ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
Este 6 de outubro assinala o centenário do nascimento de Ulysses Guimarães. É um momento apropriado para celebrar sua trajetória, 24 anos após sua morte, em 12/10/1992, em trágico acidente de helicóptero. Seu corpo desapareceu no mar, de que tanto gostava. Por isso ele, que estimava a poesia desde os tempos de aluno da Faculdade de Direito da USP, apreciaria a lembrança dos versos de Cecilia Meirelles: “Para adiante! Pelo mar largo!/ Livrando o corpo da lição frágil da areia!/ Ao mar! – Disciplina humana para a empresa da vida!”
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A empresa da vida do dr. Ulysses foi a política. Viveu weberianamente para a política, e não da política, e nela encontrou sua vocação e seu destino. “A política foi a abrangência do seu universo. Política como arte, não como artimanha”, para me valer de suas palavras a respeito de Rui Barbosa. Política de quem tinha as mãos limpas, de quem sabia que “quem só cuida de coisas pequenas torna-se pequeno; a ninharia é o ofício do pigmeu e o terreno dos répteis” e que a obra dos estadistas “não é forjada pelo varejo da rotina ou pela fisiologia do cotidiano”.
A política foi para ele uma convocação vital, um ofício que passava pelo perigo, pelo desafio, pelo surpreendente, pela escalada e pela queda, como definiu ao celebrar Tancredo Neves em 1987. As palavras são reveladoras da experiência das vidas paralelas de dois eminentes brasileiros que disputaram o espaço público do País com íntegra visão do bem comum, mas sem rivalidades fratricidas, sensíveis ao respeito mútuo que os aproximava.
Dr. Ulysses foi o grande timoneiro de uma campanha civilista, que forjou a sua identidade política. Projetou-se destemidamente com sua mobilizadora anticandidatura presidencial em 1973 pelo MDB do “navegar é preciso”, consolidada nos anos 80 na campanha das Diretas-Já. Foi graças à sua liderança no MDB e no PMDB, na sua origem a grande frente de resistência civil ao regime militar, que o País logrou alcançar, pacificamente e pela atuação política, a redemocratização. Soube aglutinar “autênticos” e “moderados”, reunir forças e vontades, gerando poder pela ação conjunta para propiciar a liberação do Brasil do peso do arbítrio discricionário.
Completou a tarefa presidindo a Constituinte, que institucionalizou o Estado Democrático de Direito. Este só alcançou o equilíbrio jurídico do movimento no texto constitucional graças à sua autoridade na condução dos trabalhos. A “Constituição cidadã” logrou dosar nas suas normas a força de aceleração necessária para a transformação social que o País almejava e a força da contenção para lidar com os riscos dos impulsos fragmentários das facções.
Dr. Ulysses dizia que “o estadista é o arquiteto da esperança”. Conferiu dignidade à política ao constituir-se como o arquiteto da esperança da liberdade e da democracia no País.
Entre as suas virtudes estava a coragem, no seu entendimento, “a primeira virtude do estadista. Sem ela, todas as demais desaparecem na hora do perigo, como hierarquizou Churchill”. Sabia diferenciar oportunidade, que “é servir o tempo”, de oportunismos, que “é servir-se do tempo”. Entendia os riscos inconsequentes da impaciência: “Joaquim Nabuco admoesta que o tempo não perdoa o que se faz sem ele”. Compreendia que o estadista “quer a ordem justa” e “se antecipa à rua na solução dos problemas sociais. Está com a rua, mas não na rua”. Não fazia “política com o fígado, conservando o rancor e o ressentimento na geladeira”.
Destaco a firmeza com que lidou com as quedas, muito especialmente a derrota eleitoral para a Presidência em 1989 e os abandonos subsequentes que o levaram à planície política, da qual se estava erguendo quando a morte o colheu.
Seu aprendizado de cidadania, como tantos que o antecederam e lhe sucederam, deu-se na atmosfera da política estudantil na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Participou das atividades do Centro Acadêmico XI de Agosto, foi em 1940 o primeiro vice-presidente da UNE e na tradição das Arcadas associou à política o gosto pelas letras. Organizou a antologia Poesia sob as Arcadas (1940), que mereceu registro de Antonio Candido no primeiro número da revista Clima. Daí a origem da força da sua oratória, do apreço pela cultura e do gosto pela palavra. “Gosto das palavras. Se fosse poeta, seria parnasiano ou simbolista. A mim cabe a crítica de Flaubert: Lambe as palavras, como a vaca lambe a cria.”
As “artes da política”, que exerceu com pertinente tenacidade, ele foi adquirindo na sua militância no PSD, o partido do equilíbrio do sistema político de 1945 e 1964, pelo qual se elegeu deputado estadual em 1947 e quatro vezes deputado federal. Dizia: “O PSD foi o grande laboratório político das soluções brasileiras”. Nele “não havia improvisação”.
Ele sabia que “o jeito” também é força. Se vence obstáculos e antagonismos, é força. Foi com esse lastro que, mesclando, numa dialética de complementaridade, moderação e rebeldia inconformista, exerceu o mandato parlamentar, eleito outras sete vezes pelo MDB e PMDB, tendo presidido a Câmara quatro vezes, na última acumulada em 1987 na já destacada lúcida presidência da Constituinte.
Sua única e breve experiência no Executivo foi a de ministro da Indústria e Comércio de 1961 a 1962, no Gabinete Tancredo Neves, na vigência do regime parlamentarista que sucedeu à renúncia de Jânio Quadros. Dessa fase não posso deixar de destacar a qualidade da sua avaliação do sistema multilateral do comércio na reunião ministerial do Gatt em 27/11/1961.
Era, em suma, como se classificava,“do gênero parlamentar; espécie deputado”. Foi como parlamentar, em que o exercício bem-sucedido do poder não é monocrático, mas requer aglutinar para conduzir, que se fez o estadista da esperança, que tanto contribuiu para a vida política brasileira. Evoco com saudades a sua memória com o grato reconhecimento adicional de quem teve o privilégio de com ele conviver e aprender.
*Professor emérito da USP, ministro das relações exteriores e do desenvolvimento, indústria e comércio no governo FHC, é membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Paulista de Letras
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A empresa da vida do dr. Ulysses foi a política. Viveu weberianamente para a política, e não da política, e nela encontrou sua vocação e seu destino. “A política foi a abrangência do seu universo. Política como arte, não como artimanha”, para me valer de suas palavras a respeito de Rui Barbosa. Política de quem tinha as mãos limpas, de quem sabia que “quem só cuida de coisas pequenas torna-se pequeno; a ninharia é o ofício do pigmeu e o terreno dos répteis” e que a obra dos estadistas “não é forjada pelo varejo da rotina ou pela fisiologia do cotidiano”.
A política foi para ele uma convocação vital, um ofício que passava pelo perigo, pelo desafio, pelo surpreendente, pela escalada e pela queda, como definiu ao celebrar Tancredo Neves em 1987. As palavras são reveladoras da experiência das vidas paralelas de dois eminentes brasileiros que disputaram o espaço público do País com íntegra visão do bem comum, mas sem rivalidades fratricidas, sensíveis ao respeito mútuo que os aproximava.
Dr. Ulysses foi o grande timoneiro de uma campanha civilista, que forjou a sua identidade política. Projetou-se destemidamente com sua mobilizadora anticandidatura presidencial em 1973 pelo MDB do “navegar é preciso”, consolidada nos anos 80 na campanha das Diretas-Já. Foi graças à sua liderança no MDB e no PMDB, na sua origem a grande frente de resistência civil ao regime militar, que o País logrou alcançar, pacificamente e pela atuação política, a redemocratização. Soube aglutinar “autênticos” e “moderados”, reunir forças e vontades, gerando poder pela ação conjunta para propiciar a liberação do Brasil do peso do arbítrio discricionário.
Completou a tarefa presidindo a Constituinte, que institucionalizou o Estado Democrático de Direito. Este só alcançou o equilíbrio jurídico do movimento no texto constitucional graças à sua autoridade na condução dos trabalhos. A “Constituição cidadã” logrou dosar nas suas normas a força de aceleração necessária para a transformação social que o País almejava e a força da contenção para lidar com os riscos dos impulsos fragmentários das facções.
Dr. Ulysses dizia que “o estadista é o arquiteto da esperança”. Conferiu dignidade à política ao constituir-se como o arquiteto da esperança da liberdade e da democracia no País.
Entre as suas virtudes estava a coragem, no seu entendimento, “a primeira virtude do estadista. Sem ela, todas as demais desaparecem na hora do perigo, como hierarquizou Churchill”. Sabia diferenciar oportunidade, que “é servir o tempo”, de oportunismos, que “é servir-se do tempo”. Entendia os riscos inconsequentes da impaciência: “Joaquim Nabuco admoesta que o tempo não perdoa o que se faz sem ele”. Compreendia que o estadista “quer a ordem justa” e “se antecipa à rua na solução dos problemas sociais. Está com a rua, mas não na rua”. Não fazia “política com o fígado, conservando o rancor e o ressentimento na geladeira”.
Destaco a firmeza com que lidou com as quedas, muito especialmente a derrota eleitoral para a Presidência em 1989 e os abandonos subsequentes que o levaram à planície política, da qual se estava erguendo quando a morte o colheu.
Seu aprendizado de cidadania, como tantos que o antecederam e lhe sucederam, deu-se na atmosfera da política estudantil na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Participou das atividades do Centro Acadêmico XI de Agosto, foi em 1940 o primeiro vice-presidente da UNE e na tradição das Arcadas associou à política o gosto pelas letras. Organizou a antologia Poesia sob as Arcadas (1940), que mereceu registro de Antonio Candido no primeiro número da revista Clima. Daí a origem da força da sua oratória, do apreço pela cultura e do gosto pela palavra. “Gosto das palavras. Se fosse poeta, seria parnasiano ou simbolista. A mim cabe a crítica de Flaubert: Lambe as palavras, como a vaca lambe a cria.”
As “artes da política”, que exerceu com pertinente tenacidade, ele foi adquirindo na sua militância no PSD, o partido do equilíbrio do sistema político de 1945 e 1964, pelo qual se elegeu deputado estadual em 1947 e quatro vezes deputado federal. Dizia: “O PSD foi o grande laboratório político das soluções brasileiras”. Nele “não havia improvisação”.
Ele sabia que “o jeito” também é força. Se vence obstáculos e antagonismos, é força. Foi com esse lastro que, mesclando, numa dialética de complementaridade, moderação e rebeldia inconformista, exerceu o mandato parlamentar, eleito outras sete vezes pelo MDB e PMDB, tendo presidido a Câmara quatro vezes, na última acumulada em 1987 na já destacada lúcida presidência da Constituinte.
Sua única e breve experiência no Executivo foi a de ministro da Indústria e Comércio de 1961 a 1962, no Gabinete Tancredo Neves, na vigência do regime parlamentarista que sucedeu à renúncia de Jânio Quadros. Dessa fase não posso deixar de destacar a qualidade da sua avaliação do sistema multilateral do comércio na reunião ministerial do Gatt em 27/11/1961.
Era, em suma, como se classificava,“do gênero parlamentar; espécie deputado”. Foi como parlamentar, em que o exercício bem-sucedido do poder não é monocrático, mas requer aglutinar para conduzir, que se fez o estadista da esperança, que tanto contribuiu para a vida política brasileira. Evoco com saudades a sua memória com o grato reconhecimento adicional de quem teve o privilégio de com ele conviver e aprender.
*Professor emérito da USP, ministro das relações exteriores e do desenvolvimento, indústria e comércio no governo FHC, é membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Paulista de Letras
Folha de São Paulo, 18/09/2016
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