por Luce Pereira
Lembro bem: quando o arquiteto Oscar Niemeyer fez 90, não se mostrou agradecido pela longevidade, muito pelo contrário. Usou um palavrãozinho, desses leves e desde sempre muito apreciados pelos que abominam rigor na fala, para declarar, numa entrevista, que feliz estaria se os anos já não pesassem tanto. Mau humor de gênio? Não, apenas ponto de vista, porque o dono de uma obra também notável vai completar as mesmas nove décadas, na próxima quinta-feira, com um sentimento bem diferente. Neste dia, Abelardo da Hora deverá dizer – sem pestanejar e com a alegria de sempre – eu quero é mais. Ou “começaria tudo outra vez”.
Menos de 1,70 m, menos de 60 quilos. Mas a arte do autor de esculturas como O brado e a fome só pode ser definida com adjetivos graúdos, que igualmente lembram a luta dele para um dia ver o país livre de gritos e tiros disparados em porões, de gente sumindo por defender ideais de justiça. Ele mesmo transformado em vilão por falar de amor e solidariedade. “Fui preso mais de 70 vezes”, uma delas “por falar de paz”, afirmou, em novembro de 2013, à Comissão da Verdade, que tenta retirar o véu espesso colocado sobre crimes cometidos pelo regime militar, no silêncio dos anos de chumbo.
Inquieto por natureza, não se importava em “mexer em casa de marimbondo”, numa época em que política era coisa de gente atrevida. A mulher, Margarida, morria de medo, mas, enfim, os porões se abriram para a liberdade e a arte de Abelardo, também. Ganhou ruas e praças do Recife, fez eco entre os grandes artistas plásticos do país e foi ouvida depois do oceano, embora o sonho de expor na Europa continue à espera das condições ideais para acontecer. E creia, sonhos e planos estão mais vivos do que nunca, aos 90 anos.
Se a leveza, o riso abundante e o amor pelo trabalho servirem para justificar a disposição com que alguns enfrentam o passar dos anos, Abelardo é o exemplo mais bem acabado dessa teoria. Na terra natal, a vizinha São Lourenço da Mata, na Região Metropolitana do Recife, diriam simplesmente que ele não conhece tempo ruim. Talvez porque, também, desfrute da felicidade de viver no meio das “criaturas” que cria, no ateliê da Rua do Sossego, na Boa Vista. São mulheres sensuais; homens que lembram um Brasil desigual e socialmente ferido; personagens da cultura popular, aquela pela qual sua arte pulsa feito coração de menino.
Muito festejado, desde cedo coleciona prêmios e honrarias, mas não perde o foco de sua produção, não se acomoda, porque seria como trair princípios e compromissos assumidos tacitamente com a maior paixão. Enquanto puder, vai tirar de pedras, bronze, lápis e pincéis a arte que o faz ser reconhecido como o professor de outros grandes artistas como Francisco Brennand. “Faço a minha arte respondendo a uma necessidade vital. Como quem ama ou sofre, se alegra ou se revolta, aprova ou denuncia e verbera. [...] Tenho compromissos fundamentais com a cultura brasileira e com o povo da minha terra”, disse em um texto, por ocasião do recebimento da Ordem do Mérito Cultural, concedida pelo Ministério da Cultura, em 2012.
Sim, senhor. Noventa anos. E todos os olhares para trás mostrando que valeram a pena os caminhos percorridos, pois neles encontrou sua arte buliçosa, pulsante. Deve ser a bendita, sim, a responsável por ele querer tanto bem à vida.
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