"Afinal, por que proclamamos tanto amor à democracia, se não sabemos o que fazer com ela?"
por Osvaldo Martins
Afinal, por que proclamamos tanto amor à democracia, se não sabemos o que fazer com ela? Por que tanta gente ostenta a glória de haver contribuído para conquistá-la, e dela dizer-se guardiã, se viver nela parece mais difícil do que simplesmente tê-la? Para que serve a democracia que defendemos, e todo brasileiro dela se diz seu defensor, se com ela estamos onde chegamos – no fundo do poço? Quem falhou, ela ou nós? Ela, reconheçamos, é vítima, e nós, um misto de testemunhas oculares e agentes dos maus tratos que ela recebe. Não queremos seu mal, muito menos sua morte. Todo santo dia repetimos que ela é o ar que respiramos, que sem ela não saberíamos viver, que a consideramos o ambiente social mais civilizado que a humanidade jamais concebeu. No entanto, a tratamos como bebês que se deleitam em destruir o brinquedo novo apenas por não saber como usá-lo.
A democracia tem um manual de uso, que é a Constituição, mas quem já leu? E, para complicar, a democracia nunca está pronta e acabada, depende do usuário, nós, para aperfeiçoar-se permanentemente. Ou seja, ela requer uma participação constante, o que a torna cansativa, motivo suficiente para que a deixemos aos cuidados dos “outros”, não sabemos exatamente quem. Então o culpado é o povo? Não, ele é meio vítima, meio algoz, como registra sua própria história. Para não cansar o leitor, tomemos a República como período suficiente para esta breve abordagem. O Império caiu, em 1889, abatido por um golpe militar. Império e democracia nunca foram incompatíveis, mas não era de democracia que se tratava. Essa palavra nem estava à época incorporada ao vocabulário político. Tratava-se, exclusivamente, de tomar o poder.
Desde então, os militares foram os protagonistas da cena política brasileira. Mandaram no país diretamente, quando exerceram a presidência da República, e mandaram nos civis que eventualmente a ocuparam. No breve período de aparência democrática dos anos JK, foi o marechal Lott, um legalista, quem garantiu, com mão de ferro, a investidura do eleito e o exercício de todo o seu mandato, tornando-se, ao final, candidato à sucessão. Esse e outros breves intervalos de franquias democráticas davam a impressão de que vivíamos em uma democracia, quando em verdade ocorria exatamente o contrário; vivíamos asfixiados pelo poder da espada e às vezes respirávamos aliviados, como na vigência da Constituição de 1946. Como todas as demais, ela preceituava que “o poder emana do povo, e em seu nome será exercido”. Balela.
Ao longo de décadas, as manchetes de capa e do noticiário político dos jornais volta e meia traziam advertências do tipo “General fulano alerta”, “Almirante cicrano ameaça”, “Brigadeiro beltrano contesta”… O poder militar tutelou a vida política do país durante 96 anos, de Deodoro a Figueiredo, em tempo integral. Em 1964, os militares desferiram seu último golpe, aperfeiçoado pelo Ato n. 5 em 1968, quando a ditadura se tornou escancarada. No final dos anos 60 e início dos 70, sob Médici, o Brasil viveu na mais tenebrosa escuridão institucional. Não havia espaço para sonhar com democracia pois seu pressuposto, a liberdade, a começar pela mãe de todas as demais, a liberdade de expressão, fora suprimida e esmagada pelas botas do obscurantismo.
A extrema esquerda, que nunca pronunciou com mínima sinceridade a palavra democracia, optou por uma “luta armada” que conseguiu seduzir corações e mentes de jovens patriotas, empurrando-os para a linha de tiro. Milhares desses jovens mal saídos da adolescência morreram na guerrilha insana e nos porões da tortura e da execução sumária das “forças de segurança”. E a democracia? Ainda não se falava nela. Só depois, sob Geisel, buscou-se no vocabulário a palavra “distensão” (lenta, gradual e segura) para insinuar uma tímida “abertura”, que soava benfazeja. Foi preciso que o regime se exaurisse, que o projeto Brasil Grande ruísse e que concessões como as eleições de 1982 abrissem uma fresta de esperança no horizonte para que o país finalmente ganhasse as ruas na Diretas Já de 84.
A Diretas Já, maior mobilização de massas até então, virou unanimidade nacional. Praticamente todos os setores da sociedade se uniram contra o regime militar, embora nem todos os seus atores pretendessem construir depois dele uma democracia. Artes do destino permitiram que o Brasil dispusesse, então, de quadros políticos, de intelectuais independentes e de lideranças populares à altura daquela oportunidade histórica. Gente como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Sobral Pinto, Leonel Brizola, Teotônio Vilela, Mario Covas, Franco Montoro e tantos mais souberam conduzir o navio durante o nevoeiro da transição e levá-lo a porto seguro. Foi a costura política do habilíssimo Tancredo que ofereceu aos militares uma saída honrosa do poder, encerrando 96 anos de militarismo. A moeda de troca, uma anistia total e incontestável para ambos os lados. Além de não buscar, como nos 21 anos anteriores, um novo mandato de presidente da República no colégio eleitoral do Congresso Nacional, os militares se comprometeram a deixar discretamente o poder político exercido por quase um século, para a partir de então dedicarem-se exclusivamente à sua missão profissional nos quartéis, e a sumir do noticiário. Justiça se lhes faça, eles honram até hoje a palavra empenhada. Já nós, os civis, criamos comissões da Verdade (a nossa verdade) para remexer um passado que parecia sepultado. Tancredo deve ter-se revirado no túmulo .
Mas a conquista por inteiro da democracia só viria em 88, com a promulgação da Constituição Federal, fruto de uma Assembleia Nacional Constituinte eleita em 86, e que teve ampla participação popular. Organizada em quatro grandes comissões e dezenas de subcomissões temáticas, a ANC recebeu milhares de demandas da sociedade civil organizada e conseguiu elaborar uma Carta avançada jurídica, política e socialmente – à época e ainda hoje. Não me parece exagerado afirmar que a Constituição de 88 é a certidão de nascimento da democracia brasileira. Por isso, discordo dos que a denominam um marco da redemocratização do país. Discordo do “re”. Como “re”, se antes de 88 não havíamos fundado aqui o Estado de Direito que instituiu o regime democrático pleno, e o garante?
A Constituição de 88 erigiu um edifício jurídico de alicerces tão sólidos que apenas quatro anos depois enfrentou sem sobressaltos seu primeiro teste de fogo, o impeachment do presidente Collor. No dia seguinte, com a posse do vice Itamar, a vida seguiu dentro da mais absoluta normalidade e tudo indicava que a democracia duramente conquistada não mais sofreria ameaças. Um dos pilares desse edifício jurídico inovador, firme como uma rocha, é o novo papel atribuído ao Ministério Público, de defensor da sociedade. Nos dias de hoje, o MP assume na prática funções de um quarto poder, em pé de igualdade com o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Ainda bem, pois a evolução ali operada não se repete nos parlamentos nem nos governos.E aí voltamos ao ponto inicial, sobre a democracia que não aprendemos a construir com todas as peças desenhadas no manual. Enquanto as instituições se aperfeiçoaram e os direitos e garantias civis foram ampliados, por que no campo político a democracia estagnou? Se fomos capazes de criar uma legislação ambiental moderna, se fomos competentes para elaborar um Código de Defesa do Consumidor, um Estatuto da Criança e do Adolescente, de adotar os recursos da tecnologia digital para sanear a recepção e totalização de votos nas eleições, por que fracassamos na prática cotidiana dos valores da democracia? Uma primeira meia-resposta salta da ponta da língua: porque os partidos políticos, nascidos do ventre da sociedade, falharam miseravelmente. Talvez sejam eles os “outros” a que nos referimos antes.
De fato, os partidos políticos brasileiros nunca desenvolveram um terceiro campo de interesse além daqueles dois que lhe consomem a vida: disputar eleições e conquistar (legitimamente) o poder. O terceiro campo, o da pregação política lato senso, da criação e propagação de ideias para o país, da concepção e elaboração de programas ancorados em estudos e planejamento, nada disso mereceu meia hora de atenção dessas agremiações. Daí que não existem no Brasil partidos políticos dignos desse nome, mas partidos que funcionam meramente como cartórios eleitorais.
Políticos do século passado conseguiram livrar a sociedade da tutela militar, mas os do século 21 ainda não aprenderam a praticar democracia. À falta de lideranças e de bons exemplos a seguir, as pessoas frequentemente deturpam os desígnios da democracia, confundindo-os com o vale tudo que se vê hoje. Falta-nos, ao cabo de 28 anos de liberdades democráticas, aquilo que parece explicar o mar revolto que atravessamos: educação política. A política é o meio de que as sociedades democráticas dispõem para mediar seus conflitos na busca de soluções negociadas. Bom exemplo é o de um dos ramos nobres da política, a diplomacia, que existe no relacionamento civilizado entre países para evitar o pior dos conflitos, a guerra.
Política, solução negociada, relacionamento civilizado com seus adversários, respeito à voz das minorias, tolerância com o contraditório, civilidade no trato com seu oponente… Essas ausências na cena política do Brasil de hoje são apenas a face visível de uma ausência maior que está na origem dos males presentes, a falta de Educação. A sociedade brasileira e seus governos mal dão conta de um dos aspectos da Educação, o ensino, que dirá de todo o amplo universo de usos e costumes, de princípios, comportamentos e atitudes que ela encerra. Não temos educação política como não temos educação no trânsito, na escola, no transporte coletivo, na fila do banco, no convívio social, enfim… porque não temos Educação.
Adutora natural de preciosos insumos para o todo ainda maior da Cultura, a Educação qualifica a produção científica e estimula os avanços da tecnologia, contribuindo para o ambiente, a saúde e tudo o mais que entendemos por bem-estar da humanidade. Tomada como régua para medir o estágio civilizatório de uma sociedade, nossa nota em Educação guarda semelhança com a que as agências de risco classificam o atual estágio da nossa economia no mercado global. Rebaixados ao grupo de acesso no carnaval do conhecimento, podemos a qualquer momento ser expelidos do Brics e passar à condição de nação zumbi, dado que, sem um projeto nacional, nunca haverá rumo.
Faça-se um esforço de memória para lembrar alguns grandes feitos made in Brazil em muitas décadas, capazes de assombrar o mundo por sua concepção, originalidade e qualidade, e dificilmente passaremos de dois – a bossa nova e a URV (Unidade Real de Valor), que viabilizou a passagem de uma moeda podre para uma estável, o real, e que não recebeu um Nobel de economia certamente porque nem concorrer, concorreu. Fora isso, o que temos neste século 21 capaz de assombrar positivamente o mundo, se até futebol nos falta?
Não se trata, aqui, de recauchutar o achado rodriguiano do complexo de vira-lata. Mas tampouco podemos adotar para sempre o cinismo contido em “o inferno são os outros”, como faz o brasileiro médio ao se referir a seus representantes na Câmara, no Senado e em todas as demais casas legislativas país afora. O vocábulo “representantes” é autoexplicativo: indica que nenhum deles chegou lá de paraquedas, ou desembarcado de outro planeta. Como poderia ser boa a representação se ela não espelhasse a vontade livre e soberana dos representados? Pois não é a representação fiel da sociedade a principal virtude da democracia representativa que adotamos?
Agora mesmo, no domingo 17 de abril, muita gente ficou estarrecida com o que viu na televisão, ao vivo e em cores – a votação, na Câmara dos Deputados, pela admissibilidade do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Suas excelências brindaram o distinto público com um espetáculo grotesco, deprimente e… cruamente revelador do nosso atual estágio civilizatório. Essa realidade chocante e vergonhosa tem, contudo, o mérito de exibir a nós mesmos o que somos – e não, por mais que doa, o que gostaríamos de ser.
De volta à questão central. Por que Educação nunca foi, nem é, a aspiração número 1 da consciência nacional? Por que, em passado recente, um presidente da República saído dos estratos mais desassistidos e maltratados da sociedade preocupou-se tanto, e gastou tanto, para incentivar o consumo de bens materiais ilusórios, em vez de dedicar-se à conquista do definitivo patamar de bem-estar de um povo, que é a Educação? Por que o partido que esse presidente fundou, e todos os seus seguidores, nunca cerraram fileiras empunhando a bandeira da Educação? Pois não sabiam, melhor que quaisquer outros segmentos da sociedade, que sem ela não avançaríamos um único passo na direção do tão sonhado futuro promissor? O que fizeram esse tempo todo alguns dos mais respeitados intelectuais do país que não encontraram tempo, ou simplesmente nem interesse tiveram, para transformar nossos milhões e milhões de analfabetos funcionais em cidadãos de primeira classe? Ou será que tal conceito refere-se exclusivamente às legiões de brasileiros que puderam dispensar o ônibus e viajar de avião?
O que dizer então dos militantes mais radicais, autointitulados revolucionários, que sequer desconfiaram ser a falta de Educação a mantenedora de todas as desgraças do país? Por que nunca levaram às suas “bases” a palavra de ordem de uma revolução pela Educação, socializadora do conhecimento a serviço da libertação da miséria?
Tempo para, pelo menos, tentar não lhes faltou. Mais de uma década no poder com uma situação interna e internacional favorável, com a faca e o queijo nas mãos, o que temos? Desafortunadamente, os velhos fantasmas como desemprego e inflação em alta, saúde pública em frangalhos, economia estagnada, conceito internacional achincalhado, um sistema de ensino arcaico e desestimulante, tudo isso agravado pela gigantesca incapacidade de gestão e, subsidiariamente, um faz de conta de que não existe a mais feroz, despudorada, insaciável, corrupção da história.
Resta-nos preparar os espíritos para os dias piores que virão. Nada aconselha imaginar que sairemos melhores da crise, seja qual for o seu desfecho. Preparemo-nos para encarar mais uma década perdida, pois no horizonte da Educação, a falta que perpetua todas as faltas, o sol pelo jeito não brilhará tão cedo.
Osvaldo Martins é jornalista e escritor
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