ESPECIAL CANDOMBLÉ - Terreiro resgatado
Aos poucos, o candomblé angola ganha espaço e reconhecimento de estudiosos
Axé, afoxé e babalorixá são termos bastante comuns na fala dos brasileiros. Eles foram incorporados à nossa cultura pelo candomblé nagô, que tanto foi divulgado nos estudos de Nina Rodrigues, Roger Bastide e Pierre Verger. Mas outra forma de candomblé vem experimentando expansão e popularidade desde o final da década de 1980: o de nação angola ou, simplesmente, candomblé angola. Valorizada pelo ativismo dos movimentos negros e reforçada por iniciativas como a criação de um curso de língua quicongo na Universidade da Bahia, essa vertente passou a ganhar atenção e estudos. E isto dentro de um contexto de resgate do papel do povo banto na construção da afrobrasilidade.
Visto como um novo ideal de identidade religiosa, o candomblé angola parece não repercutir a realidade histórica do ambiente congo-angolano, como ocorre na mitologia dos orixás jeje-nagôs e no panteão de divindades daomeanas da “mina” maranhense. E por isso foi subestimado pelos etnólogos.
A sequência de eventos que vai do primeiro desembarque português no Rio Congo, em 1482, até o início da colonização do Brasil e de Luanda, no século XVI, determinou a precedência dos africanos bantos na formação da civilização brasileira. Assim, é fácil intuir que, bem antes de orixás, voduns e bonçus – divindades específicas da região do golfo da Guiné –, os baculos (antepassados) e inquices bantos (nome que designa espécies de forças sobrenaturais e também os objetos que as contêm) já seriam cultuados no Brasil.
O candomblé certamente surgiu da reorganização, no Brasil, de grupos atingidos por guerras devastadoras na África Ocidental, na passagem para o século XIX. Sob essa influência, praticantes de cultos bantos (de Angola e Congo), cujas expressões religiosas já estavam presentes no Brasil desde o início da colonização, foram moldando o que depois se chamou “candomblé angola”. Este, então, se estruturou a partir do candomblé jeje-nagô (da região Benim/Nigéria). Seus líderes fundadores associaram aos seus fundamentos bantos muitos dos elementos trazidos pelos jeje-nagôs daquela outra parte da África. Aparentemente, só conservaram o idioma ritual, dando nomes bantos (das línguas quimbundo e quicongo) até mesmo aos orixás jeje-nagôs. Zaze, por exemplo, corresponde a Xangô, e Matamba, a Iansã.
Os sistemas religiosos chegados aqui com a escravidão sofreram aclimatações e adaptações. Os ancestrais têm íntima ligação com a terra natal, o território comunitário, e, em terra estranha, isso só foi possível manter simbolicamente. Mesmo assim, quatro séculos depois, as diversas formas religiosas africanas, de várias origens, conservam fundamentos comuns, como a crença em um princípio criador de todas as coisas, o culto a espíritos e gênios da natureza e a reverência aos antepassados.
A mais antiga descrição pormenorizada de uma celebração de um calundu – denominação genérica dos cultos africanos, de qualquer origem, antes do surgimento do vocábulo "candomblé" – no Brasil foi feita em 1646, segundo o antropólogo Renato Silveira em O candomblé da Barroquinha (Editora Maianga, 2006). O ritual aconteceu na capitania de São Jorge dos Ilhéus, sob a direção do liberto Domingos Umbata, certamente um membro do subgrupo congo Mbata, localizado no território da atual Angola. O poeta Gregório de Matos (1636-1695) chegou a se referir a “calundu” em “O Burgo” – Preceito 1: “Que de quilombos eu tenho/ com mestres superlativos, / nos quais se ensinam de noite/ os calundus e feitiços”, e seu uso passou a ser generalizado. O termo certamente se origina do vocábulo kilundu, do idioma quimbundo, de Angola, cuja tradução é “ancestral, espírito de pessoa que viveu em época remota”, e também é “parte da feitiçaria”, como afirmou o jurista e escritor Antônio Joaquim de Macedo Soares (1838-1905). No Brasil, o significado mais conhecido da palavra é o de mau estado de ânimo. Estar “de calundu” ou “com os seus calundus” é estar uma pessoa irritada e de mau humor, por conta da suposta presença, em seu quadro espiritual, de ancestrais insatisfeitos, cobrando atenção e reverência.
Já os rituais da cabula – forma religiosa tipicamente banta (congo-angolana) e certamente mais próxima das “macumbas” do Sudeste brasileiro, e não do candomblé desenvolvido a partir do eixo Pernambuco-Bahia – foram objeto de descrição detalhada do bispo D. João Correa Nery, reproduzida por Nina Rodrigues no clássico Os africanos no Brasil, escrito antes de 1906. Neste relato, a expressão “cabula” configura efetivamente uma religião, com hierarquia sacerdotal, liturgia e um corpo de doutrina; e que ela foi, talvez, a célula a partir da qual se estruturaram as antigas macumbas do Sudeste e, mais tarde, a umbanda, a quimbanda (uma linha da umbanda voltada mais para a magia maléfica) e a reação reafricanizante do omolocô (forma religiosa nascida no universo da umbanda, mas que se denomina pretensamente mais africana), na década de 1940.
Entre os mais antigos tatas (pais) dos candomblés bantos no Brasil destacam-se os nomes de Gregório Maqüende e Roberto Barros Reis. Gregório, líder da nação Congo que viveu na Bahia de 1874 a 1934, nasceu em Angola e fundou sua comunidade religiosa. Já Roberto, mencionado como liberto e originário da região angolana de Cabinda, teria sido o fundador, por volta de 1850, do terreiro Inzo Tumbensi, provavelmente a primeira comunidade de culto banto com estrutura de templo no Brasil. Falecido por volta de 1909, Barros Reis foi o iniciador de outra grande personalidade dos primórdios dos candomblés bantos, a venerável sacerdotisa Maria Genoveva do Bonfim, “Maria Neném”, falecida na Bahia em 1945, com cerca de 80 anos. Dois de seus filhos de santo, Manuel Bernardino da Paixão, chefe do candomblé do Bate-Folha, fundado em 1916 – com sucursal no Rio desde 1938 –, e Manuel Ciríaco de Jesus, do Tumba Junçara, fundado em 1919, foram também tatas importantes, líderes fundadores de linhagens rituais, em comunidades que existem até hoje.
O estudo das vertentes religiosas congo-angolanas desenvolvidas no Brasil nos leva inapelavelmente à comparação com o ocorrido em Cuba. Na ilha caribenha, os congos – denominação aplicada a todos os bantos – também não ficaram imunes ao impacto da cristianização colonial. Suas divindades foram associadas às dos colonizadores, a exemplo do que fizeram africanos de outras procedências. Mas eles mantiveram e desenvolveram concepções e atitudes religiosas diferentes daquelas dos bantos brasileiros, como o conceito de “inquice”.
No candomblé angola, esse termo passou a ser sinônimo de divindade, enquanto em Cuba os seres espirituais cultuados são mais apropriadamente denominados mpúngu, termo do quicongo que conota altura, elevação. Portanto, “inquice” é o abrasileiramento do quicongo nkisi, força sobrenatural e, por extensão, o receptor ou objeto onde é fixada a energia de um espírito ou de um morto. Em Cuba, um nkisi é o artefato, também chamado nganga ou ganga, habitado ou influenciado por um espírito e dotado por ele de um poder sobre-humano.
Entretanto, nas religiões africanas, os ritos privados são de domínio e conhecimento exclusivos dos iniciados. Assim, embora os candomblés bantos apresentem, em seus ritos públicos, liturgia assimilada daquela do candomblé nagô, eles provavelmente conservam, na intimidade, procedimentos que os aproximam de seus similares cubanos e de outras comunidades da Diáspora.
No livro Religiões africanas no Brasil, Roger Bastide observava que os candomblés bantos teriam copiado as sequências rituais e a organização eclesiástica do candomblé nagô, mantendo diferenças apenas na linguagem ritual utilizada e na denominação das entidades espirituais, “como se existisse um dicionário permitindo passar de uma religião a outra”. Mas o que parece certo é que esse fenômeno, mais do que assimilar, configurou a negociação e o intercâmbio de práticas e procedimentos rituais. Afinal, como nem só de banto se faz o angola, nem tudo é iorubá no candomblé, como comprovam as etimologias de muitos termos de uso geral. E até mesmo o seu nome, candomblé, tem origem congo-angolana, e não iorubana.
Saiba Mais - Bibliografia
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil, 2 vols. São Paulo: Pioneira/EdUSP, 1974).
PARÉS, Luís Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
SERRA, Ordep. Águas do rei. Petrópolis: Vozes/Rio: Koinonia, 1995.
SILVEIRA, Renato da. O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto. Salvador: Edições Maianga, 2006.
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