DOLOROSO!
CIRCULOU PELAS REDES sociais, há algumas semanas, a hashtag #meuprofessorracista, com depoimentos estarrecedores sobre casos de racismo vivenciados por estudantes negros e negras de todo o Brasil. Do nível fundamental ao superior, foi interessante perceber o quanto ainda está presente o pensamento higienista e eugênico que norteou a política de implantação da escola pública brasileira que, em vez de profissionais da educação, teve médicos como seus principais articuladores.
Sofrer racismo na escola, entre outras coisas, é a causa de evasão e baixo rendimento escolar, mas, em alguns casos que considero mais exceção do que exemplo, serve como impulsionador de uma “vingança” contra o/a educador/a racista. Provar que ela/a estava errado/a pode se combinar com outros elementos e levar ainda mais além a trajetória de vida daqueles que não se conformam com o lugar predestinado do subalterno.
Isso pode ter acontecido, por exemplo, com a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois. Aos 9 anos, ela passou por uma situação que poderia ter feito parte do meme. Neta de escravos, filha de mãe lavadeira e costureira e de pai motorneiro, ela conta que, certa vez, ao não ter dinheiro para comprar material, um professor disse que deveria então parar de estudar e ir aprender a fazer feijoada na casa de brancos. Em um primeiro momento, chorou, mas enfrentou o professor e disse que um dia se tornaria juíza para poder mandar prendê-lo.
A educação dos pobres brasileiros sempre esteve ligada à vontade das elites.
Continuou estudando e prestando concursos, tornou-se advogada, juíza, desembargadora, e é dela a primeira sentença condenatória de racismo no Brasil. Em 1993, deu ganho de causa à empregada doméstica Aíla de Jesus em uma ação contra o supermercado Olhe Preço que, injustamente, a acusou de roubo.
Analisando a trajetória de vida e o histórico profissional de Luislinda Valois, fica muito difícil compreender a declaração que deu na semana passada, conferindo a Michel Temer o título de padrinho das mulheres negras brasileiras. Para entender o que a garota inteligente e inquieta deve ter passado durante o período escolar, e que pode ter influenciado no episódio, quero falar um pouco da implantação da escola pública brasileira.
A educação dos pobres brasileiros sempre esteve ligada à vontade das elites de instaurar o que chamavam de “ordem civilizatória nos trópicos”, contaminada pelas teorias raciais que tentavam explicar as desigualdades sociais através das diferenças biológicas entre as raças. Os objetivos do higienismo escolar eram: regenerar o caráter, combater os vícios, transformar os interesses individuais em coletivos, incutir o cumprimento do dever e o amor ao trabalho, criar o sentimento nacional e aperfeiçoar a raça. Alunos e alunas negras, independentemente da capacidade de aprendizado, eram considerados, de antemão, inaptos a terem o mesmo rendimento dos alunos brancos, independentes de sua classe social.
“O estilo próprio dos pioneiros da educação no Brasil transformou o sistema público emergente em espaços nos quais séculos de supremacia branca europeia foram reescritos nas linguagens da ciência, do mérito e da modernidade. As escolas que eles criaram foram desenhadas para imprimir a visão de uma elite branca de uma nação brasileira ideal em crianças negras e pobres, que era a substância desse ideal.”, escreveu Jerry D’Ávila, no livro Diploma of Whiteness – Race and Social Policy in Brazil(sem tradução no Brasil).
Não por acaso, esse sistema de ensino público foi desenvolvido pelo Ministério da Saúde e da Educação, coordenado por médicos e cientistas sociais, como Arthur Ramos e Bastos D’Ávila. No departamento de Ortofrenologia e Higiene Mental e do de Antropometria, usando teorias que combinavam psicologia freudiana, criminologia e antropologia italianas, a partir das ideias de Lombroso, os alunos eram submetidos a testes que visavam “provar” sua inferioridade através de uma suposta degeneração racial, como o Terman Group Test, o Dubois Cephalization Index ou um sistema de medidas chamado de Lapicque Index, que visava detectar características africanas latentes em alunos brancos.
Luislinda Valois “se vingou” e chegou lá. É por isto que, mais do que revolta, sua fala provocou em mim um certo constrangimento.
Esse contexto é importante para entender o que continua acontecendo nos dias atuais. Quem der uma busca na hashtag #meuprofessorracista vai perceber que a maioria dos relatos falam de professores que continuam duvidando da capacidade intelectual de alunos e alunas negras. E, infelizmente, acredito que tal comportamento continuará existindo por mais um bom tempo, à revelia da presença e das histórias de vida de vários negras e negras que, apesar de vários obstáculos, “chegaram lá”.
Luislinda Valois “se vingou” e chegou lá. É por isto que, mais do que revolta, sua fala provocou em mim um certo constrangimento. Ela disse que as mulheres negras, mães e avós, teriam-na incumbido de conceder a Michel Temer o título de padrinho das mulheres negras brasileiras. Dentre as que conheço, a revolta foi generalizada, inclusive com manifestações públicas e contundentes de coletivos e associações de mulheres negras.
O meu constrangimento fica por conta de ver ali uma mulher negra que, independentemente de seu posicionamento político, parece ter se esquecido da menina que não se curvou frente ao professor que a condenava. Diante de uma plateia indiferente e totalmente branca, Luislinda se emocionou e chorou. Curvou-se, agradecida, para um político que nem mesmo teve a decência de convidá-la pessoalmente para ocupar o cargo de titular da Secretaria tratada como Ministério, deixando a comunicação a cargo do porta-voz.
Luislinda Valois está onde está a despeito das políticas eugenistas do governo brasileiro e, principalmente, a despeito – e não por causa – de homens como Michel Temer, que em diversas ocasiões já se provou machista e desenvolve atualmente políticas públicas nas quais as maiores prejudicadas serão as mesmas de sempre: as mulheres negras.
Um beijão-mão equivocado e desnecessário, um momento constrangedor que só encontra explicação no racismo estrutural que de vez em quando pode afetar mesmo os mais bem preparados para enfrentá-lo. O que vemos ali naquele vídeo é uma mulher negra, ativista, vencedora, pedindo o apadrinhamento de um homem branco com uma trajetória muito menor e menos digna do que a dela. Não precisava. Nunca precisou.
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