Autor de obras consagradas na discussão sobre racismo, marxismo e pan-africanismo, o professor e escritor cubano Carlos Moore será um dos destaques do I Seminário FelaKuti da Uerj, que acontece em outubro, quando vai participar de três mesas de debates que também falarão sobre a vida e o legado do grande músico e militante nigeriano (FelaKuti), cuja biografia (Fela: esta vida puta) Moore escreveu em 1982. No dia 4/09, ele conversou com o Jornal do Sindsprev/RJ sobre o que espera do Seminário.
Jornal do Sindsprev/RJ – qual é a sua expectativa em relação ao Seminário FelaKuti da Uerj?
Carlos Moore – Muito grande. O Seminário tem o propósito de levar à universidade uma discussão que por enquanto está fora dela, mas que deve ser o verdadeiro propósito da universidade, que é criar uma interlocução com aquilo que está fora de seus muros. O problema é que a universidade termina por criar obstáculos àqueles que não pertencem à aristocracia acadêmica e a um sistema de pensamento único e hegemônico, como acontece na sociedade. Por isso o Seminário é uma iniciativa extraordinária que eu apoiei desde o início. É uma iniciativa de futuro.
JS – o Sr. vai participar de três mesas de debates no Seminário e uma delas fala sobre ‘marxismo, pan-africanismo e racismo nos movimentos sociais’. O que o Sr. espera desses debates?
Carlos Moore – Em meus trabalhos, estou tentando quebrar uma série de tabus, mitos e resistências, provocando uma discussão. Não é porque eu tenha a verdade ou pretenda ter alcançado uma visão totalizante, na qual, inclusive, não acredito que possa existir. A vida é complexa demais para ser reduzida a teoremas sociais ou formulas algorítmicas circulares. Para mim, o racismo é o problema mais sério que os seres humanos têm diante de si. Os marxistas, por exemplo, dizem que não, que o problema mais sério é a luta de classes, mas o racismo está pautando a luta social, pois a escravidão racial não é recente e, ao contrário do que a maioria das pessoas supõe, remonta há mais de mil anos. Logo, o racismo está há muito tempo estruturando a sociedade, a visão religiosa, os padrões estéticos e culturais, o imaginário social e um monte de coisas. O racismo é um fator histórico estruturante. Essa é a questão. Trata-se de um arranjo sistemico que engloba a totalidade das interações entre os seres humanos. Mas, para enxergá-lo desse modo, há que vencer uma serie de obstáculos, incluindo os obstáculos epistemológicos.
JS – e quais são essas dificuldades?
Carlos Moore – Primeiro, o fato de que a maioria dos acadêmicos e intelectuais não quer discutir essas questões a fundo, pois existe um tabu que limita o racismo a questões episódicas, como se se tratasse de um epifenômeno. Assim, quando acontece um caso qualquer de racismo, ele é identificado como um “incidente”, o que contribui para obscurecer o que realmente seja o racismo. Digo isto porque o racismo não é algo episódico ou um epifenômeno. Na verdade, o racismo é uma visão coletiva, derivada de uma forma específica de consciência histórica dotada de sua própria autonomia. É uma estrutura sistêmica, um imaginário social global, o que é outra coisa que um “incidente”. É algo enorme, que paira sobre nossas consciências e se estrutura através das consciências individuais e coletivas. E, claro, ele se converte em tipologias ideológicas. Mas o racismo não é uma ideologia em si, como pretende a maioria dos acadêmicos que têm se debruçado sobre esse aspecto da vida dos humanos.
JS – e de que forma ele se estrutura?
Carlos Moore – De inúmeras formas. O racismo está estruturado em diferentes lugares geo-culturais e existem vários modelos de racismo. Por exemplo, o racismo no Brasil, na Colômbia, em Cuba, no Equador, na Republica Dominicana pertence a um modelo específico que se estruturou na península Ibérica. Já no mundo árabe é um outro modelo de racismo e na Ásia meridional, ou na Ásia septentrional, por sua vez, também é diferente. São modelos de racismos que vêm de contextos históricos próprios e que são específicos. Por isso é tão importante identificarmos, primeiro, qual o modelo de racismo a que nos referimos.
JS – qual a sua opinião sobre as políticas de ação afirmativa e sobre os movimentos por reparação para negros e indígenas?
Carlos Moore – A origem das ações afirmativas é indiana. Foi na Índia que, pela primeira vez, se colocou a necessidade de introduzir no sistema jurídico, político etc uma série de medidas reparatórias e compulsórias, para que o grupo lesado – os chamados “intocáveis” ou dalit –tivessem acesso aos recursos da sociedade. Foi uma invenção de engenharia social feita pelo extraordinário dirigente dos “intocáveis” dravidianos, BhimraoRamjiAmbedkar, homem brilhante que não vacilou em combater o Mahatma Ghandi sobre essa questão. A partir daí, essa ferramenta migrou para outros lugares, como Malásia, EUA, a África do Sul, etc. Assim, as ações afirmativas logo se converteram em algo que serviu a grupos historicamente lesados, como as mulheres, as pessoas fisicamente impedidas. Enfim, a todos os grupos que estavam sendo lesados coletivamente.
JS – e as ações afirmativas no Brasil?
Carlos Moore – Quando chegam ao Brasil, nos anos 90, as ações afirmativas já têm toda uma história de aplicação e de resultados e conseqüências que podem ser medidas. O interessante é que os debates pró e contra, no Brasil, se parecem com os que acontecem no mundo inteiro. Quem é contra diz que as ações afirmativas não são boas por serem ‘anti-democráticas’, ‘anti-republicanas’ e desvalorizam o mérito, beneficiando pessoas que vão ‘mediocrizar’ as instituições. Essas são as posições dos setores conservadores da sociedade, dos que não querem que a sociedade mude. São essas pessoas as que constantemente falam da “superação” do racismo.
JS – há superação do racismo?
Carlos Moore – De que « superação » estariamos falando — da coletiva ou da individual ? O racismo pode ser superado, sim, pelo esforço consciente e moral em nível individual. Não é o caso do racismo em nível coletivo, o que implica toda uma sociedade, todas as sociedades e todo o planeta. Enxergado como uma estrutura global, como uma ordem sistêmica, o racismo não pode ser « superado» coletivamente, embora efetivamente ele possa ser destruído numa sociedade especifica. Mas ele renasceria de suas cinzas, como um Fenix., pois o racismo é um fenômeno permanente da sociedade. O racismo pode unicamente ser destruído no contexto especifico de uma sociedade e somente como o resultado final de toda uma lógica coerente e global, inclusive uma estratégia de reparações.
JS – e sobre as reparações? Acaso não se trata das ações afirmativas?
Carlos Moore – As ações afirmativas não são reparações. São algo que visa a afirmar direitos, que é o direito, como o direito de os jovens negros entrarem na universidade, e isso não é reparação. Os jovens negros são cidadãos de um país, devem usufruir de todos os direitos cabíveis sob as leis desse país. Ir a uma praia, ter acesso ao cinema, entrar num ônibus e sentar em qualquer assento livre ou obter emprego num banco, numa empresa qualquer, não constitui de forma alguma uma reparação. A dessegregação não é uma reparação, é a imposição de direitos cidadãos. É por isso que, politicamente, é um erro considerar as políticas públicas de ações afirmativas (dessegregação, quotas, etc) como medidas reparatórias. Chamar as quotas de reparação é um grande equívoco. As quotas são puramente medidas de dessegregação racial.
PS – reparação seria o que?
Carlos Moore – Reparação é um processo que conjuga dois planos totalmente diferentes: o plano moral e o plano material. Reparação é concebível quando um grupo coletivamente aceita a responsabilidade histórica de ter lesado outro grupo de uma maneira irreparável e transfere essa responsabilidade para o Estado, instrumento de toda a coletividade cidadã, e que é capaz de indenizar. Aparentemente, estaríamos diante de um absurdo, na medida em que nenhum grupo que tenha sofrido genocídio, por exemplo, pode ser reparado. Veja bem. Cinco séculos de escravidão racial não podem ser reparados. É um mal irreparável. Então, nas conversas sobre reparações, um dos dois grupos, aquele que usufrui do crime histórico, terá de assumir a responsabilidade por algo que não tem reparação e por isso aceitará transferir essa responsabilidade histórica iniludível para o Estado. O Estado é o único intermediário capaz de reparar aquilo que é irreparável.
JS – reparar aquilo que não é reparável?
Carlos Moore – Parece uma tautologia, mas não o é. Na verdade, a reparação implica proceder à ritualização de um crime que não pode ser reparado. Por isso é impossível cometer esse crime e dizer para esquecer o passado. O problema é quando o crime é transformado em discussão lúdica, de salão, como fazem com o racismo, que é discutido sem base histórica. A reparação é outra coisa. É algo necessário que contempla, globalmente, os danos históricos cumulativos que obstaculizam o desenvolvimento de um grupo historicamente lesado. Sem reparação, não se poderá pôr fim ao racismo em nenhuma sociedade específica. Isso pela simples razão de que o racismo se alimenta agressivamente das desigualdades sócio-econômicas, políticas e culturais que ele mesmo gera, de geração em geração. Sabemos que tais desigualdades não são pontuais, senão historicamente cumulativas.
JS – como distinguir aquelas políticas públicas que firmam um direito cidadão das reparações propriamente falando ?
Carlos Moore – Os Judeus conhecem bem a distinção entre as políticas públicas destinadas a fazer respeitar um direito cidadão e a reparação por um crime que não tem reparação moral possível, como foi o holocausto praticado contra eles durante a II Guerra Mundial. Reparação implica, ao mesmo tempo, indenização concreta e reconhecimento de uma culpa irredimível. A reparação implica: uma assunção individual e coletiva de culpa [transferida para um Estado] por um crime histórico julgado como moralmente irreparável; e a elaboração consciente de um plano global indenizatório para a comunidade contra a qual foi cometido o crime histórico em questão. A situação da África do Sul, 20 anos após a abolição do regime de Apartheid, é um exemplo flagrante do perigo que consiste em montar encenações como a da chamada “Comissão de Verdade e Reconciliação” sem colocar em pé um verdadeiro plano estratégico global de reparações que mude de maneira tangível a vida dos que foram lesados pelo Apartheid.
JS – o Sr. poderia resumir essa questão?
Carlos Moore – A África está hoje nas condições lamentáveis em que está não por causa da ação de um punhado de miseráveis ditadores, mas pelos estragos incomensuráveis que os “ tráficos negreiros“, agravados por um século de violenta colonização direta, infligiram a esse continente e a seus povos desde o século VIII para cá. Se os negros estão nas miseráveis condições em que estão no mundo inteiro, da Índia até a Argentina, odiados, humilhados, esmagados, não é por causa de um defeito genético, mas por causa do racismo, das políticas concretas de discriminação racial e dos séculos que viveram submetidos à escravidão racial. Como mudar esse quadro todo sem o desmantelamento de todo o edifício opressor edificado nas costas desses povos e contra eles?
JS – somente um processo indenizatório?
Carlos Moore – A imaginação política pode levar a todo tipo de invenções de engenharia social positiva. Mas por enquanto não vejo outro processo estratégico capaz de ajudar a inverter o extraordinário balanço socioeconômico, político, psicológico e cultural negativo que pesa sobre a raça negra, em cada país individualmente e em nível planetário, que não inclua a dinâmica da reparação. Só um plano estratégico coerente e global de reparação, elaborado segundo as circunstâncias específicas de cada sociedade, pode desarticular o emaranhado de desigualdades raciais historicamente constituídas. Desigualdades que gradativamente ampliam-se de geração em geração para constituir, enfim, um insuportável e maldito legado de desvantagens sistemáticas para uns e uma feliz herança para outros em forma de benesses automáticas, direitos consagrados e privilégios intocáveis. A reparação é a única forma possível de encarar o crime histórico dos “tráficos negreiros” e da escravidão racial, eventos históricos que nunca poderão ser moralmente reparados. Sem reparação não há possibilidade alguma de ver a luz no fim do túnel do racismo e da opressão racial em todas as suas formas.
JS – o Sr. acha que o Seminário vai contribuir para que mais pessoas, até do movimento negro, conheçam FelaKuti e se interessem por ele?
Carlos Moore – A importância de o Seminário se focar no Fela é fundamental, pois a história se faz coletivamente, como vimos nas jornadas de junho do ano passado, nas manifestações, mostrando que algo estava acontecendo no país. Fela é importante porque é não somente um indivíduo, mas um fenômeno extraordinário que eu vi acontecendo na África, que foi uma pessoa concentrar em torno de suas ideias e de seu estilo de vida toda uma recusa em bloco da sociedade. Fela lutou em tantas frentes diferentes, chegando a impugnar o status quo religioso na África. E isso é difícil porque as pessoas acham que a África oficial é a do candomblé, mas a África oficial não é isso. A África oficial é a do cristianismo, do Islã, que é a África dominante. A África do candomblé está reprimida. Então, Fela saiu dessa África cristã e muçulmana, lançando-se a impugnar o modelo de pan-africanismo que chegou ao poder e se estatizou em máquina contra o povo, um pan-africanismo nacionalizado que se converteu em inimigo do povo. Fela se lançou contra isso e denunciou outro problema que as pessoas percebiam muito mal naquela época, que era o da chegada das multinacionais, do capital circular transnacional. FelaKuti já tinha percebido que havia um monstro além das fronteiras, que já tinha submetido os governos à sua própria ordem, monstros sem nação [beast of no-nation].
JS – e como FelaKuti lutava contra isso?
Carlos Moore – Com frases muito acessíveis para fazer as pessoas compreenderem que os dirigentes eram marionetes de um sistema maior que não tinha fronteiras. Eu me lembro que não havia esse termo ‘multinacionais’. As independências africanas, por exemplo, se construíram com base em lutas nacionalistas e os intelectuais africanos eram nacionalistas. Aí veio o Fela e disse que o nacionalismo não era nada positivo. Era um pensamento tão subversivo nos anos 70 que os intelectuais, até os de esquerda, recusaram esse pensamento. Fela falou que queria quebrar a Nigéria em quantos pedaços fossem necessários e que cada grupo decidisse por si. Fela ficou ao lado da independência de Biafra, o que foi um escândalo, no momento em que o estado estava numa guerra que matou 2 milhões de pessoas para manter a Nigéria como estado federal. Fela disse que o verdadeiro pan-africanismo residia na união voluntária dos povos que foram submetidos pela colonização europeia e árabe. Aí, ele estava inovando.
JS – e quais eram as outras inovações de Fela?
Carlos Moore – A própria visão do corpo, que eu não tinha. FelaKuti celebrava o corpo, superando a vergonha de partes do corpo, como seios, vagina, pênis. Fela dizia que eram partes como quaisquer outras e que podiam e deviam nos dar prazer. Essa conversa era subversiva no Ocidente e mais ainda na África. Com isso, Fela começou a mostrar contradições que a sociedade africana já não podia assumir porque as elites africanas eram puritanas, fazendo guerras contra os homossexuais, as prostitutas, etc, coisa que não existia antes da colonização, não porque a sociedade africana tivesse uma visão ideal em todos esses aspectos, mas porque tinha uma visão diversificada, que em nenhum momento demonizava a orientação sexual das pessoas. A perseguição feroz aos homossexuais e às lésbicas que estamos vendo acontecer hoje praticamente em todo o continente africano é algo recente e se deve, em grande parte, às leis que os colonizadores deixaram atrás e, mais recentemente, à ação pujante dos grupos evangélicos.
JS – o Sr. tem exemplos disso?
Carlos Moore – Na África havia festas nas quais homens e mulheres ‘mudavam de sexo’, ou seja, homens agindo como mulheres e vice versa, homens se feminizando e mulheres se masculinizando, começando pelas danças e gestos. Eram festas nas quais se ritualizava a alteridade de gênero. Isso acontecia em sociedades marcadas pelas estruturas sociais matricêntricas. No entanto, com a chegada do Islã e sua visão intolerante e repressora, que é a mesma visão do cristianismo e do judaísmo, a visão patriarcal e anti-corpo se instalou para valer. E com essas religiões patriarcais veio a idéia de que o pecado vem da mulher. Não estou idealizando as sociedades africanas, apenas dizendo que houve uma mutação profunda delas, levando a uma repressão ao corpo. E foi contra isso que Fela lutou, resgatando a África que havia anteriormente ao Islã e ao Cristianismo, mesmo sendo Fela influenciado pela visão islâmica e cristã em algumas concepções.
JS – todas essas questões vão estar presentes nos debates?
Carlos Moore – Com certeza. O Seminário vai apresentar o Fela real, com todas as suas contradições e contribuições, que foram imensas. A cada dia as sociedades africanas estão descobrindo o gigante que foi FelaKuti. Muito mais que um dissidente político, Fela lutou contra a forma como a sociedade está constituída, contra aqueles que a regem. Estava recusando as ideologias, os dogmas e os tabus, em nome de uma visão libertária e solidária.
JS – Por que o movimento negro ainda não conhece FelaKuti?
Carlos Moore – Simplesmente porque Fela ainda não entrou no movimento negro como um pensamento, como uma proposta libertária e solidária. O movimento negro ainda não vê a conexão entre Fela e o candomblé, por exemplo. Só agora é que os ativistas negros estão começando a compreender que Fela era muito mais que a música de que as pessoas gostam. No Brasil, aliás, a música de Fela é mais apreciada na comunidade branca de classe media que na comunidade negra e pobre, onde ainda não penetrou. A proposta que veio com essa música ainda não foi compreendida em toda a sua extensão. Mas eu espero que um dia seja. Eu diria, inclusive, que as coisas começam a andar nessa direção.
Texto: André Pelliccione/Foto: Mayara Alves
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