domingo, 28 de maio de 2017

OS SETE CAPÍTULOS ESQUECIDOS DE "CEM ANOS DE SOLIDÃO"

Kafa e Gabriel Garcia Márquez ainda hoje fazem parte de minhas "assombrações" . Eles me consumiram e eu os consumi e depois de tantos anos ainda estão inteiros em mim. (MF)


EL PAÍS

García Márquez publicou episódios avulsos para sondar o público antes de terminar o romance


García Márquez, em outubro de 1965 quando escrevia 'Cem Anos de Solidão'.

Meses antes de terminar Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez amargava sérias dúvidas sobre a qualidade de um romance que se tornaria um clássico da literatura. "Quando li o que tinha escrito", confessou por carta a um amigo, "tive a desmoralizante impressão de estar metido numa aventura que tanto podia ser afortunada quanto catastrófica". Algo pouco conhecido é que García Márquez publicou sete capítulos de Cem Anos de Solidão para aplacar essas dúvidas. E fez isso antes de acabar o livro (o que aconteceu em agosto de 1966) e de assinar o contrato com a Editorial Sudamericana, que firmou em 10 de setembro do mesmo ano. A obra foi lançada em 30 de maio de 1967. Na próxima terça-feira fará 50 anos.
Os sete capítulos foram publicados em jornais e revistas que circulavam em mais de 20 países. Representam mais de um terço do livro, que ao todo tem 20 capítulos. Nem sequer há cópias deles no arquivo pessoal de García Márquez no Harry Ransom Center, no Texas, que abriga seu legado. Para encontrar seu rastro é preciso percorrer bibliotecas na França, Estados Unidos, Colômbia e Espanha.
Os capítulos caíram no esquecimento porque se acreditava que eram idênticos aos publicados na primeira edição, de 1967, do livro. Só que a comparação das versões revela outra realidade. Desde a primeira página há mudanças na linguagem, na estrutura e na descrição dos personagens. Isso dá aos capítulos esquecidos grande valor literário para entender como a obra foi escrita. García Márquez afirmou que tinha queimado as notas e os manuscritos preparatórios depois de receber a primeira cópia do livro.

42 alterações

O primeiro capítulo saiu em 1º de maio de 1966 no El Espectador, de Bogotá, quando ainda faltavam três meses para finalizar a obra. Entre essa versão e a edição final de 1967 há 42 alterações significativas, que aparecem desde a primeira página. As casas de Macondo, por exemplo, não eram "de barro e taquara" como na edição final, e sim simplesmente de "adobe". O escritor buscava uma linguagem mais precisa.
Também há modificações importantes na estrutura geral do livro. Por exemplo, na edição de 1967, a ação destruidora dos cupins, que anuncia o declínio da casa da família Buendía, é descrita mais para o final da obra. Mas na versão de El Espectador, "o cupim minava os alicerces da casa" desde o primeiro capítulo. Referências tão no começo aos insetos davam dramaticidade à futura decadência da casa.
Na edição definitiva, Macondo é um povoado isolado da civilização, com localização exata desconhecida. Ao contrário, no capítulo de El Espectador, Macondo é localizada com facilidade, pois fazia fronteira "a Oeste com as dunas do rio La Magdalena", na Colômbia. García Márquez suprimiu esse e outros detalhes sobre a localização precisa da cidadezinha para criar no leitor a impressão de que poderia ser um lugarejo típico de qualquer país latino-americano.

O pranto de Aureliano

Outra mudança surpreendente tem a ver com o nascimento do coronel Aureliano Buendía. Na edição final, o coronel "tinha chorado no ventre de sua mãe e nasceu com os olhos abertos", enquanto no capítulo de El Espectador o herói recebia tratamento pouco heroico e até prosaico: a parteira lhe dá "três palmadas enérgicas" para fazê-lo chorar.
O capítulo seguinte que García Márquez testou com os leitores saiu na revista Mundo Nuevo em agosto de 1966. Publicada em Paris, essa revista se tornou a principal vitrine da literatura do boom latino-americano. Seus 6.000 exemplares mensais eram vendidos em 22 países, incluindo Estados Unidos, Holanda, Espanha, Portugal e quase toda a América Latina. Nesse capítulo encontrei 51 diferenças em relação à edição final. Por exemplo, José Arcadio, cuja mãe, Úrsula, temia que nascesse com rabo de porco, veio ao mundo como "um filho saudável", ao passo que na edição final o autor aumenta a dramaticidade ao escrever: "Deu à luz um filho com todas suas partes humanas".
Primeiro capítulo de 'Cem Anos de Solidão' publicado em 'O Espectador', de Bogotá.
Primeiro capítulo de 'Cem Anos de Solidão' publicado em 'O Espectador', de Bogotá.
A alquimia, tão importante nos capítulos iniciais, era mencionada em Mundo Nuevo usando o termo especializado "a Opera Magna". O escritor simplificou a leitura e optou somente por alquimia.
Após a publicação do segundo capítulo, passaram-se cinco meses até a saída do seguinte. García Márquez deve ter empregado esse intervalo para revisar a obra, porque o novo capítulo era o mais arriscado: a ascensão ao céu de Remedios, a bela. O escritor escolheu para sua divulgação Amaru, uma revista peruana dedicada à literatura de vanguarda internacional. Seus leitores eram exigentes escritores e críticos literários. García Márquez não só comprovou a solidez literária desse capítulo com eles, como também o leu em voz alta a seu círculo de amizade em sua casa na Cidade do México. "Convoquei aqui as pessoas mais exigentes, competentes e francas", escreveu em carta endereçada a seu amigo Mendoza no inverno de 1966. "O resultado foi formidável, especialmente porque o capítulo lido era o mais perigoso: a subida ao céu, em corpo e alma, de Remedios Buendía."
Na revista literária colombiana Eco surgiu outro capítulo "perigoso": a morte de Úrsula, depois de viver entre 115 e 122 anos. Entre as alterações mais notáveis se destaca a eliminação de uma frase, ausente na edição de 1967, de Fernanda del Carpio, após a viagem de Amaranta Úrsula à Europa: "Meu Deus —murmurou Fernanda—, esqueci de lhe dizer para olhar para os dois lados antes de atravessar a rua".
Em março de 1967, saiu na revista Mundo Nuevo o capítulo da peste da insônia, que flagelou Macondo. Como García Márquez explicou em várias entrevistas, seu intento era que a linguagem de Cem Anos de Solidão fosse mais antiquada na primeira parte (por exemplo, usou termos arcaicos para "instrumentos musicais" e "grande alvoroço"). Depois, afirmou o escritor, a linguagem se modernizaria conforme o romance chegasse ao final.

Último cartucho

García Márquez disparou seu último tiro em abril de 1967, quando a revista mexicana Diálogos imprimiu o capítulo da chuva que cai sobre Macondo durante quatro anos. Entre as mudanças importantes figura uma que revela não apenas como o autor suprimia frases ou trocava palavras como também sua técnica para acrescentar conteúdo. Quando Fernanda del Carpio termina de repreender severamente seu marido, Aureliano Segundo, depois de um monólogo que ocupa várias páginas, na versão da Diálogos ela conclui que seu marido estava "acostumado a viver das mulheres". Mas na edição de 1967, Fernanda culmina sua bronca monumental com uma frase pletórica, carregada de força mitológica e religiosa. Afirma que seu marido estava "acostumado a viver das mulheres, e convencido de que tinha se casado com a esposa de Jonas, que ficou tão calma com a história da baleia".
Por último, na semana anterior ao lançamento do livro, a revista argentina Primera Plana publicou um fragmento do capítulo sobre as 32 guerras do coronel Aureliano Buendía. Primera Plana era voltada ao grande público, e seus 60.000 exemplares semanais circulavam dentro e fora da Argentina. Embora já não tivesse tempo de fazer mudanças, García Márquez enviou um capítulo que deveria cativar o público de um continente que continuava marcado pelas guerrilhas insurgentes contra o poder, como a guerrilha do próprio coronel Aureliano Buendía.
Como revela a correspondência de García Márquez, ao publicar os capítulos mais inventivos e "perigosos", o escritor anotou bem as sugestões feitas por amigos e leitores. A história por trás desses capítulos esquecidos de Cem Anos de Solidão revela o árduo trabalho de edição feito por García Márquez, em especial para aplacar aquela "desmoralizante impressão" que teve ao ler o que havia escrito de uma obra que a partir de 30 de maio de 1967 mudaria o rumo da literatura.
Álvaro Santana-Acuña é pesquisador e professor assistente da Whitman College

ESTRATÉGIA SEMELHANTE A DE DICKENS E PÉREZ GALDÓS

Gabriel García Márquez pôs todas as cartas na mesa ao divulgar os sete capítulos. Exceto o final do livro (por razões óbvias), decidiu publicar os que para ele eram os mais inovadores e arriscados, como os que narram o começo da história, a ascensão de Remedios, a bela, a peste da insônia e a chuva em Macondo que durou quatro anos, entre outros. O objetivo do autor era testar a reação dos leitores e fazer mudanças, caso necessário.
Essa estratégia literária é parecida com a usada por escritores como Charles Dickens e Benito Pérez Galdós, que publicaram vários livros em partes, modificando o argumento conforme a reação de seus leitores. Na correspondência de García Márquez há registro disso. "Me dá muita alegria o que me diz do capítulo de Cem Anos de Solidão. Por isso o publiquei", respondeu a seu amigo Plinio Apuleyo Mendoza, que leu o primeiro capítulo no El Espectador, de Bogotá.

O DISCURSO DE HELEN MIRREN PARA AS MULHERES QUE NÃO SE CONSIDERAM FEMINISTAS

EL PAÍS


"Comecei a entender que o feminismo não é uma ideia abstrata, mas uma necessidade”

Há homens e mulheres que continuam custando a entender o que o feminismo defende: a igualdade entre homens e mulheres. Desde que o movimentos feministas começaram a ganhar força, muitos (e muitas) repetem a frase que resume o desconhecimento sobre essa doutrina, “nem machismo nem feminismo”. A atriz espanhola Paula Echevarría abordou esse tema há poucos dias. Comparar ambos os conceitos, que não têm nada a ver, é o que leva muitas mulheres a não se definirem como feministas.

Outras dizem defender a igualdade sem se declararem feministas, o que é igualmente contraditório. Na Espanha existem atualmente exemplos recentes como a presidenta da Comunidade de Madri, Cristina Cifuentes, e a porta-voz dos Cidadãos da Catalunha, Inés Arrimadas. A chanceler alemã, Angela Merkel, defende o mesmo posicionamento. Outra mulher que não se considerava feminista até recentemente é a atriz britânica Helen Mirren. Mas ela mudou de opinião.

É o que afirma no discurso que fez em 20 de maio na Universidade de Tulane, em Nova Orleans (Louisiana, Estados Unidos). A ganhadora do Oscar por seu papel em A Rainha se pronunciou durante a cerimônia de graduação com a qual terminou o curso universitário. Lá deixou muito clara sua posição: “Não importa seu sexo ou sua raça. Seja feminista”. O trecho de seu discurso pela igualdade, em inglês, está a partir do minuto 16:30 do vídeo.

"Em todos os países que visitei, da Suécia a Uganda, de Cingapura ao Mali, percebi que quando se respeita as mulheres e lhes dá a liberdade de realizarem seus sonhos e ambições, a vida melhora para todo mundo. Não me definia como feminista até pouco tempo, mas sempre vivi como tal”, acrescenta.
Mirren afirma que “acreditava no óbvio: as mulheres são tão capazes, tão ativas e tão inspiradoras como os homens”. “Mas”, continua, “unir-me a um movimento que se chama feminismo me parecia didático demais, muito político. No entanto, comecei a entender que o feminismo não é uma ideia abstrata, mas uma necessidade se queremos ir em frente e não retroceder, em direção à ignorância e à inveja”, afirma.
"Assim, agora me declaro feminista e os incentivo a fazerem o mesmo”, acrescenta. A atriz termina seu discurso feminista com o seguinte conselho, em referência às políticas do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump: “Nunca, jamais, voltem a permitir que um grupo de velhos, ricos e rabugentos brancos definam a saúde de um país que é composto por 50,8% de mulheres e 37% de outras raças".

A defesa feminista de Mirren faz parte de um discurso de quase 25 minutos que chamou a atenção da mídia nos Estados Unidos e no resto do mundo. Além do trecho sobre a igualdade entre homens e mulheres, a britânica dá os seguintes conselhos para se “ter uma vida feliz”. Mais do que ser feminista, propõe o seguinte:

1. Não se case cedo demais.
2. Trate as pessoas com respeito.
3. Ignore quem te julga pelo seu físico.
4. Não tenha medo do medo.
A transcrição completa do discurso de Mirren está disponível na página da Universidade de Tulane. Em sua fala aos formandos ela dá mais um conselho que recentemente também foi dado pelo ex-presidente Barack Obama: tome cuidado com suas redes sociais, pois tudo deixa pegadas na internet. “Nada bom pode sair de um tuíte às 3h da manhã”, diz Mirren.

Perguntas machistas


A atriz britânica demorou a se definir como feminista, mas há décadas já se comportava como tal. Pelo menos foi assim na entrevista que concedeu em 1975 ao jornalista britânico Michael Parkinson. O apresentador lhe pergunta, com todos os eufemismos a seu alcance, se seu físico dificultava que ela fosse considerada uma atriz respeitada.
“Quer dizer que as atrizes sérias não podem ter peitos grandes?”, responde Mirren. “Podem distrair da atuação”, responde o jornalista. Mirren suspira e lhe dá sua resposta: “Não acho que isso seja necessariamente correto. Seria uma atuação desprezível se as pessoas se fixam no tamanho dos seus peitos. Espero que a atuação, a obra ou a relação entre atores e seu público seja mais importante do que essas questões tão chatas”. Essa entrevista viralizou no ano passado depois de ser compartilhada no Facebook pela seção feminista do site The Tab, Babe.

 A entrevista completa está disponível neste link.

POR QUE TANTO CUIDADO PARA SE CONSIDERAR FEMINISTA?

MARI LUZ PEINADO
Miguel Lorente, médico perito e ex-representante do Governo para a violência de gênero, considera que se chamar de feminista nem sempre tem uma percepção positiva por parte do público. “O feminismo se apresenta como uma espécie de doutrinação imposta que te leva a tomar decisões por cima de sua vontade a favor de um determinado setor da sociedade [as mulheres], em vez de se apresentar como um pensamento que busca a igualdade”, explica.
“Às vezes por desconhecimento. Outras vezes é porque o feminismo é percebido como algo que intranquiliza. Se todo mundo soubesse bem o que é o feminismo e quantos avanços conseguiu para as mulheres, não duvidariam”, acrescenta Isabel Morant, professora de História Moderna e Contemporânea da Universidade de Valência.

sábado, 27 de maio de 2017

A BOA VONTADE QUE FALTA NO BRASIL DE HOJE

 Dom Orvandil, OSF: bispo cabano, farrapo e republicano, presidente da Ibrapaz, bispo da Diocese Anglicana Centro Oeste e professor universitário

Leonardo Boff:

 “A boa vontade que falta no Brasil de hoje” Posted on 25/05/2017 

Amiga  Profª Fátima Lima, Natal, RN 

As civilizações se fortalecem na medida em que seus sábios lapidam como pedreiros de picaretas, pás, marretas, cal e cimento em punhos constroem bases profundas na formação das pessoas. Numa cruzada de crise e de decepções como a que vivemos no Brasil e no mundo, hoje, carecemos ainda mais das obras de arte dos sábios. Creio que Leonardo Boff é um desses sábios dedicados a abrir espaços em nossa ignorância para lançar fundamentos para nosso pensar e para nosso agir corretos. 

Como teólogo Boff desconfia dos misticismos opressores e superficiais dos que correm por aí de Bíblia nas mãos e com horóscopos supersticiosos a dizer quaisquer coisas que lhes vem à mente, como se fossem verdades absolutas. No campo religioso somos atacados por pessoas despreparadas a proclamar besteiras eivadas de preconceitos, ranços conservadores e chutes que enganam multidões. Os espertalhões metidos a inspirados por Deus  atacam  de todos os lados: por rádios, tvs e templos espalhados como botequins em todos os bairros e até nas matas. Nosso Leonardo Boff, no entanto, pesquisa, estuda e mergulha fundo nos teólogos, nas culturas e línguas milenares para entender o que e por onde Deus fala. Como filósofo, 

Leonardo Boff não se prende a filosofias de almanaque, mas também, como submarino, vai ao fundo dos clássicos e dos modernos para, a partir do aporte filosófico e humanista, entender o ser humano de hoje e nosso mundo à beira do colapso. Claro, nosso intelectual, felizmente brasileiro respeitado em todo o mundo, também não passa a vida toda deitado e morando dentro dos livros. Boff é um sábio das ruas, dos campos, dos pobres e injustiçados que clamam por justiça e por libertação dignificante. No texto que posto abaixo encanta-me o seu conhecimento de Kant ao iscar o conceito “boa vontade” naquele filósofo clássico, uma como joia  preciosa, indispensável nas pessoas, material com que devemos contar para enfrentar as borrascas do ódio, da superficialidade e do descrédito, males que tomam conta das pessoas, ameaçando perigosamente o nosso mundo e a desintegração dos laços sociais que nos fazem ser humanos.

Eu apenas discrepo respeitosamente de sua reverência a Dalai Lama, para mim um inimigo e traidor do povo tibetano porque aliado do imperialismo estadunidense. Posto abaixo o maravilhoso texto do teólogo, filósofo, escritor e conferencista Leonardo Boff.

Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz sociais. Dom Orvandil, OSF: bispo cabano, farrapo e republicano, presidente da Ibrapaz, bispo da Diocese Anglicana Centro Oeste e professor universitário, trabalhando duro sem explorar ninguém. 


A boa vontade que falta no Brasil de hoje 

Na sociedade brasileira atual grassa uma onda de ódio, raiva e dilaceração que raramente tivemos em nossa história. Chegamos a um ponto em que a má vontade generalizada impede qualquer convergência em função de uma saída da avassaladora crise que afeta toda a sociedade. Immanuel Kant (1724-1804), o mais rigoroso pensador da ética no Ocidente moderno, fez uma afirmação de grandes consequências, em sua Fundamentação para uma metafísica dos costumes(1785): “Não é possível se pensar algo que, em qualquer lugar no mundo e mesmo fora dele, possa ser tido irrestritamente como bom senão a boa vontade (der gute Wille)”. Kant reconhece que qualquer projeto ético possui defeitos.

Entretanto, todos os projetos possuem algo comum que é sem defeito: a boa vontade. Traduzindo seu difícil linguajar: a boa vontade é o único bem que é somente bom e ao qual não cabe nenhuma restrição. A boa vontade ou é só boa ou não é boa vontade. Há aqui uma verdade com graves consequências: se a boa vontade não for a atitude prévia a tudo que pensarmos e fizermos, será impossível criar-se uma base comum que a todos envolva. Se malicio tudo, se tudo coloco sob suspeita e se não confio mais em ninguém, então, será impossível construir algo que congregue a todos. Dito positivamente: só contando com a boa vontade de todos posso construir algo bom para todos. Em momento de crise como o nosso, é a boa vontade o fator principal de união de todos para uma resposta viável que supere a crise.

Estas reflexões valem tanto para o mundo globalizado quanto para o Brasil atual. Se não houver boa vontade da grande maioria da humanidade, não vamos encontrar uma saída para a desesperadora crise social que dilacera as sociedades periféricas, nem uma solução para o alarme ecológico que põe em risco o sistema-Terra. Somente na COP 21 de Paris em dezembro de 2015 se chegou a um consenso mínimo no sentido de conter o aquecimento global. Ainda assim as decisões não eram vinculantes. Dependiam da boa vontade dos governos, o que não ocorreu, por exemplo, com o parlamento norte-americano que somente apoiou algumas medidas do Presidente Obama. No Brasil, se não contarmos com a boa vontade da classe política, em grande parte corrompida e corruptora, nem com a boa vontade dos órgãos jurídicos e policiais jamais superaremos a corrupção que se encontra na estrutura mesma de nossa fraca democracia. 

Se essa boa vontade não estiver também nos movimentos sociais e na grande maioria dos cidadãos que com razão resistem às mudanças anti-populares, não haverá nada, nem governo, nem alguma liderança carismática, que seja capaz de apontar para alternativas esperançadoras. A boa vontade é a última tábua de salvação que nos resta. A situação mundial é uma calamidade. Vivemos em permanente estado de guerra civil mundial. Não há ninguém, nem as duas Santidades, o Papa Francisco e o Dalai Lama, nem as elites intelectuais mundiais, nem a tecno-ciência que forneçam uma chave de encaminhamento global. Abstraindo os esotéricos que esperam soluções extra-terrestres, na verdade, dependemos unicamente da boa vontade de nós mesmos. O Brasil reproduz, em miniatura, a dramaticidade mundial.

A chaga social produzida em quinhentos anos de descaso com a coisa do povo significa uma sangria desatada. Nossas elites nunca pensaram uma solução para o Brasil como um todo mas somente para si. Estão mais empenhadas em defender seus privilégios que garantir direitos para todos. Está aqui a razão do golpe parlamentar que foi sustentado pelas elites opulentas que querem continuar com seu nível absurdo de acumulação, especialmente, o sistema financeiro e os bancos cujos lucros são inacreditáveis. Por isso, os que tiraram a Presidenta Dilma do poder por tramoias político-jurídicas, ousaram modificar a constituição em questões fundamentais para a grande maioria do povo, como a legislação trabalhista e a previdência social, que visam, em último termo, desmontar os benefícios socias de milhões, integrados na sociedade pelos dois governos anteriores e permitir um repasse fabuloso de riqueza às oligarquias endinheiradas, absolutamente descoladas do sofrimento do povo e com seu egoísmo pecaminoso. 

Contrariamente ao povo brasileiro que historicamente mostrou imensa boa vontade, estas oligarquias se negam saldar a hipoteca de boa vontade que devem ao país. Se a boa vontade é assim tão decisiva, então urge suscitá-la em todos. Em momento de risco, no caso do barco-Brasil afundando, todos, até os corruptores se sentem obrigados a ajudar com o que lhes resta de boa vontade. Já não contam as diferenças partidárias, mas o destino comum da nação que não pode cair na categoria de um país falido. Em todos vigora um capital inestimável de boa vontade que pertence à nossa natureza de seres sociais. Se cada um, de fato, quisesse que o Brasil desse certo, com a boa vontade de todos, ele seguramente daria certo.

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quinta-feira, 25 de maio de 2017

CORTE INTERAMERICANA PODE CONDENAR BRASIL POR MATAR WLADIMIR HERZOG DURANTE A SITADURA


el País


Juízo sobre assassinato do jornalista, em 1975, começou nesta quarta e deve ser concluído em 30 dias


San José (Costa Rica) 25 MAI 2017 - 10:11 BRT

Wladimir Herzog ARQUIVO IWH


A Corte Interamericana de Direitos Humanos teve uma jornada intensa nesta quarta-feira, com uma série de depoimentos prévios à sua decisão de condenar ou absolver o Estado brasileiro por torturar e matar o jornalista Vladimir Herzog, em 1975, durante um regime militar que o via como inimigo político.



Com a presença da viúva, Clarice Herzog, além de membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), representantes do Governo brasileiro, peritos e público suficiente para encher a sala de audiências do edifício em San José (Costa Rica), os juízes da Corte ouviram os argumentos finais de um processo cujas conclusões devem ser emitidas em aproximadamente um mês.

Em meio a soluços e até alguma troca de palavras com os representantes do Estado brasileiro, a viúva de Herzog repassou as circunstâncias da morte, que inicialmente foi apresentada como suicídio, além das sequelas familiares e o rastro que a morte de Vlado deixou sobre a sociedade brasileira. "A violência social de agora é uma herança da ditadura", lamentou Clarice Herzog perante o tribunal, composto por cinco juízes de várias nacionalidades e presidido pelo mexicano Eduardo Ferrer Mac-Greggor.

"Para nós é fundamental saber a verdade. O Estado nunca fez nada, nem sequer enviou condolências", disse a viúva, após apontar o vazio de informação sobre a cadeia de comando que teve responsabilidade pela detenção, tortura e morte de Herzog, assassinado aos 38 anos. Ele deixou dois filhos, um dos quais hoje dirige o Instituto Vladimir Herzog, que trabalha pela reparação das violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura (1964-85) e contra a posterior impunidade garantida pela Lei de Anistia (1979) e pelo conceito jurídico de "coisa julgada".



"Para nós é fundamental saber a verdade. O Estado nunca fez nada, nem sequer enviou condolências, diz Clarice Herzog, viúva do jornalista.


Em 2012, o Estado brasileiro aceitou modificar o laudo pericial do corpo de Herzog para eliminar a referência a um falso suicídio e atribuir sua morte às lesões provocadas por maus-tratos, embora isso não tenha tido repercussão jurídica alguma. Em 1996, o Governo já havia pagado uma indenização de 100.000 reais à família, mas tampouco houve uma revisão judicial do caso. Em 2008 uma nova tentativa de reabrir o processo foi arquivada por causa dos efeitos da Lei de Anistia.

Em um depoimento contundente nesta quarta, o perito Sergio Gardenghi, em nome da CIDH, disse que o Caso Herzog "deve ser retirado do arquivo", porque os crimes da ditadura se enquadram na categoria dos crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis. "Ainda existem práticas de violação dos direitos humanos geradas na ditadura militar", observou o procurador.

Já o advogado Alberto Toron, representando o Estado brasileiro, defendeu a legalidade da prescrição do crime. Embora sejam reconhecidos os atos de tortura e o assassinato contra Herzog, a defesa considerou que tais atos correspondem a um contexto político diferente, sob condições que foram corrigidas pela Constituição de 1988. Também considera improcedente que a Corte julgue atos anteriores a 1998, quando o Brasil aderiu à jurisdição deste tribunal interamericano.

O crime contra Herzog ocorreu durante o Governo do general Ernesto Geisel, quarto presidente da ditadura instaurada após a deposição de João Goulart, em 1964. Há consenso sobre a origem desse assassinato: a repressão a ideias consideradas comunistas. Inicialmente, as autoridades declararam que ele se suicidou com um cinto, em 25 de outubro de 1975, na sede do DOI-CODI (inteligência militar) em São Paulo. As fotos do corpo motivaram suspeitas sobre a falsidade dessa versão. Nelas, o jornalista aparece já morto, com um cinto enlaçando seu pescoço, mas quase ajoelhado no chão, uma posição ilógica para um suicídio por enforcamento. A célebre foto foi mostrada aos juízes da Corte.

O relator da CIDH para a liberdade de expressão, Edison Lanza, salientou que Herzog foi perseguido por seu trabalho de jornalismo crítico. "Depois de uma reportagem sobre a primeira década do golpe militar, Herzog começou a ser vigiado. Como diretor de jornalismo de TV Cultura, foi acusado de fazer proselitismo em favor do comunismo e estigmatizado como um infiltrado da esquerda nesse meio de comunicação", declarou Lanza. Segundo ele, a impunidade e a ocultação da verdade em torno dos crimes da ditadura têm efeitos sobre a liberdade de imprensa no Brasil na atualidade, e, 42 anos depois da morte de Herzog, há medo, autocensura e preconceitos contra a cultura de independência dos meios de comunicação.

"Morreu a pauladas", disse a viúva de Herzog, recordando que depois do assassinato do seu marido ela recebeu telefonemas com mensagens antissemitas, por causa da origem judaica do jornalista. Mencionou ainda ter visto durante algumas semanas um carro da polícia na frente da sua casa. Leu também uma carta escrita por Zora, mãe de Vladimir, já falecida. Ela, que tinha tirado seu filho pequeno da antiga Iugoslávia, lamentava o crime com uma frase: "Salvei o meu filho dos nazistas para que viesse morrer aqui desse jeito".

A Audiência na Costa Rica ocorre apenas 12 dias depois de a Corte Interamericana notificar contra o Brasil a primeira condenação por violência policial, por dois massacres policiais cometidos em 1994 e 1995 na favela Nova Brasília, no Rio, nas quais 26 pessoas foram mortas e três mulheres foram violentadas. A investigação a cargo da polícia local foi arquivada em 2009 por prescrição do crime, sem esclarecimento dos fatos nem sanções aos responsáveis, concluiu a Corte. Tampouco houve reparações às jovens vítimas e violência sexual e aos familiares dos mortos.