EXTRAIDO DO INTERCEPT BRASIL
EM QUALQUER PARTE DO MUNDO! (MF)
Ana Maria Gonçalves
EM 20 DE AGOSTO de 1955, Mamie Till se despediu do filho, Emmett Till, em Chicago, e o embarcou no trem rumo a Money, no estado do Mississippi, onde o garoto passaria alguns dias na casa de parentes. Quatro dias depois, junto com amigos e depois de ter passado o dia inteiro apanhando algodão sob o sol quente do verão sulista, Emmett passou pela Bryant’s Grocery and Meat Market para comprar refrescos. O estabelecimento era propriedade de um casal branco, Roy e Carolyn Bryant, que o acusa de ter flertado com ela. É o que basta para que, em 28 de agosto, Roy e seu meio irmão J.W. Milam, sequestrem Emmett da casa de seu tio, Moses Wright, espanquem-no, dêem um tiro em sua cabeça, amarrem seu corpo a um artefato de metal e o atirem ao rio Tallahatchie.
O corpo, inchado, desfigurado e já em decomposição, é retirado do rio três dias depois, e a identificação se dá através de um anel usado pelo garoto de 14 anos. Tinha sido presenteado por sua mãe um dia antes da viagem, e trazia as iniciais L.T., pois havia pertencido a seu pai, Louis Till. Roy Bryant e J.W. Milam são presos, mas soltos logo em seguida. Alguns dias depois, serão inocentados por um júri para o qual foram selecionados apenas homens brancos.
O enterro de Emmett Till em Chicago, Illinois (EUA), setembro de 1955.
Foto: AP
Em 3 de setembro, o corpo de Emmet Till foi levado para o funeral em Chicago, e milhares de pessoas aguardam em fila para prestar suas últimas homenagens a mais uma vítima do sistema de segregação racial. Diferentemente de enterros feitos às pressas, às escondidas, em meio ao medo e à vergonha, Mamie Till quis que o funeral de seu filho fosse também uma denúncia das atrocidades cometidas contra negros:
“Eu queria que o mundo visse o que eles fizeram com meu filho”, disse ela, justificando a decisão de deixar aberta a tampa do caixão. A imprensa faz ampla cobertura, e as publicações negras Jet Magazine e The Chicago Defender publicam, com a autorização da família, fotos do corpo deformado e mutilado de Emmett Till, chocando e mobilizando a população negra em todo o país. Tal ato teria grande importância para a completa deflagração do movimento pelos Direitos Civis.
Recentemente, essa história teve dois desdobramentos importantes. O primeiro foi a publicação do livro “The Blood of Emmett Till”, no qual, mais de seis décadas depois do assassinato, Carolyn Bryant admite ter mentido sobre o assédio, que nunca teria acontecido. O segundo, uma importante discussão sobre o uso, por parte de uma artista branca, do gesto e da dor de Mamie Till.
“Open Casket” por Dana Schutz exposto no Whitney Museum em Nova York.
FOTO: ALINA HEINEKE/AP
Caixão aberto
Em um protesto, o artista Parker Bright se posiciona de pé, em frente ao quadro “Open Casket”, exposto no Whitney Museum, em Nova York. Durante pelo menos quatro horas por dia, Parker usou o próprio corpo para tampar parcialmente a visão do público e exibir uma camiseta com os dizeres “Black death spectacle”, ou “espetáculo da morte negra”. “Eu queria confrontar as pessoas com um corpo negro vivo e respirando”, justifica Bright. “Open casket”, da pintora branca Dana Schutz, remete a uma das fotos tiradas do corpo de Emmett Till durante o velório, e sua exibição provocou uma das discussões mais interessantes e importantes sobre a espetacularização da violência sobre corpos negros.
Dana Schutz admite que já sabia, de antemão, que seria um trabalho polêmico. Em uma entrevista ao New York Times, ela se defende: “Eu não sei o que é ser negra na América, mas eu sei o que é ser mãe. Emmet Till era o filho único de Mamie Till. O pensamento de algo acontecendo ao seu filho é algo incompreensível. A dor é sua dor. Meu envolvimento com esta fotografia foi através da empatia com a mãe dele”.
“Eu não sei o que é ser negra na América, mas eu sei o que é ser mãe.”
Uma das reações mais contundentes foi da artista e escritora Hannah Black, que publicou uma carta aberta à administração e à curadoria do Whitney Museum, pedindo a retirada do quadro da exposição e a recomendação de que ele seja destruído. “(…) A pintura não deveria ser aceitável para qualquer um que se preocupa ou finge se preocupar com o povo negro, porque não é aceitável que uma pessoa branca transforme o sofrimento negro em ganho e entretenimento, embora tal prática tenha sido normalizada por um bom tempo”, é uma das declarações da carta, assinada também por vários artistas negros.
Um navio negreiro, sem o sofrimento, continua sendo um navio negreiro?
Uma das assinaturas pertence à acadêmica e escritora Christina Sharpe, autora do livro “In the Wake: On Blackness and Being”, que trata exatamente na representação do corpo negro e do ato de vigília e de cuidado com o histórico destes corpos da diáspora. Em uma entrevista, Sharpe declara:
“Estou muito interessada em como a pintura funciona versus como as fotografias verdadeiras de Emmet Till funcionam. Mamie Till Mobley toma a decisão, contrariando muitos conselhos, de ter as fotografias de seu filho publicadas. Não foi a mídia convencional – ou mídia branca – que publicou aquelas imagens. Foi a revista JET. E aquelas imagens não tinham nada a ver com a consciência branca. Elas eram para uma audiência negra, porque a Jet era uma publicação negra. Elas não tinham a intenção de provocar empatia ou vergonha ou conscientizar uma audiência branca. Elas tinham a intenção de falar com e mexer com uma audiência negra. Então Mamie se recusa a esconder aquelas imagens. E ela diz (não é uma citação ao pé da letra): ‘Veja o que eles fizeram ao meu filho. Este é o meu filho. Veja o que fizeram com ele’. Ela insiste que a violência a que ele foi sujeito seja vista, sem atenuações. Parece-me que o que Dana Schutz fez foi pegar esta violência nítida e torná-la abstrata. Mamie Till queria mostrar a violência real.”
Acho essa observação importante, porque há muito se observa a necessidade que algumas pessoas brancas têm de atenuar a violência, a dor e o sofrimento dos corpos negros tocados pela escravidão e pela diáspora. Neste sentido, é representativo o comentário da jornalista Fátima Bernardes sobre o carro abre-alas da escola de samba Vila Isabel: “Um navio negreiro diferente, né? Uma estética completamente diferente, né? Mais moderno, sem tanto sofrimento, né?”. Eu me pergunto: um navio negreiro, sem o sofrimento, continua sendo um navio negreiro?
O quadro de Dana Schultz, separado do gesto histórico de Mamie Till e ressignificado para uma audiência branca, também seria uma tentativa de “modernizar” a História? Ou de, mais uma vez, reescrevê-la, eliminando dela o que incomoda?
Ana Maria Gonçalves
EM 20 DE AGOSTO de 1955, Mamie Till se despediu do filho, Emmett Till, em Chicago, e o embarcou no trem rumo a Money, no estado do Mississippi, onde o garoto passaria alguns dias na casa de parentes. Quatro dias depois, junto com amigos e depois de ter passado o dia inteiro apanhando algodão sob o sol quente do verão sulista, Emmett passou pela Bryant’s Grocery and Meat Market para comprar refrescos. O estabelecimento era propriedade de um casal branco, Roy e Carolyn Bryant, que o acusa de ter flertado com ela. É o que basta para que, em 28 de agosto, Roy e seu meio irmão J.W. Milam, sequestrem Emmett da casa de seu tio, Moses Wright, espanquem-no, dêem um tiro em sua cabeça, amarrem seu corpo a um artefato de metal e o atirem ao rio Tallahatchie.
O corpo, inchado, desfigurado e já em decomposição, é retirado do rio três dias depois, e a identificação se dá através de um anel usado pelo garoto de 14 anos. Tinha sido presenteado por sua mãe um dia antes da viagem, e trazia as iniciais L.T., pois havia pertencido a seu pai, Louis Till. Roy Bryant e J.W. Milam são presos, mas soltos logo em seguida. Alguns dias depois, serão inocentados por um júri para o qual foram selecionados apenas homens brancos.
O enterro de Emmett Till em Chicago, Illinois (EUA), setembro de 1955.
Foto: AP
Em 3 de setembro, o corpo de Emmet Till foi levado para o funeral em Chicago, e milhares de pessoas aguardam em fila para prestar suas últimas homenagens a mais uma vítima do sistema de segregação racial. Diferentemente de enterros feitos às pressas, às escondidas, em meio ao medo e à vergonha, Mamie Till quis que o funeral de seu filho fosse também uma denúncia das atrocidades cometidas contra negros:
“Eu queria que o mundo visse o que eles fizeram com meu filho”, disse ela, justificando a decisão de deixar aberta a tampa do caixão. A imprensa faz ampla cobertura, e as publicações negras Jet Magazine e The Chicago Defender publicam, com a autorização da família, fotos do corpo deformado e mutilado de Emmett Till, chocando e mobilizando a população negra em todo o país. Tal ato teria grande importância para a completa deflagração do movimento pelos Direitos Civis.
Recentemente, essa história teve dois desdobramentos importantes. O primeiro foi a publicação do livro “The Blood of Emmett Till”, no qual, mais de seis décadas depois do assassinato, Carolyn Bryant admite ter mentido sobre o assédio, que nunca teria acontecido. O segundo, uma importante discussão sobre o uso, por parte de uma artista branca, do gesto e da dor de Mamie Till.
“Open Casket” por Dana Schutz exposto no Whitney Museum em Nova York.
FOTO: ALINA HEINEKE/AP
Caixão aberto
Em um protesto, o artista Parker Bright se posiciona de pé, em frente ao quadro “Open Casket”, exposto no Whitney Museum, em Nova York. Durante pelo menos quatro horas por dia, Parker usou o próprio corpo para tampar parcialmente a visão do público e exibir uma camiseta com os dizeres “Black death spectacle”, ou “espetáculo da morte negra”. “Eu queria confrontar as pessoas com um corpo negro vivo e respirando”, justifica Bright. “Open casket”, da pintora branca Dana Schutz, remete a uma das fotos tiradas do corpo de Emmett Till durante o velório, e sua exibição provocou uma das discussões mais interessantes e importantes sobre a espetacularização da violência sobre corpos negros.
Dana Schutz admite que já sabia, de antemão, que seria um trabalho polêmico. Em uma entrevista ao New York Times, ela se defende: “Eu não sei o que é ser negra na América, mas eu sei o que é ser mãe. Emmet Till era o filho único de Mamie Till. O pensamento de algo acontecendo ao seu filho é algo incompreensível. A dor é sua dor. Meu envolvimento com esta fotografia foi através da empatia com a mãe dele”.
“Eu não sei o que é ser negra na América, mas eu sei o que é ser mãe.”
Uma das reações mais contundentes foi da artista e escritora Hannah Black, que publicou uma carta aberta à administração e à curadoria do Whitney Museum, pedindo a retirada do quadro da exposição e a recomendação de que ele seja destruído. “(…) A pintura não deveria ser aceitável para qualquer um que se preocupa ou finge se preocupar com o povo negro, porque não é aceitável que uma pessoa branca transforme o sofrimento negro em ganho e entretenimento, embora tal prática tenha sido normalizada por um bom tempo”, é uma das declarações da carta, assinada também por vários artistas negros.
Um navio negreiro, sem o sofrimento, continua sendo um navio negreiro?
Uma das assinaturas pertence à acadêmica e escritora Christina Sharpe, autora do livro “In the Wake: On Blackness and Being”, que trata exatamente na representação do corpo negro e do ato de vigília e de cuidado com o histórico destes corpos da diáspora. Em uma entrevista, Sharpe declara:
“Estou muito interessada em como a pintura funciona versus como as fotografias verdadeiras de Emmet Till funcionam. Mamie Till Mobley toma a decisão, contrariando muitos conselhos, de ter as fotografias de seu filho publicadas. Não foi a mídia convencional – ou mídia branca – que publicou aquelas imagens. Foi a revista JET. E aquelas imagens não tinham nada a ver com a consciência branca. Elas eram para uma audiência negra, porque a Jet era uma publicação negra. Elas não tinham a intenção de provocar empatia ou vergonha ou conscientizar uma audiência branca. Elas tinham a intenção de falar com e mexer com uma audiência negra. Então Mamie se recusa a esconder aquelas imagens. E ela diz (não é uma citação ao pé da letra): ‘Veja o que eles fizeram ao meu filho. Este é o meu filho. Veja o que fizeram com ele’. Ela insiste que a violência a que ele foi sujeito seja vista, sem atenuações. Parece-me que o que Dana Schutz fez foi pegar esta violência nítida e torná-la abstrata. Mamie Till queria mostrar a violência real.”
Acho essa observação importante, porque há muito se observa a necessidade que algumas pessoas brancas têm de atenuar a violência, a dor e o sofrimento dos corpos negros tocados pela escravidão e pela diáspora. Neste sentido, é representativo o comentário da jornalista Fátima Bernardes sobre o carro abre-alas da escola de samba Vila Isabel: “Um navio negreiro diferente, né? Uma estética completamente diferente, né? Mais moderno, sem tanto sofrimento, né?”. Eu me pergunto: um navio negreiro, sem o sofrimento, continua sendo um navio negreiro?
O quadro de Dana Schultz, separado do gesto histórico de Mamie Till e ressignificado para uma audiência branca, também seria uma tentativa de “modernizar” a História? Ou de, mais uma vez, reescrevê-la, eliminando dela o que incomoda?
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