domingo, 4 de maio de 2014
MICHAEL FASSBENDER TRADUZ A LOUCA MENTE DO SINHÔ EM "12 ANOS DE ESCRAVIDÃO"
do site cult&pópi
Michael Fassbender como Edwin Epps. Reprodução/Internet
No século 18, Rousseau sugeriu que todo “homem” nasce “bom” e que a sociedade seria a responsável pela degeneração do ser humano. No filme “12 Anos de Escravidão” o expectador é forçado a testemunhar a representação da degenareção do caráter humano pela qual a população branca foi exposta. Isto acontece simplesmente pelo fato de ser impossível assistir o filme sem se emocionar com a fantástica atuação de Michael Fassbender.
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Esta é a terceira vez que o ator Michael Fassbender e o diretor Steve McQueen trabalham juntos. A primeira vez foi no filme “Hunger” (2008) e depois em “Shame” (2011), dois filmes que foram notados positivamente pela crítica. E neste último e mais consagrado projeto do diretor inglês, a atuação de Michael Fassbender se torna o ponto alto da segunda parte da narrativa do filme, atuação que lhe rendeu a indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante deste ano.
Em “12 Anos de Escravidão” Michael interpreta o personagem Edwin Epps, o segundo “dono” de Solomon Northup, de uma maneira que foge do simples retrato de um senhor de escravos mau e desumano. Nas mãos de Fassbender, Edwin Epps se torna um ser humano em conflito.
Em uma entrevista no ano passado para o Movie Talk, Fassbender falou sobre a construção deste seu personagem. Ele revelou que esta construção se inciou pelo amor que Edwin sentia por uma de suas escravas, Patsey, e que a violência contra ela seria uma forma de acabar com aquele amor, mas servia, no final, para intensificá-lo. Para o ator, este conflito nasce do fato de Edwin ter sido incapaz de entender o sentimento que ele sentia por Patsey, “ele não entendia aquela informação”.
Michael Fassbender como Edwin Epps. Imagem: Fox Searchlight Films; Reprodução/Internet
O ator ainda acrescenta que não construiu o personagem como um racista, mas sim como um homem vivendo um específico momento da história, momento no qual agir da maneira que Edwin agia, era a norma. Fassbender diz não entender a palavra “evil” (mau, no sentido diabólico) e por isso sentiu Edwin como “a manifestação do horrendo da escravidão,” como “o furúnculo na pele da sociedade, oposto ao que teria sido um senhor de escravos evil” já que ele “não conseguiria abordar o personagem daquela maneira” e por isso procurou “encontrar um ser humano nele”.
O traço de humanidade que Fassbender deu ao personagem tornou o filme ainda mais pungente por relembrar aos seres humanos da atualidade que as atrocidades cometidas durante o período de escravidão foram atos praticados por seres humanos contra outros seres humanos. As ações do personagem Edwin Epps podem parecer loucura porque foram loucuras e também mostra que o período de escravidão, obviamente, não afetou tão somente os corpos e mentes escravizados dos negros africanos no novo mundo, mas que aquele foi um sistema que também devorou as mentes e os corpos—e por que não dizer, a alma—dos donos de escravos.
A construção tecnicamente brilhante do personagem pelo ator Michael Fassbender, ilustra este poder insano que foi criado e sancionado pelas normas, pelas convenções, pelos pactos socioeconômicos daquela época. O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau escreveu seu livro “O Contrato Social” (1762) durante o período economicamente glorioso da Europa sustentado pela escravidão africana. Em sua obra ele observa a criação social do direito de possuir escravos dentro de sua tese maior que define o “contrato social” como um acordo entre indivíduos para a criação de uma “sociedade”. Isto é, “o contrato é um pacto de associação, não de submissão”. Rosseau diz: “Uma vez que homem nenhum possui uma autoridade natural sobre seu semelhante, e pois que a força não produz nenhum direito, restam pois as convenções como base de toda autoridade legítima entre os homens”.
Edwin Epps não nasceu “mau”, mas foi degenerado pelo seu privilégio como homem branco dentro do sistema capitalista, aprendendo a guiar a sua vida—e outras vidas—a partir desta norma. Epps age como louco, insano, como um psicótico. Epps abusa do seu poder simplesmente porque ele pode. Mas a atuação de Fassbender também nos diz que o personagem é um ser humano infeliz. Muito embora ele use a bíblia para justificar seus atos, de alguma forma ele ainda sofre por dentro. Ele bebe, ele surta em absoluta ira, ele tortura, ele estupra, ele comete atos diabólicos. E ele se mostra um homem imaturo e mimado ao brincar de bonecos com seus escravos quando os faz bailar por puro entretenimento. Ele lida com o poder de maneira excêntrica ao mesmo tempo em que tenta equilibrar fortes sentimentos humanos: o amor, o ódio, e também omedo.
Michael Fassbender como Edwin Epps. Reprodução/Internet
Sim, o medo. O senhor de escravos ao lidar com as regras econômicas de produção era também forçado a conviver constantemente com o medo. Era mais do que comum que o número de escravos fosse muito superior ao número de brancos nas sociedades escravocratas. Na população branca este fato gerava um grande medo em relação a possíveis rebeliões, mesmo que esta possibilidade fosse inconcebível na cabeça escravocrata, pois contrariava todas as teorias criadas para provar a inferioridade do negro.
Mas é após a independência do Haiti em 1804, que se tornou a primeira nação livre e liderada por ex-escravos nas Américas, que este medo de rebeliões se torna uma realidade. E é com o aumento do “medo” que também aumenta o rigor na violência usada sobre a população escrava como forma de discipliná-la e aumentar sua submissão ao branco.
Neste contexto de alerta máximo, os Estados Unidos foram altamente atingidos por este medo, exatamente pela proximidade do Sul escravocrata do país às ilhas caribenhas, fato que enriquece o entendimento do personagem Edwin Epps e a sua brutalidade excessiva sobre os seus escravos.
cê vai bater nela. Bata nela! Bata nela!”
Absolutamente tudo na escravidão, incluindo o domínio e a submissão criada pela norma escravocrata, tinha um único objetivo: o lucro econômico. Controlar o medo através do medo, era assegurar o lucro financeiro. Aquela foi a fase primitiva do capitalismo em que este sistema econômico se mostrou em sua forma mais cruel e degradante. Por isso não é surpresa vermos no filme não tão somente uma cena mostrando a enorme preocupação de Edwin Epps com a produtividade de seus escravos.
Consequentemente, não é surpresa vermos a escrava mais produtiva tornando-se o objeto de desejo sexual de Edwin Epps. E dentro deste contexto, não deixa de ser interessante o fato de que o primeiro navio negreiro construído nos Estados Unidos, em 1636 no estado de Massachusetts, tenha sido batizado de “Desire”, que significa “desejo” em português. Um desejo que se torna uma obsessão pela riqueza, e pelo poder.
Hoje em dia, todo homem ainda nasce “bom”, mas o privilégio concedido ao branco ainda existe nas várias ex-nações escravocratas, aquele mesmo velho privilégio que criou as mazelas de insanidade durante a escravidão. E muito embora haja uma explicação para a existência deste privilégio nos dias de hoje, esta existência só se torna compreensível através da própria história do capitalismo que se perpetuou enquanto um sistema classista e fundamentalmente racista, evidenciando assim que o “contrato social” ainda é puramente um pacto de submissão.
Isto é, aquele velho medo e as loucuras do sinhô ainda continuam.
Com certeza, depois deste filme, uma nova colaboração entre Michael Fassbender e Steve McQueen torna-se algo a ser aguardado com bastante ansiedade.
c&p
Fonte: imdb; UESC - Universidade Estadual de Santa Cruz, “Além do medo: a construção de imagens sobre a revolução haitiana no Brasil escravista (1791 – 1840)”, de Washington Santos Nascimento.; Wikipedia
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