HEROÍNA ABSOLUTA E BRASILEIRA REFERENCIAL: LEOCÁDIA PRESTES NAS PALAVRAS DE FERNANDA MONTENEGRO
"Senhora, fizeste grande, tão grande a nossa América/deste-lhe um puro rio, de águas colossais:/deste-lhe uma árvore alta de infinitas raízes:/um filho teu, digno de sua pátria profunda"
Trecho do poema Dura Elegia, escrito pelo poeta chileno Pablo Neruda, especialmente para o triste momento do falecimento de Leocadia Prestes, em junho de 1943
Leocadia Prestes durante a Campanha Prestes em Londres, na Inglaterra, junho de 1936. Fernanda Montenegro interpretando Leocadia Prestes no filme "Olga" (2004).
Fernanda Montenegro faz 90 anos no próximo dia 16 de outubro. Somando 70 de teatro, ela lança, com a colaboração de Marta Góes, a autobiografia “Prólogo, Ato, Epílogo” (Editora Companhia das Letras, 2019), pontuada por testemunhos da grande atriz do teatro brasileiro, mas também do cinema, da TV e do rádio. Na página 240, Fernanda Montenegro afirma que "às vezes os personagens de uma história são também determinantes para que eu aceite um convite". explicando que foi o que aconteceu ao aceitar participar do filme Olga, de Jayme Monjardim, interpretando a mãe do líder comunista Luiz Carlos Prestes (1898-1990). Em um parágrafo, Fernanda Montenegro faz uma exaltação à figura de Leocadia Felizardo Prestes (1874-1943), classificando-a como pertencente "à galeria das heroínas absolutas" e "uma brasileira referencial".
Abaixo a imagem do parágrafo na página 240 do livro “Prólogo, Ato, Epílogo”, autobiografia de Fernanda Montenegro.
No dia 5 de março de 1936, no Rio de Janeiro, Luiz Carlos Prestes, líder do movimento antifascista de 1935, e sua mulher, Olga Benário Prestes, foram encarcerados. De Paris, a mãe do revolucionário encabeçou um movimento de libertação dos presos políticos no Brasil. A iniciativa, bem-sucedida, possibilitou sua comunicação com o filho, por correspondência, e, dois anos depois, a libertação da neta, Anita Leocádia, nascida numa prisão da Alemanha para onde Olga fora deportada.
Paris, 31 de julho de 1937
Meu querido filho,
O meu mais ardente desejo é que estas linhas te encontrem com saúde. Tenho presente tua boa carta datada de 16 do corrente e que aqui chegou com dez dias de viagem, o que não sei como explicar, porque veio pelo avião. Recebi também a que escreveste à nossa querida Olga.
Lamento muito que a minha carta tenha sido encaminhada erradamente para a Casa de Detenção,[1] pois desse modo ficaste sem notícias nossas, o que tenho tido o cuidado de evitar. Tenho te escrito religiosamente todos os sábados e, algumas vezes, pelo avião de quarta-feira. Assim deves receber minhas cartas de 3, 10 e 17. No dia 24 (sábado), não te escrevi, porque não me encontrava em Paris, porém a Lyginha escreveu a fim de que não sofresses a decepção de não receber as esperadas notícias.
Da nossa Olga recebi, justamente no dia de minha chegada a Paris (28/7), uma importante carta, datada de 15, mas que somente a 26 havia sido posta no Correio. Mais abaixo dir-te-ei o que ela continha, pois em primeiro lugar quero te falar da minha viagem.
No dia 21 do corrente mês, parti para a Alemanha, acompanhada de uma delegação de damas inglesas, com o fim determinado de ver a Olga e a pequenita e constatar o que seria possível fazer por ambas. Infelizmente não conseguimos permissão para visitá-las, mas a Gestapo, onde estivemos por três vezes, forneceu-nos várias informações sobre a saúde de Olga e da pequenina, dando-nos mesmo uma cópia do atestado apresentado pelo médico da prisão onde elas se encontram, no qual se lê que a saúde e o aspecto físico de ambas são os melhores possíveis. Deram-me permissão de enviar roupas e víveres, o que fiz imediatamente. Estive duas vezes na prisão de mulheres, onde se encontram as nossas duas queridas! Deixei cem marcos para a Olga e uma grande cesta com frutas. As damas inglesas enviaram à pequenina roupas e lindos brinquedos. Bem podes imaginar, meu querido filho, a grande tristeza com que me retirei da prisão, sem ter visto e abraçado as nossas duas queridas!
Além disso, desejava obter da Olga algumas informações necessárias para a tua defesa, e nada consegui! Pelo que nos disseram na Gestapo, as duas (Olga e Elise)[2] não foram inculpadas até hoje e talvez mesmo nunca sofrerão qualquer processo! Posso te assegurar que muito trabalhamos durante os oito dias que passamos em Berlim, porém poucos foram os resultados obtidos. Mas não esmorecemos e continuaremos a lutar até o fim.
Em sua carta de 15, a Olga pede-me que lhe envie uma duplicata da certidão de seu casamento contigo, a fim de regularizar a sua situação jurídica perante as autoridades alemãs. Já providenciei para que tal duplicata me seja remetida com a maior brevidade. Quanto à pequenita, peço-te que esperes um pouco, pois ainda não consegui obter as informações necessárias para que reconheças a paternidade. Não te mando cópia da carta da Olga, porque ainda não está traduzida, mas prometo enviá-la pelo próximo avião de quarta-feira, quando te escreverei com mais vagar.
Ontem enviei-te os primeiros livros, que são: as obras completas de Moliére, ornadas com lindas gravuras coloridas, uma história dos Estados Unidos, as máximas de Epíteto precedidas dos pensamentos de Marco Aurélio, vários catálogos de livrarias e um lindo mapa da Espanha. Ao todo cinco livros e três catálogos. Espero que tudo te seja entregue com presteza, pois seguiram por um vapor rápido.
Sobre a Exposição[3] nada posso contar, pois ainda não a visitei. Logo que o faça, não me descuidarei de arranjar os tais prospectos a que te referes, para te enviar. Com a minha ausência de Paris e outros assuntos, faltou-me o tempo para percorrer livrarias e comprar coisas mais interessantes, mas espero resolver tudo isso na próxima semana. Não te preocupes com as despesas e peço-te que me digas com franqueza tudo quanto desejas.
Espero que já tenhas recebido algumas roupas de lã que te mandei, assim como alguns objetos de toilette. A écharpe foi minha e usei-a durante a minha estadia na Alemanha em meados de novembro do ano passado, antes do nascimento da nossa adorada Anita. Espero que a uses com prazer. Receio que sintas muito a umidade no pequeno cubículo onde vives. Logo que apareça outra oportunidade, mandarei mais meias de lã, pois lembro-me sempre como sofrias com os pés frios. Enfim, meu querido filho, enquanto penso em ti, nas nossas duas queridas e nas desgraças que afligem o mundo, esqueço-me dos meus sofrimentos e novas forças se levantam dentro de minha alma e sinto novas energias para tudo enfrentar e suportar.
De saúde vamos todos bem, pelo menos o quanto é possível neste momento. Lyginha promete escrever pelo próximo avião e envia-te um saudoso abraço. As outras, quando escrevem, sempre enviam-te lembranças e saudades. Recebe um longo abraço de tua mãe que te beija com infinitas saudades
Leocadia
Anos tormentosos: Luiz Carlos Prestes: correspondência da prisão (1936-1945). Organização de Anita Leocádia e Lygia Prestes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2000, pp. 567-569.
[1] N.S.: Ao ser preso, Prestes foi levado para o quartel da Polícia Especial, no centro do Rio, onde permaneceu por mais de um ano até ser transferido, no dia 8 de julho de 1937, para uma cela construída especialmente para ele no pátio da Casa de Correção, situada à rua Frei Caneca, onde também funcionava a Casa de Detenção, local para o qual Olga fora levada antes de sua deportação.
[2] N.E.: Elise Ewert – deportada para a Alemanha junto com Olga. Era casada com Arthur Ewert, comunista alemão que participou da luta antifascista no Brasil, no ano de 1935.
[3] N.S.: A Exposição Internacional de Paris (Exposition Internationale des Arts et Techniques dans la Vie Moderne) aconteceu de 25 de maio a 25 de novembro de 1937 e teve 44 países participantes. Dentre as obras, foi exibida, pela primeira vez, Guernica, de Pablo Picasso, no Pavilhão da Espanha.
Correio IMS
Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro
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