segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

NOSSA INDIGÊNCIA CULTURAL CHEGOU AO CAMARO AMARELO

Consumo

Edival Lourenço

É notável como nos últimos 40 anos todos os valores morais e estéticos se empalideceram perante a arrogância do consumo. Empalideceram e ofereceram rendição. Agora, tudo na vida se resume a relação de consumo. Basta comparar os laços familiares de 30, 40 anos atrás com uma família de hoje em dia. Os vínculos familiares eram fortes, para o amor e para o ódio. A começar pelo modo de acomodação dentro de casa, demonstrando sinais de intensidade nas relações.
A prole era de modo geral numerosa. De costume, os filhos homens dormiam todos num mesmo quarto e as mulheres num outro. Isso nas classes de média acima. Nas classes menos privilegiadas, os filhos homens e mulheres dormiam no mesmo quarto, separados quando muito pelo improviso de um biombo de lençol ou coberta pendurada numa corda abaixo do teto. Não havia espaço para segredos entre os familiares. Todos sabiam de tudo o que se passava com os demais e se achavam no direito de opinar e tomar partido sobre qualquer questão.
Hoje, cada filho detém um apartamento (ou departamento) no interior da casa dos pais. E assim como não sabemos o que se passa com o nosso vizinho do apartamento em frente ao nosso, ou mal sabemos o seu nome, os irmãos que moram na mesma casa também mal se conhecem. As pessoas estão encavernadas, envolvidas com suas TVs, com seus leptops, com seus iphones, conectadas umbilicalmente em sua solidão hitech. As famílias não têm mais apego, nem raiz sentimental. São como cultivo hidropônico, em que os agricultores (os pais) fazem chegar os nutrientes (grana) através de uma água rala sem terra e sem suporte (sentimentos frouxos). Vivemos a era das famílias hidropônicas. A família como mera organização para o consumo.
É evidente para todos nós que essa mudança de hábitos, essa rendição ao consumo, se deu graças ao esforço contínuo do mercado em transformar todas as pessoas do mundo em consumidoras. Não em cidadãos, mas em consumidores. Daí não termos especificamente um Código do Cidadão, mas um Código do Consumidor. Mas a pergunta primordial é a seguinte: Qual o flanco moral que se rompeu para que o mercado pudesse impor o novo modo de vida, sem que as pessoas oferecessem resistência, ou ao menos desconfiassem que alguma coisa poderia dar errado?
Arrisco a dizer que a cerca se rompeu na área da ideologia. Nos anos 70, quando eu era um secundarista, havia uma grande quantidade de jovens com posicionamento ideológico, de centro, de esquerda, de direita. Esse posicionamento era permanentemente questionado, discutido. Para se manter na posição era preciso saber argumentar, defender teses, contrapor as ideias diferentes das suas. Então era comum aos secundaristas lerem artigos dos colunistas da época, dos críticos, dos filósofos e livros de formação. Rosa Luxemburgo era discutida em boteco. Havia até um grupo de amigos que se reunia sistematicamente para estudar a obra de Marx. E não era para fazer trabalho de escola, não. Era para se ilustrar, para adquirir conteúdo para justificar suas posições.
Com esse arsenal teórico acabava se formando uma espécie de casta de letrados. E era em quantidade representativa. Essa casta gostava de leitura. E não se permitia ler best-sellers, auto-ajuda, nem ouvir música brega. Porque tinha uma base cultural para o estabelecimento de um gosto mais refinado. Nos grupos de jovem, uma pessoa com argumento cultural era valorizada, admirada, mesmo por aqueles mais sem noção. Um sujeito de posses, com um relógio Seiko ou Orient e calça Lee (objetos de desejo da época) tinha menos chance de conquistar uma garota do que um pé-rapado que citasse Marx, que declamasse Drummond ou cantarolasse músicas de Chico, Vandré ou Caetano. Mas o mercado cuidou de desconstruir a imagem de quem ostentasse posição ideológica e gosto estético. Esses atributos passaram a ser considerados como preconceito, uma espécie de lepra da personalidade. Até figuras icônicas posicionadas esteticamente ficaram sem jeito de defender uma estética mais elaborada, como Caetano Veloso que começou a incluir em seus discos músicas do repertório de Peninha, Odair José e outros bregas eméritos.
Então acredito (os cientistas sociais podem comprovar) que com a morte das ideologias, morreram também as condições de formação do bom gosto e os meios para defendê-lo. E o mercado, feito uma doença oportunista, percebeu a hora e a vez. Mandou baixar o nível das produções culturais. Alargou a faixa na base da pirâmide social, ampliou o seu alcance enormemente, alienando mais pessoas para que se empanturrem com as bugigangas de entretenimento vulgar.
Daí para o desfalecimento da literatura, da música, do cinema e outras manifestações culturais foi um passo. Hoje você pega uma lista dos livros mais vendidos no país e não corre o menor risco de ver alguma coisa que valha a pena ser lida. O cinema infantilizou-se com histórias bobinhas que vendem milhões. E se ligar um rádio, mal poderá ouvir algo que vá além do mero barulho, coisa que serve apenas para sacolejar a bunda.
Só mesmo numa sociedade de indigência cultural como a nossa é que uma música como Camaro Amarelo pode ser eleita “a melhor do ano”, no programa de maior audiência da televisão brasileira.

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