particular minha nunca mudaria nada para ela. A partir daquele momento passei a encarar a relação, o tabu da sexualidade, o sexo em si, de uma outra forma, e vi que nada do que era apenas meu deveria interferir na vida as outras pessoas, e da sociedade".
Fotografia de Vitor Ceolin
O paradoxo que sobrevive na existência do movimento LGBT, também foi um dos tópicos da conversa. "Para adquirir seu espaço na sociedade, e ser tratada como igual você acaba levantando uma bandeira sobre uma particularidade sua, e para ser aceito nela você cria um grupo específico, que na verdade te subdivide. Você se coloca de uma maneira diferente e exige ser tratado como um igual". De fato existe essa subdivisão criada pelo próprio movimento, mas é importante ressaltar que esse não foi um posicionamento crítico da artista. Ao concluir o assunto Elle explica: "Eu não sou contra o movimento LGBT. É um mal necessário. Infelizmente em relação a condições políticas e sociais ainda há muito a ser feito, e a força existente em um coletivo por uma causa é sem dúvida algo que faz toda a diferença".
Em relação às preferências quanto a pronomes de tratamento, perguntei para Elle como era a relação dela com isso, então ela disse: "Quando me perguntam como devem me tratar, sempre digo 'como achar melhor'. Eu não me vejo como mulher, eu não tenho interesse em ser mulher, e nunca me identifiquei como homem também. Eu nunca me defini como homem ou mulher porque na verdade minha identidade é única. Como eu disse, eu brinco sempre que estou em ‘trânsito’ porque nunca me decidi se sou homem ou mulher, e na verdade eu não preciso me decidir. Isso me faz ser livre".
Artista visual e performática, Elle além do ballet também trabalha com a arte de Butoh. Uma dança oriental que aborda a construção humana de forma andrógina, sem a definição de gênero. A androginia representa um ser, com o lado feminino e o masculino adquirido, assim como o equilíbrio de uma existência. A arte surgiu em 1960, e ao contrario do ballet que exige uma separação, o Butoh nos vê como a junção de mente e corpo. Butoh está preocupada apenas com o desconhecido do ser que nos une. "Em minha dança eu nunca defino quem eu sou, eu levanto a dúvida, e até o final da apresentação eu deixo para quem assiste definir".
Fotografia por Alice Bollick, 2011.
Ficou ainda mais claro, depois desta conversa com Elle, que não é um órgão genital que deve definir um ser humano como homem ou mulher. A concepção de macho e fêmea é uma característica subjetiva, que se categorizada dessa forma, será um desrespeito a identidade de cada um de nós. Um órgão sexual se deve a uma característica biológica, enquanto a definição do que é um homem ou uma mulher se dá também através das condições psicológicas, comportamentais, emocionais de uma pessoa.
por Fernanda Bona
"O que eu vejo em toda essa questão é um reflexo da dificuldade que as pessoas têm em se relacionar afetivamente. O fato de você não definir se é homem ou mulher parece afastar as pessoas porque elas precisam dessa ideia louca de categorização. Eu não entendo isso, porque afinal isso é bom. É bom não nos repetirmos, é bom sermos diferentes uns dos outros".
fotografia de Walesca Timmen
Quando conversamos sobre a relação dela com a "aceitação" das pessoas, Elle disse que não precisa ser aceita, mas precisa ser respeitada. Disse também que não existe aceitação vinda de qualquer imposição que se tente fazer. "As pessoas não vão aceitar você por imposição sua, sem uma explicação, e se você parar pra pensar, isso é normal. Não somos obrigados a aceitar uns aos outros, principalmente quem a gente não conhece. E também, a gente só conhece as pessoas pelo que elas nos mostram, não é? Então como vou exigir que essa pessoa me aceite se ela não me conhece? A única coisa que devo exigir são direitos iguais".
Retrato de Rafael Happke, 2012
Quando perguntei o que ela gostaria que as pessoas soubessem, ela me disse que mais do que tudo, ela deseja que essa bandeira LGBT que levantamos seja só um começo. “Se nos detivermos à ela pra sempre estaremos reforçando a ambiguidade, a separação”. Elle disse que as pessoas devem saber que essa deve ser nossa primeira finalidade, e não a última. “Nossa criatividade é o que deve nos diferenciar, nunca nossa sexualidade. Espero que a gente fale tanto de nossos direitos, das nossas igualdades, de nossas diferentes sexualidades, que isso vire um assunto chato, passado. Dai então que tudo finalmente se naturalize”.
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