segunda-feira, 24 de abril de 2017

A BANALIZAÇÃO DO MAL

do PENSAR CONTEMPORANEO



“Eu estou depressivo(…) sem telefone(…) dinheiro para o aluguel(…) dinheiro para o sustento de criança(…) dinheiro para dívidas(…) dinheiro!(…). Eu estou sendo perseguido pela viva memória de matanças, cadáveres, cólera e dor(…) pela criança faminta ou ferida(…) pelos homens loucos com o dedo no gatilho, muitas vezes policial, assassinos”
Trecho da carta de suicídio de Kevin Carter
Este trecho é de uma carta de suicídio do fotógrafo sul-africano Kevin Carter(1960-1994), ganhador do premio Pulitzer, em 1994. Ele fotografou uma criança faminta, sem forças, rastejando para um campo de alimentação há um quilômetro dali. Ao lado um urubu observa e espera a morte da criança para poder devorá-la, como se já soubesse a priori a morte chegar. Carter observou durante vinte minutos, achando que o urubu fosse embora, como não foi, espantou-o, e saiu rapidamente dali. Nesta atitude está todo o peso de seu sofrimento. Ele se culpou por não tê-la salvo e refletiu sobre si mesmo naquela cena: “um homem ajustando suas lentes para tirar o melhor enquadramento de sofrimento dela, talvez também seja um predador, outro urubu na cena”.
Por que Carter não a salvou? O que ele pensava? Qual era sua preocupação? Com um pouco de reflexão podemos entender por que razão ele não a salvou. Todos nós, filhos da modernidade, somos espectadores de uma experiência empobrecedora, que melhor se conceitua como guerra, fome, miséria, repressão e barbárie. No mundo moderno o mal se tornou comum, é parte da cena cotidiana. O mal se banalizou. Tornamo-nos insensíveis a desgraça alheia. Carter, como fotógrafo, acostumou-se a captar o cinéreo, o claustro e o frívolo em suas fotografias. Acostumou-se a experimentar “o mal”. Mas, pagou um preço alto pela banalização do mal. Quando refletiu sobre a cena, sentiu náusea, culpa, remorso. Suicidou-se. Foi o preço que ele pagou por sua falta de piedade. Digo piedade, pois, é por meio desse conceito que podemos compreender a morte de Carter.
Segundo Rousseau, o que diferencia o homem do animal é o fato de ele ser um “agente livre”. Do ponto de vista moral, ao contrário dos animais, que seguem as regras da natureza, o homem é dotado de vontade e tem consciência de sua liberdade. Ele pode fazer escolhas, não se limitando as regras prescritas pela natureza. O homem é um ser moral, dotado de vontade e de livre arbítrio. Carter teve que fazer uma escolha moral, salvar ou não salvar aquela criança? Ele não a salvou, deixou-a aos urubus. Mas por quê? O que ele temia? Não sabia que ela iria morrer? Será que faltou piedade a Carter?

A principal característica que diferencia o homem do animal, segundo Rousseau, e que foi responsável por torná-lo bom e sociável, é a piedade, entendida como uma “repugnância inata de ver sofrer seu semelhante”. Parece-me que Carter não experimentou esse sentimento. Sua piedade falhou? Mas por que ela falhou? Por que ele não sentiu piedade naquele momento?
A falta de piedade no momento da cena tem uma explicação filosófica. Segundo Theodor Adorno, um grande pensador do mundo contemporãneo, a principal característica da sociedade de massas não é somente a perda da individualidade, mas a perda da sensibilidade, ou seja, a insensibilidade do homem moderno. Somos herdeiros da apatia burguesa. O homem moderno vai ficando apático aos acontecimentos até se tornar completamente insensível. Ele é convidado a nada mais que compartilhar da experiência brutal e uniforme da modernidade.
A grande consequência do progresso técnico e científico é a barbárie. A técnica, em vez de criar um mundo de receptividade, fruição do prazer e felicidade para os indivíduos, fez justamente o contrário, só gerou a opressão, a miséria e o sofrimento. Nos acostumamos a esse estado de coisas. É a completa reificação do homem. Todos os dias nos deparamos com mendigos, violência nas ruas, favelas, injustiças sociais, pobreza, fome, até nos tornarmos insensíveis ao sofrimento alheio. Essa é uma característica da sociedade de massas.
Outro fator que asseveramos para a perda de piedade do homem contemporâneo é o amor próprio. Na avaliação de Rousseau, é por causa do amor-próprio, gerado pela reflexão, que o homem é capaz de pensar primeiro em si e, vendo sofrer seu semelhante, dizer, “Morre, se queres; estou em segurança”. Por causa do amor próprio o homem em nossa atualidade perdeu este sentimento natural de piedade. Desse modo, o mal tornou-se uma característica da experiência moderna. Carter, como um típico homem moderno, perdeu esse sentimento, acostumando-se à barbárie de nossa época.
Para Rousseau, o homem só se torna homem, ou seja, torna-se humano pela piedade. A piedade é um sentimento natural presente em todos os homens. Dessa virtude natural é que resultam as virtudes sociais como a generosidade, a clemência, a bondade, a benquerença. É a piedade que nos leva “sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer a sua doce voz; é ela que impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, ‘faça a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: faze o teu bem com o menor mal possível a outrem” ¹
1 Rousseau, J Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens.

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