domingo, 7 de maio de 2017

SOB OLHAR BRANCO, SOFRIMENTO NEGRO VIRA ESPETÁCULO


EXTRAIDO DO INTERCEPT BRASIL


EM QUALQUER PARTE DO MUNDO! (MF)




Ana Maria Gonçalves






EM 20 DE AGOSTO de 1955, Mamie Till se despediu do filho, Emmett Till, em Chicago, e o embarcou no trem rumo a Money, no estado do Mississippi, onde o garoto passaria alguns dias na casa de parentes. Quatro dias depois, junto com amigos e depois de ter passado o dia inteiro apanhando algodão sob o sol quente do verão sulista, Emmett passou pela Bryant’s Grocery and Meat Market para comprar refrescos. O estabelecimento era propriedade de um casal branco, Roy e Carolyn Bryant, que o acusa de ter flertado com ela. É o que basta para que, em 28 de agosto, Roy e seu meio irmão J.W. Milam, sequestrem Emmett da casa de seu tio, Moses Wright, espanquem-no, dêem um tiro em sua cabeça, amarrem seu corpo a um artefato de metal e o atirem ao rio Tallahatchie.

O corpo, inchado, desfigurado e já em decomposição, é retirado do rio três dias depois, e a identificação se dá através de um anel usado pelo garoto de 14 anos. Tinha sido presenteado por sua mãe um dia antes da viagem, e trazia as iniciais L.T., pois havia pertencido a seu pai, Louis Till. Roy Bryant e J.W. Milam são presos, mas soltos logo em seguida. Alguns dias depois, serão inocentados por um júri para o qual foram selecionados apenas homens brancos.





O enterro de Emmett Till em Chicago, Illinois (EUA), setembro de 1955.



Foto: AP

Em 3 de setembro, o corpo de Emmet Till foi levado para o funeral em Chicago, e milhares de pessoas aguardam em fila para prestar suas últimas homenagens a mais uma vítima do sistema de segregação racial. Diferentemente de enterros feitos às pressas, às escondidas, em meio ao medo e à vergonha, Mamie Till quis que o funeral de seu filho fosse também uma denúncia das atrocidades cometidas contra negros:

“Eu queria que o mundo visse o que eles fizeram com meu filho”, disse ela, justificando a decisão de deixar aberta a tampa do caixão. A imprensa faz ampla cobertura, e as publicações negras Jet Magazine e The Chicago Defender publicam, com a autorização da família, fotos do corpo deformado e mutilado de Emmett Till, chocando e mobilizando a população negra em todo o país. Tal ato teria grande importância para a completa deflagração do movimento pelos Direitos Civis.

Recentemente, essa história teve dois desdobramentos importantes. O primeiro foi a publicação do livro “The Blood of Emmett Till”, no qual, mais de seis décadas depois do assassinato, Carolyn Bryant admite ter mentido sobre o assédio, que nunca teria acontecido. O segundo, uma importante discussão sobre o uso, por parte de uma artista branca, do gesto e da dor de Mamie Till.





“Open Casket” por Dana Schutz exposto no Whitney Museum em Nova York.



FOTO: ALINA HEINEKE/AP


Caixão aberto

Em um protesto, o artista Parker Bright se posiciona de pé, em frente ao quadro “Open Casket”, exposto no Whitney Museum, em Nova York. Durante pelo menos quatro horas por dia, Parker usou o próprio corpo para tampar parcialmente a visão do público e exibir uma camiseta com os dizeres “Black death spectacle”, ou “espetáculo da morte negra”. “Eu queria confrontar as pessoas com um corpo negro vivo e respirando”, justifica Bright. “Open casket”, da pintora branca Dana Schutz, remete a uma das fotos tiradas do corpo de Emmett Till durante o velório, e sua exibição provocou uma das discussões mais interessantes e importantes sobre a espetacularização da violência sobre corpos negros.

Dana Schutz admite que já sabia, de antemão, que seria um trabalho polêmico. Em uma entrevista ao New York Times, ela se defende: “Eu não sei o que é ser negra na América, mas eu sei o que é ser mãe. Emmet Till era o filho único de Mamie Till. O pensamento de algo acontecendo ao seu filho é algo incompreensível. A dor é sua dor. Meu envolvimento com esta fotografia foi através da empatia com a mãe dele”.
“Eu não sei o que é ser negra na América, mas eu sei o que é ser mãe.”

Uma das reações mais contundentes foi da artista e escritora Hannah Black, que publicou uma carta aberta à administração e à curadoria do Whitney Museum, pedindo a retirada do quadro da exposição e a recomendação de que ele seja destruído. “(…) A pintura não deveria ser aceitável para qualquer um que se preocupa ou finge se preocupar com o povo negro, porque não é aceitável que uma pessoa branca transforme o sofrimento negro em ganho e entretenimento, embora tal prática tenha sido normalizada por um bom tempo”, é uma das declarações da carta, assinada também por vários artistas negros.
Um navio negreiro, sem o sofrimento, continua sendo um navio negreiro?

Uma das assinaturas pertence à acadêmica e escritora Christina Sharpe, autora do livro “In the Wake: On Blackness and Being”, que trata exatamente na representação do corpo negro e do ato de vigília e de cuidado com o histórico destes corpos da diáspora. Em uma entrevista, Sharpe declara:


“Estou muito interessada em como a pintura funciona versus como as fotografias verdadeiras de Emmet Till funcionam. Mamie Till Mobley toma a decisão, contrariando muitos conselhos, de ter as fotografias de seu filho publicadas. Não foi a mídia convencional – ou mídia branca – que publicou aquelas imagens. Foi a revista JET. E aquelas imagens não tinham nada a ver com a consciência branca. Elas eram para uma audiência negra, porque a Jet era uma publicação negra. Elas não tinham a intenção de provocar empatia ou vergonha ou conscientizar uma audiência branca. Elas tinham a intenção de falar com e mexer com uma audiência negra. Então Mamie se recusa a esconder aquelas imagens. E ela diz (não é uma citação ao pé da letra): ‘Veja o que eles fizeram ao meu filho. Este é o meu filho. Veja o que fizeram com ele’. Ela insiste que a violência a que ele foi sujeito seja vista, sem atenuações. Parece-me que o que Dana Schutz fez foi pegar esta violência nítida e torná-la abstrata. Mamie Till queria mostrar a violência real.”

Acho essa observação importante, porque há muito se observa a necessidade que algumas pessoas brancas têm de atenuar a violência, a dor e o sofrimento dos corpos negros tocados pela escravidão e pela diáspora. Neste sentido, é representativo o comentário da jornalista Fátima Bernardes sobre o carro abre-alas da escola de samba Vila Isabel: “Um navio negreiro diferente, né? Uma estética completamente diferente, né? Mais moderno, sem tanto sofrimento, né?”. Eu me pergunto: um navio negreiro, sem o sofrimento, continua sendo um navio negreiro?

O quadro de Dana Schultz, separado do gesto histórico de Mamie Till e ressignificado para uma audiência branca, também seria uma tentativa de “modernizar” a História? Ou de, mais uma vez, reescrevê-la, eliminando dela o que incomoda?

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