Você pode pensar que não existem neonazistas brasileiros porque uma das principais características do nazismo seria justamente a questão da raça ariana. É por isso que se usa o termo neonazista. Ou seja, estamos falando dos princípios, das linhas de pensamento e ações humanas que afloraram na Alemanha do início do século passado.
Um dos amigos mais próximos de Hitler, Emil Maurice, que foi seu motorista, era um dos nazistas mais violentos. E por incrível que pareça, Maurice era descendente de judeus. Outra situação bastante estranha era a de Ernst Röhm, um dos chefes da S.A, a polícia violenta do nazismo. Röhm era homossexual e foi assessor de Hitler para questões militares.(p. 77). Então você pode ser brasileiro, negro, latino e ter o comichão neonazista ou fascista a espera de um grande líder, de um mito.
Não dá para entender o neonazismo limitado, por exemplo, ao ódio aos judeus, comunistas e homossexuais, sendo que sua essência é ódio em si. Você pode ser um homossexual e odiar politicamente, você pode ser um judeu e odiar. Veja o que acontece com os palestinos; vivem numa espécie de campo de concentração promovido por judeus. Ironia do ódio.
A essência do nazismo está na própria condição de interpretação da realidade. Todos nós podemos agir como nazistas. O nazismo e o fascismo são uma espécie de estado de espírito político do ser humano. O nazismo é um fascismo que chegou às últimas consequências.
Mas o neonazismo tem suas características fundadas na história do próprio nazismo. Para fazer essas analogias, vamos usar citações de uma obra da pesquisadora brasileira Sílvia Bitencourt, que mora na Alemanha e fez um livro sobre o jornal que combateu os nazistas desde o nascimento do partido em Munique, ao sul da Alemanha. Num trabalho minucioso, Silvia conta em detalhes o nascimento do movimento nazista na Baviera.
Um dos primeiros pontos é que o ódio define o pensamento político e a compreensão da realidade. Se você acha a esquerda, comunistas, índios, gays, negros, putas, integrantes do MST, PT, tudo um lixo, você está em sintonia com os nazistas, historicamente.
Veja que muitos integrantes do futuro partido nazista vieram da Sociedade Thule, uma sociedade secreta e antissemita criada em 1918. Criada para combater a revolução, os comunistas e o governo socialista, dela saíram vários membros do futuro partido de Adolf Hitler. “Seus associados eram, sobretudo, acadêmicos, aristocratas e empresários, que se reuniam no luxuoso hotel Quatro Estações, no Centro de Munique” (p. 54).
Então, se você tem simpatia pelo discurso raivoso de direita, também tem linha próxima dos nazistas. Antes mesmo de fundar o partido, Hitler “ingressara no DAP (Partido dos Trabalhadores da Alemanha), um agrupamento de extrema direita ainda sem recursos”(p. 70). Quando teve mais recursos, o partido nazista comprou o jornal de extrema-direita Völkischer Beobachter, ligado à Sociedade de Thule.
Os nomes dos partidos na Alemanha daquela época podem te confundir, mas não significam nada. O partido de Hitler era tão socialistas quanto o PSDB no Brasil de hoje é “social-democrata”. É a prática política que define o partido e não o nome. Se um partido, por exemplo, abriga um deputado que diz que “quilombolas, índios, gays, lésbicas são tudo gente que não presta”, o partido abriga um pensamento que está em sintonia com o nazismo. Não adianta ter no nome a palavra “democrático”.
Outro componente no nazismo é o discurso conservador machista. Os nazistas buscavam a “decência alemã”, a família alemã, assim como acontece hoje no Brasil nos discursos em “defesa” da família. O machismo de Hitler se estabelecia na própria relação com a sobrinha, Geli Raubal. “Os historiadores concordam que Geli se suicidou, tentando provavelmente se livrar do controle e do ciúme do tio”. (p. 241)
Então, até o momento já temos um perfil: ser de direita, ter ódio e defender a decência da ordem machista da família. Mas continuemos…
Além do ódio como componente de entendimento da realidade e da política, uma outra característica no nazismo é aceitar a violência como estratégia e condição necessária da realidade. Ódio é a parte intelectual e a violência é a prática da solução dos problemas para os nazistas. Se você odeia, você precisa eliminar seu adversário ou inimigo.
Em 1920, Hitler fez o seguinte discurso: “Chegará o dia no qual nossos objetivos serão realizados, e para isso precisamos de ação e violência; mesmo com uma polícia que não quer saber de ação e violência, o fato é que precisamos de violência para impor nossa luta”. (p. 81). Hitler é um pouco sofisticado para quem grita hoje no Brasil que “bandido bom é bandido morto” e que “Direitos Humanos servem para defender bandido”. Esse discurso bem brasileiro é mais nazista que o próprio nazismo; tem todos os componentes do ódio e da violência com a clareza racional de um capitão do mato.
Outra característica das tendências nazistas é a defesa da eliminação (morte) ou o encarceramento, a ampliação das prisões, um estado policial que prende infinitamente, que todo o controle do Estado é dado ao sistema de aprisionamento. Os campos de concentração dos nazistas foram uma consequência do excesso de presidiários, de prisões abarrotadas e superlotadas como as brasileiras atualmente. “Em uma Alemanha dominada por nós, não haverá guerra civil. Em uma Alemanha com a nossa bandeira, a disciplina e a ordem voltarão a ser a lei máxima” (p.258).
Se você odeia e vê a violência como solução, você provavelmente não teria pudores em caluniar e publicar notícias falsas. Talvez por isso a internet esteja cheia de notícias falsas, temos mais nazistas do que imaginamos. Há inúmeros domínios que publicam matérias totalmente distorcidas ou mesmo mentirosas em sua maioria de perfil ideológico de direita. O jornal comprado pelos nazistas, o Völkischer Beobachter, publicou uma série de artigos caluniosos contra o editor do jornal social-democrata Münchener Post, Erhard Auer. O caso foi parar na Justiça e os nazistas foram condenados (p. 95).
O jornal nazista Völkischer Beobachter disparava e alarmava a população com um discurso em que falava de “Terror vermelho”, dos “socialistas traidores”, do “perigo vermelho”, da “mentira internacional” e dos “caciques do marxismo judaico”. Algo como “Vai pra Cuba!”, “Fidel Assassino”, “foro de São Paulo” etc. “Na madrugada de 10 de agosto, um assassinato em particular abalou o país. Nove homens uniformizados da SA invadiram a casa do agricultor desempregado Konrad Pietzuch, militante comunista na cidade de Potempa (hoje Polônia), pisoteando-o e espancando-o até a morte, na frente de sua mãe” (p. 260). Hitler não hesitou em defender os assassinos, assim como no Brasil alguns defendem execução de bandidos e inocentes por policiais ou chacinas em presídio e na periferia das grandes cidades.
Outra característica dos nazistas é o desprezo pela democracia, mesmo uma democracia como a brasileira totalmente controlada pela compra de políticos com o dinheiro de empresas nas eleições, legal ou ilegalmente. Os nazistas tentaram dar um golpe em 8 de novembro de 1923, que fracassou. A história ficou conhecida como o golpe da cervejaria (p. 128).
Como diz Silvia, Hitler abominava a democracia. Assim também pensam alguns brasileiros que sem constrangimento saíram às ruas em 2016 pedindo “intervenção militar”. Para Hitler e para alguns brasileiros, só um governo ditatorial coloca ordem na casa. Ou seja, desprezar e destruir a democracia não passa de um pensamento alinhado ao nazismo. “O tema preferido do líder nazista em seus pronunciamentos passou a ser o colapso da Alemanha. No lugar dos judeus, seus ataques se voltaram contra o sistema parlamentarista e a democracia” (p. 226). Até o termo “Terceiro Reich”, que significa ‘terceiro império’, dá o sentido de negação da democracia.
Os “Documentos de Boxheim”, redigidos por líderes do partido nazista, “postulavam a revogação da Constituição democrática de Weimar e a instauração de uma ditadura militar pela SA” (p. 245). No Brasil de hoje, não existe coisa mais neonazista do que pedir uma ditadura militar.
Uma outra característica dos nazistas é o ‘culto ao líder”, ou na Alemanha, ‘culto ao Führer. O modelo nazista é o mesmo dos fascistas italianos com o duce Benito Mussolini. O culto começou a acontecer nos grandes acontecimentos do partido. “Os eventos comeram a girar exclusivamente em torno de Hitler, que deles sempre saía ovacionado” (p. 114). Para os seguidores, os nazistas produziam Hitler como um mito. Para o jornal Münchener Post, “os nazistas estariam fabricando um messias, a partir de um mero demagogo de rua” (p.114)
Família, decência, ordem, líder, mito, violência, intervenção militar etc são discursos comuns no Brasil do século 21. E você pode até se identificar com toda essa ladainha que parece ser a panaceia de todos os problemas. Mas o recado que a história nos deixa é mais cruel.
Quando você defende o Estado como promotor da violência, em algum momento ela vai voltar as caras para você. Após exterminar os adversários, os nazistas começaram a ver seus adversários dentro do próprio do ninho nazista. Entre 30 de junho e 1 de julho de 1934, no episódio conhecido como Pacto da Alemanha, um agrupamento nazistas promoveu uma onda de assassinatos dos próprios nazistas. Entre as vítimas, estava o ex-chefe da SA, Ernest Röhm e vários integrantes do partido. Mas o caso de Herbert Hentsch talvez tenha sido mais ilustrativo:
“Já passa das dez e meia da noite quando o jovem Herbert Hentsch, membro da SA de Dresden, na Saxônia, recebeu um telefonema. Três camaradas da organização chamaram-no para um encontro. O rapaz de 26 anos vestiu seu uniforme pardo (da SA nazista) e despediu-se de sua mãe, a viúva Klara Bochmann, prometendo não demorar. Ele não voltaria mais para casa. Seu corpo foi encontrado várias semanas depois daquela noite de 4 de novembro de 1932. Herntsch havia sido espancado e assassinado com um tiro no peito. Amarrado pelas pernas e enfiado num saco plástico cheio de pedras, seu corpo foi jogado numa represa” (p.265)
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