da Academia do Psicólogo
Ainda que a sociedade brasileira seja composta em sua maioria por pessoas negras, o racismo ainda acontece de maneira frequente, seja de forma velada ou até mesmo de forma mais explícita.
Essa é uma vivência bastante comum entre pessoas negras no Brasil, e que por outro lado, é pouco compreendida ou percebida por pessoas não negras, visto questões como a falta de contato com essa realidade, não ter experienciado o racismo, a crença de que o racismo não existe entre outras situações.
Antes de iniciarmos a discussão sobre o sofrimento psíquico de pessoas negras expostas ao racismo e como psicólogos negros podem contribuir com a reparação desse sofrimento, é importante contextualizar esse racismo vivenciado pela população negra em nosso país.
Assim, já trabalhamos uma das questões apontadas acima e nos aproximamos do contato com essa realidade.
Destruição cultural e desumanização
Sabe-se que a população negra, trazida majoritariamente de regiões onde hoje se localizam Angola e Nigéria, foi escravizada por portugueses em tempos coloniais com o objetivo de realizarem trabalhos como os de engenho de açúcar.
Além de dominada e usada enquanto força de trabalho com motivações financeiras (o tráfico negreiro chegou a ser a maior fonte de renda desse período!), também foi uma população subjugada e desumanizada de maneira proposital, visando tornar essas pessoas uma espécie de “trabalhador máquina”, sem vínculos familiares, religiosos ou culturais.
Por meio dessa desapropriação das referências da população negra escravizada, ocorreu um esvaziamento subjetivo do homem negro, que em resumo, perde sua história e que, conseqüentemente, também perde sua humanidade.
Pouco mais de um século atrás, no ano de 1888, houve uma iniciativa de Dom Pedro II em pôr fim à escravidão. No entanto, essa não foi uma decisão bem recebida, uma vez que os senhores de engenho e demais detentores de escravos passariam a perder mão de obra, tendo então que investir em trabalhadores, o que lhes geraria algum custo.
O que se segue em decorrência dessa decisão, é um governo ainda mais intolerante, que burocratizou a abolição da escravatura por meio de leis como a Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários entre outras leis que nada ou pouco favoreciam a população escravocrata. Contudo, a abolição foi decretada após as tantas tentativas de inviabiliza-la.
Porém, mesmo os negros tendo sido libertos, não deixaram de sofrer em sociedade!
Isso porque que não houve por parte do governo nenhum planejamento ou criação de leis para a inclusão das pessoas negras nos espaços públicos, ou projetos de assistência para que essa população tivesse acesso a condições básicas.
Tempos depois, já no século XX, os negros ainda sofriam com questões como a baixa ascensão econômica, segregação social por decorrência de sua história escravocrata, com a pouca influência do governo com relação a políticas de inclusão, entre outras questões se arrastam até a sociedade de hoje, onde o racismo é promulgado pela constituição de 1988 enquanto crime inafiançável e imprescritível, e, no entanto, ainda acontece.
Racismo Estrutural
Esse apanhando histórico acaba dando contorno ou delineando aquilo que chamamos de racismo estrutural.
Com isso, estou dizendo que o racismo deve ser entendido enquanto uma manifestação sociocultural, esquematizada, que privilegia pessoas brancas em detrimento de pessoas negras.
Se pensássemos em um esquema como a pirâmide de Maslow, onde na base da pirâmide está localizada a parcela da sociedade menos privilegiada, enquanto no topo da pirâmide, fica situada a parcela da sociedade com acesso a todos os privilégios, na base ficariam situados os negros, enquanto no topo ficariam situados os brancos.
Importante chamar atenção para dois pontos aqui:
Quando falo em racismo estrutural como “uma manifestação sociocultural, esquematizada, que privilegia pessoas brancas em detrimento de pessoas negras”, não estou querendo dizer que, o tempo todo, pessoas brancas cometem racismo deliberado, ou que estas decisões sejam sempre conscientes, do tipo “vamos privilegiar o branco e prejudicar o negro”.
Geralmente, não é assim que ocorre. A questão é tão sutil e tão enraizada, que muitas vezes um branco que não se considera racista, pode incorrer numa perspectiva racista sem mesmo se dar conta claramente.
De fato, infelizmente, como racismo é “veladamente” ensinado, podemos encontrá-lo até em negros, que o praticam em relação a outros negros.
Claro que existem as manifestações ostensivas de racismo por parte de brancos, mas estas, por mais irônico que pareça, são mais fáceis de se combater justamente por se mostrarem explícitas perante a lei. No entanto, o racismo que mais prejudica é aquele que não aprece claramente. Às vezes, não aparece nem mesmo para quem o pratica.
O segundo ponto para o qual chamo atenção, é que quando falo em “branco” no Brasil, não estou me referindo a uma raça “caucasiana”, por exemplo. Branco no Brasil é quase todo mundo que não é negro. Dentro da nossa cultura, um descendente oriental, por exemplo, ou latino que não tenha traços negros, também terá vantagens em relação ao negro.
Enfim, dentro dessa estrutura racial que foi se estabelecendo durante o período escravocrata, e que se estende até os dias de hoje, outras estruturas foram sendo estabelecidas e influenciam nas diversas maneiras as quais o racismo pode se manifestar.
Um exemplo disso são os efeitos do que se conhece como Colorismo, que foi a tentativa de “embranquecimento” da sociedade brasileira por meio da mistura de raças. O Colorismo tornou a população negra diversa, onde passaram a surgir pessoas negras de pele clara, e essas por sua vez experimentam o racismo de forma diferente dos negros de pele retinta.
Isso também significa que esses negros de pele mais clara, acessam privilégios sociais dos quais o negro de pele retinta não tem acesso. Pode-se dizer então, que na analogia com a pirâmide de Maslow, pessoas negras com tons de pele mais claro, ficam espalhadas entre os demais “degraus” da pirâmide.
Os reflexos dessas vivências racistas e o impacto dessas experiências na subjetividade de pessoas negras são muitos. Posso começar citando a posição socioeconômica, já que este é um dos impactos e diferença mais visível causado pelo racismo.
A população negra no Brasil é mais pobre e também é a população que menos ocupa cargos de elite nas empresas, o que não só denuncia a questão de muitas empresas contribuírem com a manutenção desse racismo ao não contratarem negros para cargos de nível mais elevado ou até mesmo não contratarem negros, como também nos chama a atenção para a escolaridade ou acesso à educação da população negra.
Em alguns casos, muitos jovens negros acabam ou abandonando a escola ou então não investindo o tempo necessário e dedicação aos estudos, devido a necessidade em auxiliar a família economicamente. Isso demonstra que pessoas negras não são incentivadas a ocuparem espaços acadêmicos ou posições de elite em empresas.
Por sua vez, a ausência de referências na mídia, é outro fator de muita importância.
A recorrência de pessoas negras sendo representadas na mídia em cargos como empregadas domésticas, faxineiros, motorista, entre outros cargos de nível hierárquico baixo, é muito maior do que a de negros em cargos de gerencia ou presidência de empresas, ou empreendedores.
Muitas vezes, negros bem-sucedidos na mídia, são aqueles ligados a arte, como cantores por exemplo, enquanto negros produtores de conhecimento, como filósofos, psicólogos, psicanalistas, pesquisadores, cientistas, médicos, entre outras ocupações, são constantemente invisibilizados.
Nossa sociedade, de maneira bastante perversa (e sobretudo estrutural), coloca o indivíduo negro numa posição subalterna, e a todo momento vende a ideia ou a imagem do espaço ao qual a pessoa negra pertence.
Espaço esse composto por cargos de nível hierárquico baixo, espaço que segrega a população negra em comunidades, que por sua vez deixam essa população a margem até mesmo dificultando o acesso a serviços básicos como o de saúde e educação, entre outras implicações e problemáticas que esse espaço socialmente construído implicam na construção subjetiva do sujeito negro (reconhecer-se enquanto ser através do ter, envolvimento com tráfico, drogadição, etc).
Papel do psicólogo Negro
Levando em consideração os aspectos com relação a história da população negra no Brasil e seu histórico de vivências de segregação, qual seria então a importância de um psicólogo negro no processo psicoterápico ou em outra modalidade de cuidado psicológico do indivíduo negro?
Essa é uma questão levada em consideração por pessoas negras que buscam apoio psicológico e que, por vezes, não é bem interpretada por nós psicólogos. Em grande parte, essa má interpretação ocorre por parte de psicólogos não negros.
Faço aqui um alerta: é necessário antes de qualquer julgamento diante dessa demanda, tentar entendê-la!
Quando um indivíduo negro procura um psicólogo também negro, o faz por identificação. Ou seja, esse indivíduo julga que um psicólogo, negro como ele próprio, saberá ouvir e acolher melhor a sua queixa, do que um psicólogo não negro.
Essa identificação, ocorre com relação a outros aspectos físicos avaliados por quem procura um serviço de psicoterapia, como idade, se é casado ou não, se é mulher ou homem, entre outros fatores que nós, profissionais da área, sabemos que não alteram nossa capacidade de acolhimento e compreensão clínica.
No entanto, quando entramos no aspecto racial, o cenário muda, uma vez que pessoas não negras nunca experimentaram uma vivência racista por razões óbvias.
Isso não significa que um psicólogo não negro não tenha amparo teórico, técnico ou experiência suficiente para desenvolver um trabalho de qualidade com pessoas negras.
Mas sim, no que diz respeito a demanda racial, o psicólogo não negro devido à falta de contato com esse conteúdo ou vivência, pode deslegitimar o discurso do paciente negro sobre a implicação do racismo na sua vida, que por sua vez, pode colocar esse indivíduo em uma posição de sofrimento ainda maior.
É claro que todo mundo “pode” deslegitimar um discurso.
E porque o “pode” está grifado na sentença acima? Justamente porque, como vimos na introdução deste texto, frequentemente, pessoas não negras possuem menos contato com essa realidade. E por terem menos contato, podem, com mais frequência ter menos acesso às formas de compreensão e manejo deste tipo específico de sofrimento.
É diferente aqui, por exemplo, de um psicólogo que não é pai ou mãe e que atende crianças. Bem, ele também pode ter menos contato com essa realidade do que àquele que vivenciou a maternidade ou a paternidade. Mas, com certeza, ele teve muito acesso e muito contato com o desenvolvimento infantil e todas as suas questões.
Pois bem, mas eu não lembro de um momento na formação de psicólogo que aborde a questão do racismo ou do sofrimento psíquico causado pelas consequências da discriminação racial, ainda que esta seja uma questão bastante específica e, infelizmente, muito comum no nosso país.
O problema está exatamente na invisibilidade do tema.
Essa não deveria ser uma realidade, pois o profissional de psicologia deveria, por meio de seu conhecimento teórico e prático e por meio de suas técnicas, ser capaz de acolher essa demanda, sendo negro ou não negro.
No entanto, quando uma pessoa negra dá preferência aos psicólogos também negros, entendo que o fazem para sentirem-se reconhecidos e terem seus discursos legitimados, uma vez que pressupõe que o psicólogo negro em algum momento de sua vida também sofreu racismo e, por ter tido esse contato, poderá compreendê-lo e manejá-lo de forma mais eficiente do que aquele que não tem experiência com esse tema.
Esse é um aspecto que pode parecer pequeno ou até mesmo segregacionista, mas que de fato não é.
Pense, por exemplo, em um paciente que conta ao seu psicoterapeuta o quanto o racismo de seu coordenador ou gerente o impossibilita em ser promovido, mesmo tendo esse paciente alcançado os pré-requisitos para a promoção.
Pense agora que esse psicoterapeuta tenha o questionado se esse racismo não é apenas impressão ou que o paciente esteja vendo algo que na realidade não está acontecendo.
A possibilidade de o paciente em questão ouvir esse psicoterapeuta e concordar com ele é muito grande, pois a imagem do psicólogo é a de quem detém a verdade (nós psicólogos temos consciência de que essa é uma imagem idealizada, mas em geral, as pessoas que nos procuram não).
Esse paciente então passa a acreditar que o mérito só depende do empenho dele, quando na realidade seu gestor é de fato racista, e ele nunca poderá alcançar a promoção enquanto gerido por essa pessoa. Imagine o sofrimento desse paciente.
É claro que é comum fantasiarmos a respeito das questões que envolvem uma promoção ou um conflito de trabalho, isso pode acontecer com qualquer um. Porém, ao conhecer a realidade que continua presente e atual com relação à discriminação racial, é preciso colocar este aspecto em questão e ser empático com o sofrimento psíquico decorrente do racismo.
Numa analogia, é como se ao ouvir uma queixa de abuso sexual, você questionasse, antes de qualquer coisa, sobre as roupas que a mulher vestia ou se ela não estaria exagerando no seu relato.
Isso não soa nem um pouco empático ou acolhedor, certo?!
Pois não soa desta maneira porque este é um tema bastante em pauta atualmente, nós estamos tendo contato com essa realidade e compreendendo melhor seu funcionamento e as possibilidades de manejo. Estudamos casos clínicos, os desdobramentos da violência, suas consequências psíquicas…
A proposta aqui é justamente colocar também o racismo em pauta, estudá-lo, compreender seus desdobramentos, para que o primeiro impulso de qualquer pessoa não seja deslegitimar o sofrimento decorrente do racismo.
Tendo essa questão em vista, faz muito sentido uma pessoa negra procurar por um psicólogo negro, que sofreu com racismo e pode acolher e ouvir aquela demanda, de maneira diferente da que um psicólogo não negro faria, por sua falta de contato com essa realidade.
O psicólogo negro por sua vez, pode representar a esse paciente um modelo de sucesso a ser seguido, pode fazer intervenções direcionadas ao fortalecimento e resistência daquele paciente com relação ao racismo e com isso, causar impactos e mudanças na vida do paciente que procura a clínica com essa demanda de ordem identitária e de constituição de subjetividade.
Ainda assim, é importante ressaltar que é possível que psicólogos não negros contribuam no desenvolvimento e no processo psicoterápico de pessoas negras, em casos onde a demanda é de outra ordem que não as citadas acima, ou então, caso esse profissional consiga realizar suas intervenções sem deslegitimar a fala de seu paciente.
Veja, é exatamente esse o motivo deste texto: provocarmos esta reflexão para que a invisibilidade deste tipo de violência não perdure também na psicologia, para que os profissionais compreendam melhor essa temática e possam realmente auxiliar seus pacientes sem pré-supor que o sofrimento decorrente do racismo é um exagero.
Mas, é preciso entender que somos diversos e sobretudo humanos e que mesmo com todo nosso conhecimento técnico e teórico, sempre haverá limitações que por vezes nos impedem de atender determinado público e que, se essa limitação ainda existir em você, sempre haverá outros profissionais que possam acolher essa demanda.
Diogo Salviano é psicólogo, apaixonado pela área clínica e pela forma como o processo psicoterápico é realizado na abordagem psicanalítica, atendendo em psicodiagnóstico e psicoterapia individual (crianças, adolescentes e adultos) com base em psicanálise. É também extremamente interessado em pautas e movimentos sociais, mais especificamente relacionadas as questões raciais, e sonha um dia em poder agregar conhecimentos psicanalíticos e de psicologia social em um livro que será escrito por ele.
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