sexta-feira, 19 de agosto de 2016

CAPITALISMO DO DESASTRE - CHOQUE E ANESTESIA NA CULTURA POLÍTICA DO BRASIL ATUAL

REVISTA CULT - MÁRCIA TILBURI



Gerhard Richter, Festa, 1963

Gerhard Richter, Festa, 1963
Em A Doutrina do Choque, ascensão do capitalismo de desastre (2008) Naomi Klein expôs o nexo entre as ditaduras latino-americanas e a economia-política neoliberal criada e difundida por economistas e governos dos Estados Unidos. Seu objetivo era apresentar aspectos técnicos do que ela chama “capitalismo de desastre”, aquele que depende da produção do choque – seja econômico, seja político, seja subjetivo – e que sobrevive às custas de todo tipo de catástrofe, seja da natureza, seja da política. Um dos seus exemplos é o 11 de setembro, data a partir da qual massas inteiras pelo mundo afora passaram a viver desorientadas e assustadas em função de um choque.
Aqui no Brasil vivemos um choque com o golpe – um arranjo entre a imprensa, sobretudo a televisão, juízes, deputados e senadores, pastores, corporações nacionais e internacionais que vivem do mercado e toda uma máfia econômica e política comprazem-se nesse momento com o fim da democracia brasileira. Nesse momento, as Olimpíadas servem de ópio para o povo. Se formos cínicos diremos: que bom, melhor para o povo, afinal sofre-se menos com anestesia.
Anestesia é o que não se usa na hora do choque, apenas depois, no momento em que o corpo e a mente devem entrar na fase de aceitação do processo. Nesse momento, aceitamos o golpe como algo inevitável. Os mais anestesiados, bem como aqueles que vão ganhar mais com o golpe (sim, alguns poucos ganharão algo como um animal de rapina…), insistem em dizer “impeachment”, uma palavra anestesiadora. Uma espécie de depressão cívica acomete apenas aqueles para quem a democracia fazia alguma diferença.
Temos que parar para pensar no que a palavra democracia ainda tem a nos dizer nesses tempos de má fé, maldade e burrice aproveitadora.
A tortura
Naomi Klein fala da tortura como uma metáfora do capitalismo de desastre que é, justamente, aquele procedimento de rapina que se aproveita das desgraças naturais e planta desgraças políticas em países ou comunidades que pretende usar. Um tsunami ou um incêndio em uma favela, bem como um golpe de Estado, são acontecimentos chocantes que permitem produzir outros choques econômicos ou implantar medidas que, para a população desinformada, parecem as melhores. Queima-se uma favela para erguer um condomínio – ou para esconder as pessoas pobres e sua forma de vida em tempos de turismo, afinal a aparência é capital literalmente – e ninguém ou quase ninguém achará ruim. Outro exemplo, acaba-se com o SUS e depois ninguém vai achar ruim que o sistema de saúde seja todo privatizado. Quem não tiver dinheiro para pagar um plano de saúde, também não vai se importar muito porque já terá perdido as forças para lutar por qualquer melhoria em suas condições de vida.
Terá perdido as forças, entre elas, a força do pensamento que nos ajuda a entender o que se passa ao nosso redor.
A tortura serve para chocar e desorientar. Para isso foi inventado o eletrochoque, por exemplo. A tortura é a metáfora da lógica que permeia a doutrina do choque a ser aplicado em casos individuais ou coletivos quando se trata de “quebrar resistências” e “promover rupturas violentas entre o prisioneiro e a sua habilidade para compreender o mundo à sua volta”. Não se trata portanto, apenas de um vazio do pensamento que surge pelo abandono da subjetividade como se isso acontecesse por acaso. Na vida cotidiana, imita-se o procedimento da tortura, mas de um modo estranhamente palatável. O vazio do pensamento é milimetricamente produzido com microchoques que a religião há muito tempo, bem como o cinema e a televisão mais recentemente produzem com maestria, como explicou Christoph Türcke em um livro de 2011 chamado Sociedade Excitada.
As técnicas de tortura podem ser mais físicas ou mais psicológicas. Em todos os casos, com o uso desses meios sempre perversos, visa-se à entrega total do indivíduo ou das populações.
Atualmente, seguimos recebendo injeções de veneno e de morfina visual com novelas, jogos, séries de televisão, reality shows, missas carismáticas, exorcismos. Somos um experimento da doutrina do choque que é, em tudo, neoliberal.
O sono produzido com essas medidas leva a uma espécie de lobotomia consentida.
Se alguém acordar no meio do que vem acontecendo, pedirá pra voltar a dormir.

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