Dom Orvandil, OSF: bispo cabano, farrapo e republicano, presidente da Ibrapaz, bispo da Diocese Anglicana Centro Oeste e professor universitário
Leonardo Boff:
“A boa vontade que falta no Brasil de hoje” Posted on 25/05/2017
Amiga Profª Fátima Lima, Natal, RN
As civilizações se fortalecem na medida em que seus sábios lapidam como pedreiros de picaretas, pás, marretas, cal e cimento em punhos constroem bases profundas na formação das pessoas. Numa cruzada de crise e de decepções como a que vivemos no Brasil e no mundo, hoje, carecemos ainda mais das obras de arte dos sábios. Creio que Leonardo Boff é um desses sábios dedicados a abrir espaços em nossa ignorância para lançar fundamentos para nosso pensar e para nosso agir corretos.
Como teólogo Boff desconfia dos misticismos opressores e superficiais dos que correm por aí de Bíblia nas mãos e com horóscopos supersticiosos a dizer quaisquer coisas que lhes vem à mente, como se fossem verdades absolutas. No campo religioso somos atacados por pessoas despreparadas a proclamar besteiras eivadas de preconceitos, ranços conservadores e chutes que enganam multidões. Os espertalhões metidos a inspirados por Deus atacam de todos os lados: por rádios, tvs e templos espalhados como botequins em todos os bairros e até nas matas. Nosso Leonardo Boff, no entanto, pesquisa, estuda e mergulha fundo nos teólogos, nas culturas e línguas milenares para entender o que e por onde Deus fala. Como filósofo,
Leonardo Boff não se prende a filosofias de almanaque, mas também, como submarino, vai ao fundo dos clássicos e dos modernos para, a partir do aporte filosófico e humanista, entender o ser humano de hoje e nosso mundo à beira do colapso. Claro, nosso intelectual, felizmente brasileiro respeitado em todo o mundo, também não passa a vida toda deitado e morando dentro dos livros. Boff é um sábio das ruas, dos campos, dos pobres e injustiçados que clamam por justiça e por libertação dignificante. No texto que posto abaixo encanta-me o seu conhecimento de Kant ao iscar o conceito “boa vontade” naquele filósofo clássico, uma como joia preciosa, indispensável nas pessoas, material com que devemos contar para enfrentar as borrascas do ódio, da superficialidade e do descrédito, males que tomam conta das pessoas, ameaçando perigosamente o nosso mundo e a desintegração dos laços sociais que nos fazem ser humanos.
Eu apenas discrepo respeitosamente de sua reverência a Dalai Lama, para mim um inimigo e traidor do povo tibetano porque aliado do imperialismo estadunidense. Posto abaixo o maravilhoso texto do teólogo, filósofo, escritor e conferencista Leonardo Boff.
Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz sociais. Dom Orvandil, OSF: bispo cabano, farrapo e republicano, presidente da Ibrapaz, bispo da Diocese Anglicana Centro Oeste e professor universitário, trabalhando duro sem explorar ninguém.
A boa vontade que falta no Brasil de hoje
Na sociedade brasileira atual grassa uma onda de ódio, raiva e dilaceração que raramente tivemos em nossa história. Chegamos a um ponto em que a má vontade generalizada impede qualquer convergência em função de uma saída da avassaladora crise que afeta toda a sociedade. Immanuel Kant (1724-1804), o mais rigoroso pensador da ética no Ocidente moderno, fez uma afirmação de grandes consequências, em sua Fundamentação para uma metafísica dos costumes(1785): “Não é possível se pensar algo que, em qualquer lugar no mundo e mesmo fora dele, possa ser tido irrestritamente como bom senão a boa vontade (der gute Wille)”. Kant reconhece que qualquer projeto ético possui defeitos.
Entretanto, todos os projetos possuem algo comum que é sem defeito: a boa vontade. Traduzindo seu difícil linguajar: a boa vontade é o único bem que é somente bom e ao qual não cabe nenhuma restrição. A boa vontade ou é só boa ou não é boa vontade. Há aqui uma verdade com graves consequências: se a boa vontade não for a atitude prévia a tudo que pensarmos e fizermos, será impossível criar-se uma base comum que a todos envolva. Se malicio tudo, se tudo coloco sob suspeita e se não confio mais em ninguém, então, será impossível construir algo que congregue a todos. Dito positivamente: só contando com a boa vontade de todos posso construir algo bom para todos. Em momento de crise como o nosso, é a boa vontade o fator principal de união de todos para uma resposta viável que supere a crise.
Estas reflexões valem tanto para o mundo globalizado quanto para o Brasil atual. Se não houver boa vontade da grande maioria da humanidade, não vamos encontrar uma saída para a desesperadora crise social que dilacera as sociedades periféricas, nem uma solução para o alarme ecológico que põe em risco o sistema-Terra. Somente na COP 21 de Paris em dezembro de 2015 se chegou a um consenso mínimo no sentido de conter o aquecimento global. Ainda assim as decisões não eram vinculantes. Dependiam da boa vontade dos governos, o que não ocorreu, por exemplo, com o parlamento norte-americano que somente apoiou algumas medidas do Presidente Obama. No Brasil, se não contarmos com a boa vontade da classe política, em grande parte corrompida e corruptora, nem com a boa vontade dos órgãos jurídicos e policiais jamais superaremos a corrupção que se encontra na estrutura mesma de nossa fraca democracia.
Se essa boa vontade não estiver também nos movimentos sociais e na grande maioria dos cidadãos que com razão resistem às mudanças anti-populares, não haverá nada, nem governo, nem alguma liderança carismática, que seja capaz de apontar para alternativas esperançadoras. A boa vontade é a última tábua de salvação que nos resta. A situação mundial é uma calamidade. Vivemos em permanente estado de guerra civil mundial. Não há ninguém, nem as duas Santidades, o Papa Francisco e o Dalai Lama, nem as elites intelectuais mundiais, nem a tecno-ciência que forneçam uma chave de encaminhamento global. Abstraindo os esotéricos que esperam soluções extra-terrestres, na verdade, dependemos unicamente da boa vontade de nós mesmos. O Brasil reproduz, em miniatura, a dramaticidade mundial.
A chaga social produzida em quinhentos anos de descaso com a coisa do povo significa uma sangria desatada. Nossas elites nunca pensaram uma solução para o Brasil como um todo mas somente para si. Estão mais empenhadas em defender seus privilégios que garantir direitos para todos. Está aqui a razão do golpe parlamentar que foi sustentado pelas elites opulentas que querem continuar com seu nível absurdo de acumulação, especialmente, o sistema financeiro e os bancos cujos lucros são inacreditáveis. Por isso, os que tiraram a Presidenta Dilma do poder por tramoias político-jurídicas, ousaram modificar a constituição em questões fundamentais para a grande maioria do povo, como a legislação trabalhista e a previdência social, que visam, em último termo, desmontar os benefícios socias de milhões, integrados na sociedade pelos dois governos anteriores e permitir um repasse fabuloso de riqueza às oligarquias endinheiradas, absolutamente descoladas do sofrimento do povo e com seu egoísmo pecaminoso.
Contrariamente ao povo brasileiro que historicamente mostrou imensa boa vontade, estas oligarquias se negam saldar a hipoteca de boa vontade que devem ao país. Se a boa vontade é assim tão decisiva, então urge suscitá-la em todos. Em momento de risco, no caso do barco-Brasil afundando, todos, até os corruptores se sentem obrigados a ajudar com o que lhes resta de boa vontade. Já não contam as diferenças partidárias, mas o destino comum da nação que não pode cair na categoria de um país falido. Em todos vigora um capital inestimável de boa vontade que pertence à nossa natureza de seres sociais. Se cada um, de fato, quisesse que o Brasil desse certo, com a boa vontade de todos, ele seguramente daria certo.
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