terça-feira, 2 de agosto de 2016

QUEM FINANCIARÁ A MÍDIA ALTERNATIVA PARA QUE ELA SEJA "LIVRE E INDEPENDENTE?

BLOG DO ALCEU CASTILHO

Publicado em 28 de junho de 2016
deolho-ponte-amazonia-reporterb
Esquerda brasileira ainda não acordou para a necessidade de bancar projetos de comunicação contra-hegemônicos, como multiplicadores de uma agenda da resistência
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Todo jornal que eu leio
Me diz que a gente já era
Que já não é mais primavera
Oh, baby, oh baby
A gente ainda nem começou
(Raul Seixas, “Cachorro Urubu”)
Estas reflexões partem de uma situação muito concreta: a campanha de arrecadação de um projeto jornalístico alternativo, o De Olho nos Ruralistas, um observatório sobre agronegócio no Brasil. Esse projeto que eu coordeno – uma parceria de jornalistas com o Outras Palavras e a TV Drone – está em pleno processo de financiamento coletivo. O que me torna suspeito em relação ao tema, parte diretamente interessada. Mas as reflexões oriundas dessa saga (fazer crowdfunding no Brasil é uma saga) nos permitem refletir sobre alguns rumos dos projetos de comunicação independentes. Independentes de quem?
A tese é a seguinte: o financiamento desses projetos de comunicação precisa, cada vez mais, passar pela contribuição dos próprios leitores. Se não totalmente, ao menos parcialmente – e com exibição transparente das contribuições feitas por instituições (sindicatos, ONGs, fundações, movimentos sociais). Essa transparência precisa ser potencializada no caso de doações de empresas e de governos – pois são esses que financiam tradicionalmente a grande imprensa, e que costumam cobrar caro a fatura pela verba injetada. Vamos apenas repetir um modelo que consideramos decrépito ou tentaremos ir além?
Essa tese é acompanhada de uma constatação: a esquerda no Brasil ainda não acordou para a necessidade de priorizar esses projetos de comunicação alternativos, livres de financiamentos que possam significar um sequestro da pauta. Como fazer jornalismo contra-hegemônico bancado por quem tem interesse em perpetuar o status quo?  Por outro lado, como fazer jornalismo contra-hegemônico se as contribuições independentes (a começar dos leitores comuns) não totalizam um orçamento minimamente aceitável? A lógica tem sido esta: “Eu apoio, acho ótimo, mas que outros contribuam”. Sim, mas outros quem?
CRÍTICA DA IMPRENSA CÍNICA
Ganhamos o saudável costume de deplorar as práticas da imprensa graúda, perpetuadora da desigualdade e da violação sistemática de direitos – no campo e na cidade. Uma imprensa comprometida com um modelo que gera miséria e sangue. Essa imprensa tem sido historicamente cínica (vale aqui invocar o filósofo alemão Peter Sloterdijk e sua “Crítica da Razão Cínica”), a serviço daqueles a quem interessa consolidar as exclusões. Para completar, no Brasil, ela se configura neste ano de 2016 como uma imprensa golpista. Se ela não tem compromisso com democracia e direitos humanos (valores caros a setores da própria burguesia), por que teria com transformações sociais?
Mas esperamos que caia do céu uma imprensa que caminhe no sentido oposto. Com um mínimo de qualificação para fazer um contraponto efetivo. Ficamos apenas na crítica – necessária – às contradições desse jornalismo ativista burguês, defensor parcial de uma ideologia sem que se assuma como tal. E aqui menciono o agronegócio como um exemplo eloquente. O agronegócio não é o único modelo de apropriação da terra, ou dos recursos naturais. É, aliás, um modelo bastante predador. No entanto, a cobertura de agricultura no Brasil confunde-se com a cobertura do agronegócio (observem a palavra “negócio”). Basta ver o nome das editorias, ou quem banca as revistas especializadas.
É totalmente desproporcional, na imprensa corporativa, a ênfase dada a modelos alternativos. Por isso a invisibilidade dos povos indígenas, que possuem outra relação com a natureza, com a terra, com a água. Por isso a invisibilidade dos camponeses – e da violência a que eles são submetidos neste país, em nosso êxodo rural movido a bala. Por isso a invisibilidade da agroecologia. Praticamente já não existem editorias de agricultura (que poderiam cobrir os diversos modelos) nos jornais, quanto mais uma editoria de agroecologia, como contraponto à lógica da apropriação da terra por algumas poucas empresas e alguns poucos proprietários.
Mas quem divulgará sistematicamente notícias e artigos que sejam críticos a esse modelo, movido também a pesticidas, a veneno? Que partam da singela hipótese de que não é “natural” o modo como a propriedade privada se instalou no Brasil, mesmo sob os códigos burgueses? Ou seja, quem promoverá um jornalismo que tome a grilagem e os latifúndios – muitas vezes obtidos a partir de capital suspeito – como temas cruciais? (O mesmo raciocínio vale para outros temas, para temas urbanos, para o tema da segurança pública, por exemplo. A Ponte Jornalismo faz um jornalismo sobre segurança pública que não é aquele praticado pela grande imprensa.)
OS ERROS DA ESQUERDA
A esquerda não aprendeu que o Estado não vai financiar esses projetos. Alguns se renderam à ilusão de que governos de tal partido peitariam o modelo de financiamento de mídia – e o de concessão de rádios e TVs – e promoveriam uma comunicação democrática. Não promoveram. Financiaram, claro, projetos simpáticos a esses mesmos governos. Necessários a uma trincheira específica, mas muito distantes do necessário para a realização de um jornalismo ao mesmo tempo plural e inclusivo. Não há interesse de todos os grupos que chegam ao poder (se é que existe o interesse em um desses grupos) em uma comunicação verdadeiramente pública.
Com um governo golpista, o problema se agrava. Esboços do que seria essa comunicação pública se esvaem logo nas primeiras medidas do governo interino, como se vê na tentativa de implosão da EBC, a Empresa Brasileira de Comunicação. Não temos uma BBC no Brasil e infelizmente não teremos tão cedo. Em São Paulo, já tivemos uma TV Cultura bem mais próxima da independência, mas ela hoje desponta como um arremedo de si mesma, controlada por um grupo político que se eterniza no Palácio dos Bandeirantes. E nas outras Unidades da Federação a realidade não é melhor.
Como se vê, o problema é anterior ao golpe. Boa parte do jornalismo que se produziu com verbas do governo é um jornalismo unicamente opinativo, com poucas notícias, poucas reportagens. Sim, opinião é importante (o Outras Palavras tem-se afirmado como referência neste campo, com perspectiva analítica), mas precisa ganhar a companhia da apuração, do apego aos fatos – mesmo aos fatos que desagradem a posição do veículo. Em alguns casos, a própria grande imprensa faz concessões à notícia, em meio a distorções e edições mandrakes. A notícia é essencial. Um patrimônio público. E, por isso, precisa fazer parte de qualquer projeto jornalístico inclusivo. Só que isso custa dinheiro. Leva tempo. E voltamos ao problema das verbas.
GRANDE PORTAL OU PROJETOS TEMÁTICOS?
O ideal seria pensar num contraponto amplo, num grande portal que reunisse algumas centenas de profissionais fazendo um jornalismo crítico, investigativo, incisivo, corajoso. Mas a esquerda é fratricida. Basta pensar nas disputas internas dentro de um único partido de esquerda (qualquer um) para imaginar a dificuldade de imprimir uma linha editorial coerente em um portal contra-hegemônico. E nem falamos de outros partidos, ou de tendências que não sejam partidárias. Vale citar aqui o aforismo cômico: “A esquerda no Brasil não existe. Mas já está dividida”. (Um portal independente nem precisaria ser somente de esquerda, a rigor, mas o problema neste caso só se multiplica.)
E, por essas limitações, cresce a importância de se pensar em projetos com alguns recortes. Ainda que ambiciosos. Recortes regionais, ou temáticos. Na esfera local pode ser mais viável tentar equacionar as diferentes visões de mundo dos editores. Em relação aos recortes temáticos, volto à condição de suspeito, como editor de um observatório sobre agronegócio. Mas o De Olho nos Ruralistas não é o único projeto nesse sentido. Já mencionei a Ponte Jornalismo como um bom exemplo, com sua cobertura – noticiosa e crítica – de segurança pública. Menciono também o site Amazônia Real, com características ao mesmo tempo regionais e temáticas. Ou a Repórter Brasil, que se destacou na cobertura do trabalho escravo. Existem outros projetos. E precisam existir cada vez mais. Como?
PROFISSIONALIZAÇÃO
A opção por esse tipo de projeto não passa pelo enriquecimento dos profissionais de comunicação envolvidos. Mas eles precisam ser dignamente remunerados. No improviso, ainda que bem intencionado, uma das primeiras vítimas é a qualidade. Outra, a credibilidade. Algumas técnicas utilizadas pela grande imprensa podem e devem ser replicadas. Mas o objetivo precisa ser o de fazer algo melhor. E menos omisso. Cabe a cada cidadão incomodado com as omissões e distorções da grande imprensa perceber que os veículos alternativos podem tanto partir (com visão crítica) das informações divulgadas por essa imprensa tradicional como amplificar temas escondidos – ou escanteados. Muito trabalho, portanto. Que exige profissionais capacitados.
Aos poucos esses projetos e essas equipes de jornalistas trabalharão cada vez mais em rede. De forma a unir os projetos temáticos e os projetos regionais. Compartilhando não apenas notícias prontas (copyleft não precisa significar apenas um “copia e cola”), mas dados, apurações, pesquisas. Visando um esboço do que seria, no futuro, um grande portal de comunicação. Com um volume significativo de notícias e pluralidade de artigos relevantes. Até chegarmos lá é preciso que esses projetos temáticos e regionais sejam estimulados – sim, com verba de cada cidadão, de cada organização que se proponha a questionar a hegemonia das grandes corporações (e dos governos que as defendem).
Tanto a preservação de direitos elementares como a caminhada por um mundo menos desigual, mais justo, passam pela comunicação. Ainda que passem também por outros setores, como a educação e a cultura. É a comunicação contra-hegemônica que pode dar voz àqueles que são explorados – violentados, humilhados, espoliados,  perseguidos – e multiplicar os gritos de resistência. Por isso precisamos nos assumir como artífices de outro tipo de comunicação. Solidária. Essa que a gente que faz, não somente financiando, mas participando, não mais como leitores passivos, mas como membros de uma rede de comunicadores, em diálogo construtivo com a rede de jornalistas. Não é a família Marinho que nos libertará.

Nenhum comentário: