domingo, 29 de dezembro de 2013

FELIZ 2014 PARA OS BRASILEIROS, FELIZ 2015 PARA O BRASIL

 Cristovam Buarque
































Algo vai mal quando um país que precisa enfrentar seus problemas chama de ano da Copa um ano de eleições presidenciais. É o que está a acontecer com o Brasil.
Cinquenta mil brasileiros são assassinados por ano, outros cinquenta mil morrem no trânsito e outros 515 mil estão presos; a droga compromete a vida, a capacidade de trabalho e o futuro de centenas de milhares de nossos jovens; metade da população não tem acesso a água e esgoto; e a economia se desindustrializa.
Quanto ao potencial científico e tecnológico estamos cada dia mais para trás em relação ao resto do mundo; as avenidas estão atravancadas; a educação apresenta um retrato vergonhoso e uma brutal desigualdade; os hospitais públicos estão caóticos; e a natureza está sendo degradada.
No país, temos 13 milhões de adultos que não diferenciam as letras e outros 40 milhões sem capacidade de leitura; a produção não dispõe de logística eficiente para sua distribuição; e cinquenta milhões de brasileiros vivem graças à (felizmente) ajuda do programa Bolsa Família. Apesar disso, em vez de propostas dos presidenciáveis para 2015, estamos preocupados se os estádios da Copa ficarão prontos em 2014.


Isto se explica por nossa paixão pelo futebol, mas também pela descrença com a política, sobretudo porque não há candidatos propondo programas que empolguem a população. Até aqui, todos são tão iguais no comportamento e na falta de propostas diferenciadas. Assim, sobra apenas o grito de Viva a Copa.
Os candidatos ainda não apresentaram propostas para transformar a viciada economia brasileira de exportadora de bens primários, inclusive, alguns de indústria mecânica, em produtora de bens de alta tecnologia; nem mostraram como vão fazer o desenvolvimento ser sustentável ecologicamente e justo socialmente.
Não há propostas para o cerco em que vivem os brasileiros por causa da violência urbana provocada por desesperados com suas pobrezas diante da imensa guerra ao redor, nem para enfrentar a crescente mobilização de desiludidos, movidos pelas redes sociais, para promoverem atos de bloqueio de trânsito, queima de veículos e quebra de vidraças.
Nenhum candidato propôs ações para emancipar nossos pobres da necessidade de ajuda mensal.
Nenhum dos presidenciáveis disse como vai conduzir o Brasil no rumo da erradicação do analfabetismo e como garantir educação de qualidade igual para todos. Nem qual será o salário dos professores ao fim de seu mandato, nem como eles serão selecionados e avaliados.
Nesse quadro de “des-eleição”, o ano de 2014 será o ano da Copa. No primeiro de janeiro de 2015, poderemos acordar com a sensação de que tudo continuará no mesmo rumo de um país que cresce se desfazendo.
Por isso, só nos resta desejar um Feliz 2014 para cada um dos brasileiros e um Feliz 2015 para o Brasil.

Cristovam Buarque é senador (PDT-DF).

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

FÁBIO KONDER COMPARATO: "CONSTITUIÇÃO DO BRASIL ´É MERA APARÊNCIA DEMOCRÁTICA"

 

A REVISÃO DA CONSTITUIÇÃO FOI DEFENDIDA PELO JUEISTA COMPARATO DESDE 2008 E QUE ESTA NÃO FOSSE FEITA PELO CONGRESSO, MAS POR UMA ASSEMBLEIA EXCLUSIVA. ATÉ HOJE NENHUMA ATITUDE FOI TOMADA PELOS GOVERNANTES PARA QUE ISTO SUCEDESSE. VOCÊ NÃO FICA COM A CERTEZA DE QUE REALMENTE NOSSA CONSTITUIÇÃO É ERA APARÊNCIA DENOCRÁTICA?  (Maristela Farias)

 
Fábio Konder Comparato: “Constituição do Brasil é mera aparência democrática”
 


O jurista Fábio Konder Comparato fala à Fórum sobre a necessidade de efetivação dos mecanismos de participação direta, os entraves para a democratização da comunicação no Brasil e o poder das oligarquias na sociedade brasileira. A entrevista foi publicada na edição 88 da revista, de julho de 2010.

Fórum – O senhor defendeu, em 2008, no aniversário de 20 anos da Constituição, uma revisão constitucional, que não fosse feita pelo próprio Congresso Nacional, mas por uma assembleia exclusiva. O senhor ainda acha que isso é possível? Por que não existe ainda uma mobilização da sociedade em torno dessa linha?

Fábio Konder Comparato – Porque a sociedade nunca se mobiliza para nada. Porque, na verdade, a tradição brasileira, no campo político e social, é a da passividade do povo. A única constante inabalável até agora, na política brasileira, é a oligarquia. Ou seja, um pequeno grupo de poderosos ricos que comanda, que manda, e “quem tem juízo tem que obedecer”. Como diz o ditado. De modo que a própria Constituição do Brasil é, em si, de mera aparência democrática. Na verdade, ela consolida a burocracia, a oligarquia que sempre existiu. Nós precisamos vencer esse obstáculo, e a vitória seria em consequência de duas coisas. Em primeiro lugar, uma mudança institucional, e em segundo, uma mudança de mentalidade social, porque o povo está habituado a isso. O povo, no seu conjunto, respeita o poder, e teme qualquer manifestação de rebeldia considerada desordem. Isto é, em grande, parte fruto de quatro séculos de escravidão. Agora, a mudança de mentalidade de um povo não ocorre em pouco tempo. É preciso um grande trabalho de educação cívica e de educação ética.

A minha proposta visava tentar romper o bloqueio oligárquico, mas não tive nenhuma ilusão quanto à possibilidade de ela ser aceita – aliás, até hoje não foi acolhida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), onde apresentei a proposta [hiperlink]. Mas o fundamental não é que uma proposta desse tipo seja imediatamente aceita e sim que ela comece a ser discutida. E aí é que vai um pouco esse trabalho de educação cívica de mudança de mentalidade.

Qual é o maior poder numa sociedade política? Sem dúvida o de ditar a lei maior, a Constituição e de modificá-la. Quem tem esse poder? É o povo. Nenhuma constituição brasileira até hoje foi aprovada pelo povo. Até hoje, todas as constituições republicanas preveem como único órgão legitimado a emendar a constituição o Congresso Nacional, que é um poder exclusivo. Então, obviamente, não é o povo soberano, mas a nossa Constituição tem uma aparência democrática. Por exemplo, ela começa, logo no artigo I, no I parágrafo, que todo o poder emana do povo, que o exerce diretamente, ou por meio de representantes eleitos. Ora, democracia representativa em primeiro lugar sempre foi uma farsa no Brasil, porque o sistema eleitoral não dá uma representação do povo, dá uma representação parcelada, e muito desigual do eleitorado – eleitorado esse que é, como eu disse, fracionado em estados. O povo não pode ser fracionado em estados. O estado em si, a organização estatal, que pode ser dividida em estados. O povo não, o povo é uno e soberano. E além disso, pelo próprio mecanismo do sistema eleitoral, dá-se muito mais força, de um lado, a potentados locais, e de outro lado há figuras de expressão popular, muitas que não têm nenhum compromisso político maior, apenas tomar o poder e gozar dele.

Em segundo lugar, a democracia direta é uma farsa no Brasil. O artigo 14 da Constituição diz que o plebiscito e o referendo são manifestações da soberania popular, mas o povo só tem direito de se manifestar em plebiscitos e referendos mediante autorização e convocação do Congresso Nacional. É o que está no artigo 49, inciso 15 da Constituição. Então veja, nossa inventividade jurídica é extraordinária. Nós criamos uma figura de mandato única no mundo, em que o mandante só pode se manifestar se o mandatário lhe der autorização.

Fórum – Esse sistema com referendos e plebiscitos de certa maneira vem sendo utilizado na América Latina em países como Bolívia, Venezuela e Equador. O senhor acha que onde esses sistemas foram utilizados os avanços foram muito maiores, do ponto de vista institucional, do que no Brasil? Ou que esses mecanismos sozinhos acabam também sendo utilizados, às vezes, para outros fins que não empoderar a população?

Comparato – Bom, é preciso que esses instrumentos sejam modestamente utilizados. Em primeiro lugar, há uma tradição europeia no sentido de que o governante autoritário e ditatorial se legitime mediante plebiscitos. Então o povo aprova não uma medida política, um programa, aprova a pessoa do dirigente. É por isso que na proposta, ou melhor, no anteprojeto de lei que apresentei ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e que foi transformado em projeto de lei tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, [hiperlink: na Câmara dos Deputados é o projeto 4718 de 2004, no Senado Federal é o projeto número 1 de 2006] o chefe de Estado não tem o poder de convocar plebiscitos e referendos. A iniciativa não pode ser dele, mas do próprio povo ou então de uma minoria qualificada do Congresso Nacional, 1/3 de deputados, ou 1/3 de senadores.

Fórum – Isso não levaria ao risco de a gente ter uma quantidade enorme de plebiscitos, professor? 1/3 no Congresso simplificaria demais…

Comparato – Em primeiro lugar, a iniciativa popular é um processo demorado, necessariamente. Em segundo lugar, instituído isso no Congresso Nacional, mas com a exigência de que o Congresso apenas decida sob o aspecto formal, ou seja, a regularidade do procedimento não o mérito, isso vai fortalecer enormemente a oposição. E a oposição não percebeu isso, ou melhor, percebeu mas não quis aceitar, porque no Brasil situação e oposição fazem parte do mesmo conjunto oligárquico. O que se quer é que tudo se decida entre eles, políticos lá em cima, perante o povo que assiste a esse debate como se fora um mero espectador do teatro político.

Por que eu digo isso? Porque se a oposição tivesse o poder de iniciativa em matéria de referendos e plebiscitos, haveria muito poucos referendos e plebiscitos assim iniciados. O debate se instalaria no Congresso, e se não houvesse acordo, a oposição ameaçaria recorrer ao soberano, que é o povo. Evidentemente, a maioria recuaria. Só em caso extremo é que ela deixaria que o povo decidisse. E o fato de o povo decidir sobre medidas, sobre programas, é muito mais educativo do que decidir sobre a figura de um candidato, inteiramente fabricada pelos marqueteiros.
O que significa decidir por um candidato? Uma mera simpatia, não mais do que isso. O candidato tem compromisso? Nenhum. Os poucos candidatos que hoje apresentam programas de desempenho político nunca os cumprem. Agora, quando o povo passa a discutir e decidir medidas concretas, ele acaba se autoeducando.

Fórum – No último referendo que tivemos, sobre a questão do armamento, a decisão teve influência muito direta também do poder econômico. O lado que poderia perder algo do ponto de vista financeiro se organizou muito melhor, contratou os melhores marqueteiros, fez a melhor campanha e impôs uma derrota aos movimentos sociais, principalmente os relacionados aos direitos humanos. Esse risco não é igual? O marqueteiro está aí para tudo, não só para uma eleição entre personagens…

Comparato – Meu caro, a oligarquia é muito mais inteligente do que nós outros, pobres mortais. Por que eles fizeram esse referendo? Tinham certeza absoluta de que iam dominar todo o processo de propaganda. Algum partido político se manifestou contra a venda de armamentos? Nenhum. Como foi feita a propaganda? Quem influenciou a propaganda? A Justiça Eleitoral interveio para manter o mínimo de equilíbrio? Não.

Fórum – Nesse caso, o plebiscito também pode ser instrumentalizado pelo poder econômico.

Comparato – Mas é claro. Aí foi como os tais plebiscitos da era napoleônica. É uma maneira distorcida de se fazer com que o povo aceite uma proposta que vem de cima. Se nós fizéssemos uma campanha eleitoral, com todos os seus defeitos, da mesma maneira que foi feita a campanha do referendo, teríamos resultados infinitamente piores do que os atuais. E por que tudo isso, na verdade? Aí é o ponto fundamental: um elemento central da oligarquia são os meios de comunicação de massa, cuja história ilustra de maneira muito clara a passagem de um contra-poder a um membro da oligarquia, a um poder efetivo no campo político.

Queria, rapidamente, mostrar a vocês como evoluiu isso. Na época da independência do Brasil, havia tantos periódicos – jornais e revistas – que se falou numa “praga periodiqueira”. Só no Rio de Janeiro, em 1821/22, havia 20 periódicos. No período de reação autoritária, com a dissolução da Constituinte em 1823, houve uma drástica redução nesse número. Ou seja, nós começamos com a imprensa sendo um contra-poder, uma espécie de controle daqueles que exerciam o poder. Na primeira metade do 2° Reinado, houve uma multiplicação de periódicos em todo o país. Como o poder, ou seja, os diferentes governos – era um regime parlamentar – tinham medo da imprensa, estabeleceu-se a prática de se subsidiarem, por baixo dos panos, determinados jornalistas. No seu livro famoso, que é a autobiografia do pai, um estadista do Império, Joaquim Nabuco comenta o caso paradigmático de um grande jornalista do 2° Reinado, Justiniano José da Rocha. Ele reconheceu, em um debate na Câmara dos Deputados, que havia recebido, regularmente, subsídios, propina, por parte dos governantes. Então o poder público temia a imprensa livre.

Quando começou a campanha abolicionista, ela foi feita, sobretudo, nos periódicos. Luís Gama, José do Patrocínio, o jornal O Abolicionista, da Sociedade Brasileira contra a Escravidão. A mesma coisa quando se começou a discutir a República. Ou seja, a imprensa era, no Brasil, um fórum de debate sobre a vida política, e o jornal A República, do Rio de Janeiro, chegou a uma tiragem inédita para a época. Em 1870, ele tinha 10 mil exemplares. Na primeira República continua essa agitação política do final do Império, até o Estado Novo getulista. Aí estabeleceu-se a censura oficial e severa, não só de jornais, mas também de telefones. Filinto Müller foi encarregado de fazer essa censura.

Quando chegamos ao período intermediário entre dois autoritarismos, ou seja, a Constituição de 1946, que vigorou até 64, teve início, começou a ser formado o oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa. Oligopólio privado, portanto, e que acabou se consolidando no regime militar. Então, todos os jornais foram enquadrados, o único que se revoltou claramente foi o Correio da Manhã, no Rio de Janeiro. O Estado de São Paulo pregou o golpe, mas no fim a família Mesquita acabou se indispondo com os militares e tentou resistir à censura, como todos sabem.

A televisão passou a ser o grande veículo de propaganda do regime. Qual era essa propaganda? Era a democracia – no Brasil as palavras têm sempre um sentido oposto àquele que consta no dicionário –, democracia contra o terror comunista. Mas, um outro elemento fundamental desse oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa, é um instrumento de apoio ao capitalismo pela propaganda consumista. Nós temos hoje, seguramente, o exemplo mais aberrante de abuso na propaganda consumista em todo o mundo. Não existe nenhum programa, fora alguns de televisões públicas ou educativas, e hoje cada vez menos, que não seja interrompido pela propaganda.

Ora, esses grandes veículos só diferem entre si sob o aspecto da concorrência empresarial, porque eles querem ganhar dinheiro. Eles têm exatamente a mesma orientação, rígida quanto à manutenção da oligarquia. Quando era jovem, e lá se vão várias décadas, se dizia: “para ser bem informado é preciso ler todos os jornais”, ou pelo menos vários jornais. Hoje, quanto ao conteúdo, eles são idênticos, só mudam no estilo e, ainda assim, essas mudanças vão se tornando cada vez mais reduzidas.

Fórum – Sobre os grandes meios de comunicação e educação, pode-se dizer hoje que a televisão é o grande educador do país?

Comparato – Embora o público tenha uma percepção pouco crítica dessa propaganda oligárquica e capitalista, existe de certa forma uma mudança. Por exemplo, 80% da nossa população ouve rádio pelo menos 15 minutos por dia. O consumo médio diário de televisão aberta entre nós é de 4 horas e 42 minutos por pessoa, de acordo com levantamento feito em 2008. Pois bem, 83% dos entrevistados em uma pesquisa de opinião pública realizada em 2009, 83% declaram confiar nos jornais, na televisão e no rádio, contra apenas 17% que reconheceram não ter neles confiança alguma, ou quase nenhuma.

Mas, ainda aí, nota-se uma evolução, ou seja, essa maioria extraordinária, que confia globalmente no rádio e na televisão, e não tem a mesma confiança no que diz respeito à parte política dos jornais, da televisão e do rádio. Estou aqui com uma pesquisa de opinião pública feita em 2009 pelo Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas, o IPESP. Qual é o resultado dessa pesquisa? A pergunta é “Confia no noticiário político dos jornais?”, 46% disseram não, e 44% disseram sim. “Confia no noticiário político da televisão?”, 60% disseram não, e 30% sim. “Confia no noticiário político do rádio?”, 61% disseram não, e 25% disseram sim. Isso já está começando a mudar. Eis por que é preciso continuar a difundir, talvez pela internet, ou pelos jornais e revistas do tipo Fórum, essas ideias, para formar, organizar o povo, e mudar essa mentalidade.

Fórum – Falando em veículos de comunicação, o senhor viveu uma experiência desagradável no episódio da “ditabranda”, da Folha de São Paulo. Como o senhor, hoje, analisa o que aconteceu? Até porque o senhor era um colaborador eventual do jornal…

Comparato – Era.

Fórum – Como foi essa mudança, essa guinada que os veículos de comunicação, principalmente impressos, deram para a direita nos últimos anos? E qual sua opinião quanto à questão do direito de resposta e à falta de segurança jurídica para que esse direito seja exercido?

Comparato – Os jornais hoje se queixam, cada vez mais, de uma propalada censura que é feita contra eles, mas o público leitor não tem ideia da censura efetiva que todos os jornais fazem em relação a certas ideias, a certas propostas e a certas personalidades. Eu poderia ficar muito orgulhoso pelo fato de os dois maiores jornais de São Paulo censurarem a minha pessoa, não publicam meu nome em momento algum. Por quê? Não é porque, precisamente, eu defenda a reforma política mediante a introdução de mecanismos de democracia direta ou participativa, mas é porque, há vários anos, venho denunciando o oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa.

No caso do jornal, e eu vou usar o estilo deles e prefiro não dar o nome, o episódio foi marcante, porque, em primeiro lugar, minha manifestação contrária ao jornal deu-se a respeito de um editorial que refletia, portanto, o pensamento dos donos do jornal sobre o regime militar. Dizer que o regime militar no Brasil foi uma “ditabranda” porque houve muito menos mortes do que em outros países da América Latina é um escárnio.

Bastaria que houvesse uma só morte não sancionada, como o Supremo Tribunal Federal acabou decidindo, para que esse regime fosse ignóbil. Mas, em segundo lugar, quando o diretor de redação retrucou a minha carta, e a da professora Maria Vitória de Mesquita Benevides – duas cartas separadas, nós não assinamos nada em conjunto, e é estranho que nós tivéssemos sido escolhidos ambos juntos, pela direção –, qual foi a tentativa de explicação do diretor da redação? Não tinha nada a ver com a questão que foi por nós levantada, disseram que éramos condescendentes com regimes ditatoriais, notadamente o regime cubano, com tanto azar que, alguns dias depois, o ombudsman declarou que a carta do diretor de redação continha um erro de fato, porque eu havia enviado ao jornal recentemente uma carta na qual atacava o regime cubano.

Em seguida, um diretor do jornal, pressionado pelo seu amigo íntimo, resolveu voltar atrás e disse que realmente o editorial que qualificava o regime ditatorial como “ditabranda” foi um erro. Então veja, o editorial foi desmentido pelo próprio jornal, a acusação contra mim e a professora Maria Vitória, foi desmentida pelo ombudsman, mas eu continuei sendo cínico e mentiroso. Tirem as consequências disso aí.

Fórum – Professor, passando da questão dos meios de comunicação para o sistema político brasileiro, o senhor disse que o sistema eleitoral divide o país em estados quando o povo é uno. É o caso de discutirmos também a representatividade e o sistema bicameral?

Comparato – O sistema é aberrante, nós copiamos dos Estados Unidos, tornando ainda pior do que é nos Estados Unidos. Por que lá o Congresso tem o Senado e a Câmara dos Representantes? Porque a independência dos EUA foi uma rebelião confederativa, e a autonomia das antigas colônias inglesas sempre foi uma espécie de princípio fundamental do país. Eles, com muita dificuldade, conseguiram transformar uma confederação em federação. Mas, até hoje, as prerrogativas de autonomia local são muito fortes.
Ora, no Brasil o caminho foi exatamente o inverso. Durante todo o Império, nossa organização política foi centralizadora. Claro que havia núcleos políticos locais, que representavam, de certa forma, uma ligação de coronéis locais, mas a decisão local sempre ficou com o centro do poder na Corte. Quando se falou em República, o que se tinha em mente era sem dúvida a descentralização do poder político, porque na época havia o domínio do café no Sudeste brasileiro, e o principal imposto era o imposto de exportação, de modo que os grandes fazendeiros e os políticos a eles ligados queriam que houvesse uma descentralização não só política, mas financeira.

Então, nós não instauramos propriamente uma República em 15 de novembro de 1889, nós instauramos um regime de descentralização oligárquica. Na verdade, nós nunca tivemos a supremacia do bem comum do povo sobre os interesses particulares, que é a definição de República. Já no começo do século XVII, Frei Vicente de Salvador, que é o primeiro historiador do Brasil, dizia, numa frase emblemática, “nenhum homem nesta terra é rei público, nem zela e trata do bem comum, se não cada um do bem particular”. E isso, no caso da mudança do regime político em 1889, foi mais do que evidente. Tratava-se de defender os interesses econômicos do Sudeste, sobretudo, mas também os interesses locais de dominação coronelista nos outros estados.

O que acontece é que, com isso, todo o sistema eleitoral foi falseado. Em primeiro lugar porque a Câmara dos Deputados não é um órgão de representação do povo brasileiro. Se as eleições para deputado federal são feitas em circunscrições estaduais, é evidente que há uma deformação flagrante no sistema de representação do povo. Em segundo lugar, como nós aceitamos o sistema proporcional de eleições, que exige a existência de partidos políticos e nacionais – os partidos da República Velha eram estaduais – essa tradição local permaneceu até hoje. Todos os partidos políticos do país acabam se deteriorando, perdendo a substância e a autenticidade, e se tornam grandes conchavos, também aí oligárquicos. O espírito oligárquico, ou seja, a dominação da minoria, permeia todas as associações e grupos organizados no Brasil. O sindicato é oligárquico, o partido, obviamente, é oligárquico, as universidades são oligárquicas, todas as grandes associações de classe são oligárquicas.

Fórum – O senhor diria que nós não vivemos numa democracia.

Comparato – Óbvio que não vivemos numa democracia. Democracia é, sobretudo, soberania popular. Soberania significa controle. Poder de controle significa tomar grandes decisões e fiscalizar, responsabilizar e destituir os representantes. O empresário que controla uma empresa não tem um poder meramente retórico ou simbólico. É ele que decide se vai continuar ou não com a empresa, os programas para o futuro. O povo brasileiro tem um poder semelhante? É óbvio que não, nós temos uma aparência democrática, mas a aparência é muito importante. É a mesma coisa que aconteceu durante a escravidão…

Fórum – Da mesma forma, essa democracia com esse tipo de representação, nesse caso, não é uma invenção brasileira, ela é o mesmo tipo de representação utilizada em muitos países…

Comparato – Não é uma invenção brasileira, mas a deformação aqui é muito maior do que a da grande maioria dos países. Muito maior, mas nunca atacada porque, para nós, sobretudo no exterior, é preciso manter as aparências.

Fórum – Remetendo a uma pergunta feita anteriormente, o senhor vê expressão de democracia direta, ou também um falseamento, nas experiências da Venezuela, da Bolívia, do Equador? Podemos dizer que eles têm um grau de democracia mais avançado que no Brasil?

Comparato – Eles têm uma possibilidade de mudança maior do que no Brasil. Repete-se aqui um trágico episódio do regime militar. Os regimes militares no Chile, na Argentina e no Uruguai tiveram resultados muito mais trágicos do que no Brasil. O número de pessoas mortas e desaparecidas, por exemplo, foi muito maior, mas eles mudaram muito mais rapidamente do que nós. Ainda não mudamos.

Hoje, na Argentina, todos os presidentes do regime militar foram levados ao tribunal, foram condenados, estão cumprindo pena. No Chile, o ditador Pinochet foi perseguido até mesmo no exterior, e as leis de autoanistia foram anuladas. No Brasil não, nós tivemos, como diz aquele jornal, uma “ditabranda”, mas impedimos que sejam processados os assassinos, torturadores e estupradores oficiais, que tinham poder oficial para fazer isso, e todo mundo no governo sabia que eles faziam isso. De modo que, de certa maneira, nós somos politicamente piores do que esses outros países. Nós somos, exteriormente, mais civilizados, compassivos, mais democratas, mas somos, na verdade, irredutivelmente oligárquicos, e de uma crueldade sem remissão. Depois de quatro séculos de escravidão, nós viramos a página e não queremos saber de nada, até queimamos os arquivos de escravidão. Depois de 20 anos de regime militar, o governo promulgou uma lei de autoanistia e o Supremo Tribunal Federal diz que é isso mesmo.

Fórum – Mas, insistindo. O senhor acha que esses países estão vivendo experiências mais ricas do ponto de vista da participação popular ou também tem uma liderança forte que, para se manter no cargo, para se manter no poder apela para esses plebiscitos, para esse tipo de consulta popular?

Comparato – Acho que é uma evolução positiva. É claro que, no início, há sempre um caráter plebiscitário pessoal, mas, aos poucos, a consciência pública começa a evoluir, a se abrir, e no Brasil também, embora com muita dificuldade porque, repito, os meios de comunicação de massa estão fechados com o poder oligárquico. Claro que não concordo com tudo o que diz o Chávez na Venezuela, mas ele deu início a um processo de denúncia do poder empresarial, sobretudo nos meios de comunicação de massa, iniciou um sistema de decisões populares sobre assuntos locais, problemas do dia a dia, e isso não tem volta. Claro que houve uma tentativa de uso desses mecanismos para endeusar um chefe de estado, mas isso, de certa forma, acaba sendo revelado ao povo, e a tendência, repito, é num sentido positivo.

Fórum – O senhor citou também, na questão da transição para a democracia, ou para a falsa democracia, a corporação militar junto com o poder judiciário, inclusive nessa questão da decisão do STF. O senhor acha hoje o poder judiciário o menos transparente dos três poderes?

Comparato – O poder judiciário sempre foi o menos transparente, mas ainda temos ultimamente tido uma evolução muito positiva. A partir da instalação do Conselho Nacional de Justiça, que não é um órgão de controle externo, porque a maioria absoluta dos seus componentes é de magistrados, acabamos abrindo a caixa preta e percebemos algo que os advogados já sabiam há muito tempo: o grau de corrupção do judiciário é enorme. E não se trata apenas de corrupção no segundo escalão. A corrupção atinge também os magistrados, veja os últimos fatos que foram revelados pelo Conselho Nacional de Justiça.
Há um duplo caráter no brasileiro, um dualismo, uma duplicidade lamentável. Para efeitos exteriores, nós somos sempre modernos, avançados, civilizados, mas é só a indumentária exterior, a indumentária de gala. Em casa, evidentemente, nós usamos trajes mais cômodos e adequados ao ambiente doméstico, ou seja, nós somos exatamente o contrário daquilo que nós aparentamos no exterior. É por isso que as mudanças no Brasil são mais lentas e mais penosas.

Fórum – Mas essas mudanças já são perceptíveis?

Comparato – Acho que elas são cada vez mais claras. Todo o problema agora é não errar na ação política. Nós não modificaremos o Brasil através de eleições no sistema atual e militância em partidos. Nós temos que educar o povo para que, desde a esfera local até o âmbito nacional, ele se organize e exerça a sua soberania e a defesa dos seus direitos fundamentais. Para começar, o povo brasileiro em geral não sabe o que é o direito, acha que direito é um favor, uma vantagem, e não uma exigência. Então nós temos que começar, e é por isso que, juntamente com outros professores, fundei em São Paulo, a escola de governo, que já tem 20 anos, nós temos que começar educando o povo, o povo mais pobre, em algo que é uma evidência patente.

]Ou seja, você tem direito, não só à educação e à saúde, mas você tem o direito a não morrer de fome. Esse é um direito, não é uma vantagem que o governo te dá, através de Bolsa Família, ou outras coisas. É um direito seu. Oras, pra você defender o seu direito, você precisa se organizar com outros. Política se faz coletivamente, não individualmente. E a função do partido político do futuro, ou de organização política que tenha esse nome ou outro, não é de querer se servir do povo para conquistar o poder. É de educar e formar a consciência popular para que o povo, diretamente, exerça o poder de controle. Isso não significa que o povo vá governar, mas significa que ele vai controlar todos aqueles que governam.

Nesse sentido, por exemplo, tive a ocasião de propor à Ordem dos Advogados do Brasil de se introduzir no Brasil o recall, o referendo revocatório de mandatos eletivos. Ou seja, o povo elege e pode destituir, substituindo o velho impeachment. O que está hoje em discussão no Senado Federal é a proposta de emenda constitucional número 73, de 2005. Ainda aí, não tenho ilusões, porque é muito difícil de conseguir aprovação. Mas a discussão já entrou na agenda política. É claro que nós não vamos poder contar com o apoio de nenhum setor da oligarquia. Mas a grande vitória não consiste em ter, amanhã, de um dia para o outro, digamos assim, a introdução do recall no país, consiste em pôr o assunto na ordem do dia, isso tem que ser discutido.

Fonte: Revista Forum

FABIO KONDER COMPARATO: UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA SOCIAL

 



Neste artigo de março/2010, o jurista Fábio Konder Comparato mostra que a reserva de vagas para negros nas universidades públicas não apenas é constitucional como a ausência desse tipo de política representa uma inconstitucionalidade por omissão





Para o jurista Fábio Konder Comparato, professor aposentado da Universidade de São Paulo e um dos defensores da proposta, a adoção de cotas raciais nas universidades públicas “não apenas é constitucional, como a ausência desse tipo de política representa uma inconstitucionalidade por omissão”. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista concedida à CartaCapital.

CartaCapital: As cotas raciais são constitucionais?

Fábio Konder Comparato: Em primeiro lugar, é preciso saber que a reserva de vagas para negros nas universidades públicas não apenas é constitucional como a ausência desse tipo de política representa uma inconstitucionalidade por omissão. O artigo 3º, inciso III, da Constituição de 1988, é muito claro a esse respeito. “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Essa determinação constitucional não é um simples programa de intenções. É uma norma obrigatória. Enquanto os poderes públicos não cumprem esse objetivo nem tomam medidas para atingi-lo, eles estão descumprindo a Constituição. No caso específico da população negra, a desigualdade é brutal. Atualmente, pretos e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres da nossa população. Eles são os pobres dos pobres. No mercado de trabalho, com a mesma qualificação e escolaridade, os negros recebem em média a metade do salário pago aos brancos. Enquanto 58% da população branca está no Ensino Médio, há apenas 37% de negros neste mesmo nível educacional.

CC: Daí a necessidade de políticas de inclusão. Mas não necessariamente de reserva de vagas ou cotas raciais, afirmam os críticos da medida. O senhor concorda?

FKC: Essas distorções se reproduzem no Ensino Superior. Além disso, a Constituição tem outros dispositivos análogos à proposta de reserva de vagas para negros nas universidades. No artigo 7º, inciso XX, estabelece-se a necessidade de “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos”. Da mesma forma como os opositores das cotas chamam esse tipo de política de racista, poderíamos dizer que a Constituição, nesse ponto, foi sexista. Mas não é esse o entendimento, trata-se de uma medida de proteção a uma minoria. E eu insisto num ponto: a ausência de medidas de inclusão como as cotas nas universidades é que representa um descumprimento da norma constitucional. E, devo acrescentar, se ficarmos apenas nessa política de cotas nas universidades, estaremos apenas cumprindo o mínimo daquilo que deveríamos fazer para levantar a população negra no Brasil.

CC: Por mais que se constate a vulnerabilidade da população negra no Brasil, muitos criticam a adoção de critérios raciais no ingresso à universidade. Boa parte deles defende a adoção de critérios estritamente sociais para as cotas, como a renda familiar. Há validade neste tipo de argumento?

FKC: Bom, esse é um retrato do Brasil. Nos EUA, o racismo é declarado, não é escondido. E os americanos tomam medidas para reduzir as desigualdades entre as diferentes etnias. No Brasil, o racismo é enrustido e dissimulado. E toda vez que procuramos lutar contra essa desigualdade escandalosa, os conservadores racistas se põem de pé e bradam contra a existência de “políticas racistas”. Exteriormente temos uma brilhante Constituição, equivalente a dos países mais avançados do mundo. Mas isso daqui é só para inglês ver. Internamente, cada um sabe o seu lugar. E nada de pular de galho, senão o cidadão se arrebenta no chão. Isso representa uma hipocrisia difícil de ser tolerada.

CC: Essa hipocrisia também se verifica no discurso meritocrático? Isto é, de que apenas pelo mérito os melhores alunos deveriam ingressar no Ensino Superior.

FKC: Mas os negros vão entrar na universidade de que jeito? Por decreto? Eles também não passam por um processo de seleção, pelo vestibular? Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, quando foi criado um curso de pós-graduação em Direitos Humanos, nós criamos vagas preferenciais para estudantes negros e para deficientes físicos. No caso dos negros, o desempenho deles foi exatamente igual ao dos brancos. E eles não entraram de graça, tiveram de passar por um rigoroso processo de admissão.

CC: Para o senhor, todos esses argumentos são falaciosos?

FKC: Sim. Tanto que o partido que encampou essa ação de inconstitucionalidade das cotas é um retrato do Brasil. Eles, com o perdão da palavra, se auto-intitulam “Democratas”. É... no nome são. Mas aqui é assim, tudo é só no nome. Nada é pra valer.

CC: Mas porque este tipo de argumento sensibiliza até mesmo pessoas com histórico de militância no movimento negro, e que identificam nas cotas raciais um precedente perigoso? FKC: Eu entendo isso. Depois de quase quatro séculos de escravidão, existe na mentalidade dos pretos e pardos um complexo de inferioridade muito grande. E muitos rejeitam medidas que consideram puramente assistenciais. Mas estes representam, evidentemente, uma minoria. A grande maioria da população negra é indiferente. Eles engoliram o racismo que sofreram por séculos e não protestam. E há uma minoria esclarecida que defende a dignidade da população negra e exige o cumprimento da Constituição. Assim como há também uma minoria que não quer mexer no assunto porque, segundo eles, isso seria um reconhecimento de que os negros são inferiores. De modo geral, eles se consideram iguais em tudo em relação aos brancos. Acontece que eles não são iguais economicamente ou socialmente. Os negros estão em situação de grande penúria e os dados que passei não são invenção, tratam-se de dados oficiais. É preciso reconhecer essa injustiça flagrante para lutar contra ela.

CC: Há uma série de ações contestando as cotas raciais na Justiça. O senhor tem conhecimento se também existem ações contra o poder público por descumprimento da Constituição, no que diz respeito à redução das desigualdades étnicas?

FKC: Na Justiça do Trabalho, fiquei sabendo de algumas poucas ações contra bancos, por haver – dissimuladamente, como sempre no Brasil – uma política de não contratação de negros. E foi só recentemente que começaram a aparecer apresentadores negros na tevê brasileira. Os últimos dados do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) mostram que, em 2006, 55,2% da nossa população masculina se reconheceu como negra. E 49,7% das mulheres brasileiras também se reconheciam como negras. Levando em conta o percentual considerável daqueles que não reconhecem a sua origem africana, os negros constituem a maioria incontestável da população no Brasil. Deveríamos ficar de braços cruzados em relação à marginalização desse povo?



CC: O senhor acredita que a política de reserva de vagas para negros tende a sair das universidades e ser aplicada também no mercado de trabalho, para corrigir essas distorções?

FKC: Acho que sim. Não sei bem se os EUA podem servir de modelo, mas eles estão bem mais adiantados do que nós nesse quesito. Não só pelas políticas de inclusão nas universidades, mas também pelas ações afirmativas para garantir o emprego da população negra em instituições privadas e no serviço público. Também não podemos nos esquecer que a eleição de um presidente negro, nos EUA, é um fato extraordinário. E eles já tinham, desde o começo dos anos 60, um juiz negro na Suprema Corte. Só agora, com o governo Lula, o Brasil viu a nomeação de um juiz negro para o Supremo: o ministro Joaquim Barbosa. Nós sempre estamos atrasados em relação os EUA. Parece que só copiamos deles o que não presta, como as perversas técnicas capitalistas americanas, sobretudo no mercado financeiro.

FABIO KONDER COMPARATO: COMUNICAÇÃO SOCIAL NO BRASIL: O DIREITO E O AVESSO

 

fabio konder comparato

Por Fabio Konder Comparato

"– Bem sei, mas a lei?

– Ora, a lei... o que é a lei, se o Senhor major quiser?...

O major sorriu-se com cândida modéstia."

Manoel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias.

Fabio Konder Comparato aponta os vícios praticados pela imprensa no Brasil

No conto O Espelho, de Machado de Assis, o narrador assevera a seus ouvintes espantados que cada um de nós possui duas almas. Uma exterior, que exibimos aos outros, e com a qual nos julgamos a nós mesmos de fora para dentro. Outra interior, raramente exposta aos olhares externos, que nos permite julgar o mundo e a nós mesmos, de dentro para fora.

Importa reconhecer que essa duplicidade, no exato sentido de algo dobrado ou dissimulado, tal como a metáfora do conto machadiano, encontra-se tanto em nosso caráter, quanto em nossa organização político-econômica.

É inegável que o caráter brasileiro contém um elemento de dissimulação constante nas relações sociais. Nossa afabilidade de maneiras, tão elogiada pelos estrangeiros, dissimula com frequência sentimentos de desinteresse e desprezo.

Já em matéria de organização político-econômica, sempre tivemos, desde a Independência, um duplo esquema institucional. Há, de um lado, o direito oficial, que é a nossa alma exterior exibida ao mundo. Mas há também, no foro interior de nossas fronteiras, um direito oculto, que acaba sempre por prevalecer sobre o direito oficial, quando este se choca com os interesses dos poderosos.

Creio que o exemplo mais conspícuo dessa duplicidade institucional ocorre nos meios de comunicação de massa.

A maioria das normas sobre a matéria, constantes da Constituição de 1988, é certamente de bom nível. Acontece, porém, que quase todas elas ainda carecem de regulamentação legislativa, vinte e três anos após a promulgação da Carta Constitucional. São armas descarregadas.

Como se isso não bastasse, em decisão de abril de 2009 o Supremo Tribunal Federal julgou que a lei de imprensa de 1967 havia sido tacitamente revogada com a entrada em vigor da Constituição de 1988. Ora, nessa lei de imprensa, como em todas as que a precederam, regulamentava-se o exercício do direito de resposta, inscrito no art. 5º, inciso V da Constituição. Em conseqüência, esse direito fundamental tornou-se singularmente enfraquecido.

Como bem lembrou Lacordaire na França no século XIX, numa época em que a burguesia montante já impunha a política de desregulamentação legislativa de todas as atividades privadas, "entre o rico e o pobre, entre o forte e o fraco, é a lei que liberta e é a liberdade que oprime". De que serve, afinal, uma Constituição, cujas normas não podem ser aplicadas pela ausência de leis regulamentares? Ela existe, segundo a clássica expressão francesa, como trompe l'oeil, mera ilusão pictórica da realidade.

Inconformado com essa negligência indesculpável do órgão do Poder Legislativo – negligência que, após mais de duas décadas da entrada em vigor da Constituição, configura uma autêntica recusa de legislar – procurei duas entidades, que são partes constitucionalmente legítimas para propor ações dessa espécie: o PSOL e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comunicação e Publicidade. Elas aceitaram ingressar como demandantes perante o Supremo Tribunal Federal, onde tais ações foram registradas como ADO nº 9 e ADO nº 10.

Qual não foi, porém, meu desencanto quando, intimados a se pronunciar nesses processos, tanto a Câmara dos Deputados, quanto o Senado Federal, tiveram a audácia de declarar que não havia omissão legislativa alguma nessa matéria, pois tudo transcorria como previsto no figurino constitucional!

Acontece que, para cumular o absurdo, a duplicidade no campo da comunicação social não se reduz apenas ao apontado descompasso entre a Constituição e as leis.

Se considerarmos em particular o estatuto da imprensa, do rádio e da televisão, encontraremos o mesmo defeito: o direito oficial é afastado na prática, deixando o espaço livre para a vigência de um direito não declarado, protetor dos poderosos.

A Constituição proíbe ao Poder Público censurar as matérias divulgadas pelos meios de comunicação de massa. Mas os controladores das empresas que os exploram, estes, são livres de não divulgar ou de deformar os fatos que contrariem seus interesses de classe.

Como não cessa de repetir Mino Carta, este é o único país em que os donos da grande imprensa, do rádio ou da televisão fazem questão de se dizer colegas dos jornalistas seus empregados, embora jamais abram mão de seu estatuto de cidadãos superiores ao comum dos mortais.

Cito, a propósito, apenas um exemplo. Em fevereiro de 2009, o jornal Folha de S.Paulo afirmou em editorial que o regime empresarial-militar, que havia assassinado centenas de opositores políticos e torturado milhares de presos, entre 1964 e 1985, havia sido uma "ditabranda". Enviei, então, ao jornal uma carta de protesto, salientando a responsabilidade do diretor de redação por aprovar essa opinião ofensiva à dignidade dos que haviam sido torturados, e dos familiares dos mortos e desaparecidos. O jornal publicou minha carta, acrescida de uma nota do diretor de redação, na qual eu era gentilmente qualificado de "cínico e mentiroso". Revoltado, ingressei com uma ação judicial de danos morais, quando tinha todo o direito de apresentar queixa-crime de injúria. Pois bem, minha ação foi julgada improcedente, em primeira e em segunda instâncias. Imagine-se agora o que teria acontecido se as posições fossem invertidas, ou seja, se eu tivesse tido o destrambelho de insultar publicamente o diretor de redação daquele jornal, chamando-o de cínico e mentiroso!

A lição do episódio é óbvia: a Constituição reza que todos são iguais perante a lei; no mundo dos fatos, porém, há sempre alguns mais iguais do que os outros.

Vejamos, agora, nesse quadro institucional dúplice, o funcionamento dos órgãos de rádio e televisão.

Dispõe o art. 21, inciso XII, alínea a, que "compete à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens".

No quadro constitucional brasileiro, por conseguinte, a exploração dessas atividades constitui um serviço público; isto é, no sentido original e técnico da expressão, um serviço prestado ao povo. E a razão disso é óbvia: as transmissões de radiodifusão sonora ou de sons e imagens são feitas através de um espaço público, isto é, de um espaço pertencente ao povo. Escusa lembrar que, como todo bem público, tal espaço não pode ser objeto de apropriação privada.

Da disposição constitucional que dá à radiodifusão sonora e da difusão de sons e imagens a natureza de serviço público decorrem dois princípios fundamentais.

Em primeiro lugar, o Estado tem o dever indeclinável de prestá-lo; e toda concessão ou permissão para que particulares exerçam esse serviço é mera delegação do Poder Público. Assim dispôs, aliás, a Lei nº 8.987, de 1995, que regulamentou o art. 175 da Constituição Federal para as concessões de serviços públicos em geral.

Em segundo lugar, na prestação de um serviço público, a realização do bem comum do povo não pode subordinar-se às conveniências ou aos interesses próprios daqueles que os exercem, quer se trate de particulares, quer da própria organização estatal (em razão de economia orçamentária, por exemplo).

Ora, neste país, desde o início do regime empresarial-militar em 1964, ou seja, antes mesmo da difusão mundial do neoliberalismo capitalista nas duas últimas décadas do século passado, instaurou-se o regime da privatização dos serviços de rádio e televisão. A presidência da República escolheu um certo número de apaniguados, aos quais outorgou, sem licitação, concessões de rádio e televisão. Todo o setor passou, assim, a ser controlado por um oligopólio empresarial, que atua não segundo as exigências do bem comum, mas buscando, conjuntamente, a realização de lucros e o exercício do poder econômico, tanto no mercado quanto junto aos Poderes Públicos.

Ainda hoje, todas as renovações de concessão de rádio e televisão são feitas sem licitação. Quem ganha a primeira concessão torna-se "dono" do correspondente espaço público.

A aparente justificação para esse abuso é a norma mal intencionada do art. 223, § 2º da Constituição, segundo a qual "a não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal". Basta, porém, um minuto de reflexão para perceber que esse dispositivo não tem o efeito de suprimir a exigência de ordem pública, firmada no art. 175, segundo a qual todas as concessões ou permissões de serviço público serão realizadas mediante licitação.

Outra nefasta consequência dessa privatização dos serviços públicos de rádio e televisão entre nós, é que as autoridades públicas, notadamente o Congresso Nacional, decidiram fechar os olhos à difundida prática negocial de arrendamento das concessões de rádio e televisão, como se elas pudessem ser objeto de transações mercantis. Ora, tais arrendamentos, muitas vezes, dada a sua ilimitada extensão, configuram autênticas subconcessões de serviço público, realizadas com o consentimento tácito do Poder concedente.

Será ainda preciso repetir que os concessionários ou permissionários de serviço público atuam em nome e por conta do Estado, e não podem, portanto, nessa qualidade, buscar a realização de lucros, preterindo o serviço ao povo? O mais chocante, na verdade, é que o Ministério Público permanece omisso diante dessa afrontosa violação de normas constitucionais imperativas.

Sem dúvida, o direito brasileiro (Lei nº 8.987, de 13/02/1995, art. 26) admite é a subconcessão de serviço público, mas desde que prevista no contrato de concessão e expressamente autorizada pelo poder concedente. A transferência da concessão sem prévia anuência do poder concedente implica a caducidade da concessão (mesma lei, art. 27).

Mesmo em tais condições, uma grande autoridade na matéria, o Professor Celso Antonio Bandeira de Mello, enxerga nesse permissivo legal da subconcessão de serviço público uma flagrante inconstitucionalidade, pelo fato de burlar a exigência de licitação administrativa (Constituição Federal, art. 175) e desrespeitar com isso o princípio da isonomia.

Para se ter uma idéia da ampla mercantilização do serviço público de televisão entre nós, considerem-se os seguintes dados de arrendamento de concessões, somente no Estado de São Paulo:

BANDEIRANTES: 24 horas e 35 minutos por semana (tempo estimado)

2ª a 6ª-feira

5h45 – 6h45 (Religioso I)

20h55 – 21h20 (Show da Fé)

2h35 (Religioso II)

Sábado e domingo

5h45 – 7h (Religioso III)

4h (Religioso IV)

REDE TV!: 30 horas e 25 minutos por semana (tempo estimado)

Domingo

6h – 8h – Programa Ultrafarma

8h – 10h – Igreja Mundial do Poder de Deus

10h – 11h – Ultrafarma Médicos de Corpos e Alma

16h45 – 17h – Programa Parceria5

3h – Igreja da Graça no Seu Lar

2a e 3ª feiras

12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus

14h – 15h – Programa Parceria 5

17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa

1h55 – 3h – Programa Nestlé

3h – Igreja da Graça no Seu Lar

4a feira

12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus

14h – 15h – Programa Parceria 5

17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa

3h – Igreja da Graça no Seu Lar

5a e 6ª feiras

12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus

17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa

3h – Igreja da Graça no Seu Lar

Sábado

7h15 – 7h45 – Igreja Mundial do Poder de Deus

7h45 – 8h – Tempo de Avivamento

8h – 8h15 – Apeoesp – São Paulo

8h15 – 8h45 – Igreja Presbiteriana Verdade e Vida

8h45 – 10h30 – Vitória em Cristo

10h30 – 11h – Igreja Pentecostal

11h – 11h15 – Vitória em Cristo 2

12h – 12h30 – Assembléia de Deus do Brasileiro

12h30 – 13h30 – Programa Ultrafama

2h – 2h30 – Programa Igreja Bola de Neve

3h – Igreja da Graça no Seu Lar

TV GAZETA: 37 horas e 5 minutos por semana

2ª a 6ª-feiras

6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus

20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus

1h – 2h – Polishop

Sábado

6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus

20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus

23h – 2h – Polishop

Domingo

6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus

8h – 8h30 – Encontro com Cristo

14h – 20h – Polishop

0h – 2h – Polishop

A lição a se tirar dessa triste realidade é bem clara: os meios de comunicação social, neste país, permanecem alheios aos princípios e regras constitucionais.

Para a correção desse insuportável desvio, é indispensável e urgente tomar três providências básicas.

Em primeiro lugar, impõe-se, na renovação das concessões ou permissões do serviço de radiodifusão sonora, ou de sons e imagens, cumprir o dispositivo de ordem pública do art. 175 da Constituição Federal, que exige a licitação pública.

Em segundo lugar, é preciso pôr cobro à escandalosa prática de arrendamento de concessões de rádio e televisão.

Em terceiro lugar, como foi argüido nas ações de inconstitucionalidade por omissão, acima mencionadas, é urgente fazer com que o Congresso Nacional rompa a sua prolongada mora em cumprir o dever constitucional de dar efetividade aos vários dispositivos da Constituição Federal carentes de regulamentação legislativa, a saber:

1) O art. 5º, inciso V, sobre o direito de resposta;

2) O art. 220, § 3º, inciso II, quanto aos "meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente;

3) O art. 220, § 5º, que proíbe sejam os meios de comunicação social, direta ou indiretamente, objeto de monopólio ou oligopólio;

4) O art. 221 submete a produção e programação das emissoras de rádio e televisão aos princípios de: "I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família".

É o mínimo que se espera nessa matéria dos nossos Poderes Públicos, como demonstração de respeito à dignidade do povo brasileiro.

Fabio Konder Comparato é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), doutor em Direito, Prêmio Louis Milliot pela sua tese de doutoramento em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de Paris, entre outros; e escritor, autor de A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos (COMPARATO, Fábio Konder) – 4ª edição. São Paulo: Saraiva Editores S.A., 2005. 577 p., além de extensa obra intelectual.

Fonte: Correio do Brasil

ENTREVISTA COM FABIO KONDER COMPARATO

 

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O Professor Fábio Konder Comparato titular Faculdade de Direito da USP e autor, entre outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno" (Companhia das Letras) nos concedeu uma entreivista abordando a questão afeta ao Direito e as Relações Raciais em especial a polêmica que envolve a constituicionalidade das Políticas de cotas.

1 – Em seu artigo recente o Senhor trouxe algumas luzes interpretativas acerca da questão da escravidão no Brasil. Gostaríamos que o Senhor fizesse uma breve análise sobre a questão da escravidão e a questão atual da efervescência da relação entre a escravidão com o que se fala hoje sobre o princípio da igualdade, em se tratando da questão racial.

FK - Manter a escravidão oficialmente durante quase quatro séculos, provocou conseqüências que dificilmente conseguiremos apagar em pouco tempo.
A escravidão esteve intimamente ligada a um sistema agrário e, esse sistema, era aquilo que os romanos chamavam de “Senhoril”, ou seja, apenas o proprietário tinha direitos, onde, toda família, era submetida a essa prepotência do proprietário. O proprietário tinha uma larga clientela; que eram os pequenos agricultores sem terra, não escravos, que dependiam dele para poder sobreviver. Com base nisso, criou-se um sistema político em que tudo dependia do proprietário, o chamado “Coronelismo”. Era chamado assim porque coronel era a principal patente da guarda nacional e, o chefe político local sempre foi o coronel.

Quando se criou a “falsa República” (já que República significa predomínio do bem comum do povo sobre qualquer interesse privado e, a República no Brasil, foi o predomínio do interesse privado sobre o bem comum do povo) os governadores estabeleceram um pacto com os coronéis, eram esses últimos que indicavam os juízes de direito e os chefes de polícia, os delegados, os promotores, em qualquer razão eram os coronéis que mandavam votar no candidato oficial.

Pelo fato dos escravos nunca terem tido direitos, eles se tornaram inferiores a todos os outros dentro do domínio rural. O coronel tinha uma espécie de dever de proteção do trabalhador agrícola e era uma espécie de chefe do sistema de seguridade social, mas, o negro não pertencia a isso e ele foi rapidamente, senão fatalmente, obrigado a sair do campo e vir para as cidades, e nas cidades ele trouxe consigo o estigma da escravidão, ou seja, o trabalho sempre foi considerado um defeito próprio do sistema servil.

Ninguém deu necessário valor ao trabalho e as conseqüências da escravidão foram muito amplas, por exemplo, no campo do próprio trabalho, havia duas coisas que o alforriado fazia quando conquistava a sua dignidade de não escravo: a primeira era se calçar, o escravo não podia se calçar, deveria andar de pés descalços; a segunda era ele próprio conseguir escravos.

Há um viajante inglês que conta um episódio significativo: ele precisava de um artesão, ou um carpinteiro, ou um ferreiro, então lhe indicaram alguém. Ele chegou a casa dessa pessoa e era um negro, e ele ficou espantado porque o sujeito estava vestido com uma roupa de fidalgo, e ele lhe disse que não poderia atendê-lo, pois o negro dele tinha ido fazer um serviço e não havia voltado com a caixa de ferramentas. Ou seja, como ele era agora livre, seria um vexame para ele carregar a caixa de ferramentas; quem carregava era seu próprio escravo.

No campo sexual o que se viu foi um verdadeiro desprezo pela mulher. O próprio escravo de dentro; o que trabalhava na casa, tinha o maior desprezo pelo escravo que trabalhava no campo. E a própria escrava de dentro, se sentia, de certa maneira, orgulhosa porque tinha a preferência do patrão. A própria noção de família foi totalmente destruída pela escravidão.

Contei nesse artigo publicado na Folha de São Paulo, o caso de um pesquisador norte americano que encontrou no primeiro cartório de notas em Campinas uma escritura pública de 1869 em que um “fulano” tornando-se maior pelo casamento, resolveu alforriar a própria mãe que ele tinha recebido como herança do pai. Não há coisa mais repugnante do que alguém ter que alforriar a própria mãe. Todos os sentimentos familiares, religiosos de respeito à mãe eram contrariados pela escravidão.

2 – Temos 20 anos de Constituição. O entendimento que se tem hoje acerca do princípio da igualdade parece buscar ganhar uma efetividade sobre as políticas de inclusão, políticas de ação afirmativa e as políticas de cotas. Como o Senhor acompanha essa evolução?

FK - Em relação aos negros e pardos, tudo isso é bloqueado. A Constituição, no artigo 7°, determina que haja uma proteção da mulher no mercado de trabalho mediante incentivos específicos, ninguém diz que isto é uma política de discriminação. Mas quando se trata de proteger o negro, levantam até o racismo.

É preciso saber que, por exemplo, no mercado de trabalho, o negro tem, independentemente de sua qualificação, salário que corresponde, em média, a cinqüenta ou setenta por cento do salário do branco, mesmo pobre e sem qualificação e, a mulher negra tem um salário médio que corresponde à metade do salário do trabalhador negro. Isso é evidentemente uma conseqüência da escravidão.

O inciso 20 estabelece uma medida que é análoga, senão idêntica, a política de cotas. A política de cotas visa dar um incentivo, é uma política tímida, com 120 anos de atraso. A própria Constituição determina que haja no mercado de trabalho a proteção da mulher com incentivos específicos, é exatamente a política de cotas, mas, ninguém diz que esse inciso é uma medida discriminatória. Mas tudo o que se propõe em defesa do negro é considerado discriminatório ou racista.

3 – A que o senhor atribui essa interpretação, até mesmo por parte do Poder Judiciário?

FK - A velha mentalidade escravista, não há a menor dúvida. Nós não conseguimos eliminar isto em pouco tempo. Isso faz parte do nosso costume, da nossa mentalidade. Como dizia Montesquieu; “Os costumes e a mentalidade não se mudam por leis, mudam-se pela educação”, é por isso que no nosso sistema educacional, praticamente não existe nada sobre a escravidão, considera-se, isso, um desprestígio para o país.

O pior desprestígio para o país é esse ocultamento sistemático da realidade escravista, temos que tirar isso da cabeça das pessoas e, para tirarmos, é preciso que isso venha à tona e diga exatamente o que foi a escravidão.

Eu sou descendente do maior proprietário de escravos do Império Brasileiro, o Conde Joaquim José de Souza Breves. Tive que entender, e só entendi isso muito tarde, que esta realidade, ou seja, a culpa por isso, se transmite aos descendentes, não é propriamente uma culpa penal, mas, é uma herança de um débito social. É um débito social porque, se eu sou o que sou hoje é pelo fato de eu ter herdado várias coisas, a capacidade de me educar, o fato de ter tido determinados tipos de formação e isto só foi conseguido porque durante séculos os negros sustentaram a nossa economia.

O que agora é preciso fazer, é saber lutar contra isso e para isso é preciso vencer uma outra tradição muito ligada à escravidão, que é a tradição da desunião. Todos os africanos embarcados nos portos eram separados e acobertados dentro do Tumbeiro, nunca se procuram em constituir uma comunidade da mesma língua, com as mesmas tradições, porque isso levava a revolta, então era preciso impedir a comunicação entre os negros que acabavam se detestando porque, velhas tradições africanas faziam com que as etnias lutassem umas com as outras. É preciso saber que o Porteiro, aquele que recolhia os jovens do interior e trazia aos portos de embarque, era sempre de uma etnia diferente daqueles que aprisionava. Então, desde a África, nós temos essa tradição de desunião que persiste até hoje.

O Movimento Negro continua profundamente desunido. Só há duas soluções nesse combate pela dignidade do povo negro: a educação e a ação transformadora das instituições.


4 – O STF já começou a julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Sistema de Cotas e há grande polêmica em função das cotas raciais. O que o senhor espera desse julgamento?

FK - Isto é realmente sintomático. O partido contrário à igualdade agora se chama os Democratas, isso é tipicamente a tradição brasileira, nós tivemos uma República privatista, uma Democracia sem povo e um Constitucionalismo ornamental.

Que os estabelecimentos de ensino preponham esta ação, nada de surpreendente porque, não são estabelecimentos de ensino, são empresas capitalistas, o ensino é apenas a fachada. Agora, que este partido tenha a coragem de se intitular “Os Democratas”, isto é um pouco demais.
Não sei como o STF julgará isto, espero que o STF tenha um comportamento digno e que se lembre que todos nós das ditas classes dominantes, somos o que somos, devido a sangue, suor e lagrimas de todos os africanos e afro descendentes escravizados no Brasil.

5 – Qual são as suas considerações finais sobre este assunto professor

FK - O Movimento Negro deveria constituir-se sobre a forma de federação, ou seja, preservando a especificidade de cada um, de seus Movimentos e de suas ONGs, mas tendo a capacidade de agir como um todo, por exemplo, propondo ações judiciais. E ao mesmo tempo a constituição de uma federação permite que essas diferentes entidades dialoguem entre si, discutam, podem não pensar a mesma coisa, mas, periodicamente se reúnem para discussão.

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Saiba +

FÁBIO KONDER COMPARATO: COMO MOSTRAR AO POVO A ORIGEM DA CORRUPÇÃO SE A OLIGARQUIA CONTROLA A MÍDIA

 

fabio konder comparato
 
Por Luiz Carlos Azenha e Padu Palmério
Sobre o julgamento do mensalão, na entrevista exclusiva ao Viomundo o jurista Fábio Konder Comparato fez a pergunta que está no título deste post. E os corruptores?
Para ele, a Justiça brasileira é a justiça dos ricos. Exemplo?
Comparato aguarda uma decisão do conselho federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que foi instado por ele a provocar no Supremo Tribunal Federal uma decisão a respeito da condenação, imposta pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, à Lei de Anistia.
 


 
O Brasil foi condenado nessa decisão pelo desaparecimento das pessoas que participaram da Guerrilha do Araguaia e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica (artigo 3º), à vida (artigo 4º), à integridade pessoal (artigo 5º) e à liberdade pessoal (artigo 7º), bem como pela violação dos direitos às garantias judiciais (artigo 8º) e à proteção judicial (artigo 25º), em decorrência da leitura interpretativa dada à Lei da Anistia, que impediu a investigação dos fatos e a punição dos responsáveis pelas condutas indicadas, e da lentidão na tramitação da Ação Ordinária n° 82.0024682-5.
Aparentemente, as violações das disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ocorreram, e a Corte determinou, com louvor, que o Estado deve adotar medidas para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar os seus restos mortais e oferecer tratamento psicológico ou psiquiátrico às vítimas, mediante requerimento, custeado pelo Estado. Além disso, determinou-se ainda a publicação da íntegra da decisão no Diário Oficial e em um sítio eletrônico do Estado, devendo ficar disponível na internet pelo período de um ano. A decisão deve ser disponibilizada, em formato de um livro eletrônico, também em um sítio do Estado. O resumo oficial da sentença proferida pela Corte deve ser publicado em um jornal de ampla circulação nacional. Essas providências de divulgação da sentença devem ser adotadas no prazo de seis meses, contados da data de notificação do Estado.
[...]
O Estado deve, ainda, adotar, em um prazo razoável, providências para tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas, em conformidade com os parâmetros fixados pela sentença. Enquanto isso não for cumprido, ele deve adotar medidas para o julgamento e a punição dos responsáveis pelos fatos, utilizando os mecanismos já existentes no direito brasileiro.
No caso acima citado, Comparato acredita que a pressão política dos empresários será intensa, já que a revisão da Lei de Anistia poderia significar que alguns deles, financiadores da ditadura militar e da tortura, poderiam eventualmente ser punidos.
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Afinal, quem é que doou grandes quantias para financiar a repressão?
Quem é que emprestou veículos para as campanas da Operação Bandeirantes, que operava o maior centro de torturas do Brasil?
Neste caso, sabemos que foi a Folha de S. Paulo (acima, um dos veículos queimados em retaliação dos guerrilheiros).
[Para saber quem fez o papel de cão de guarda da ditadura militar, clique aqui].
Aliás, Fábio Konder Comparato contou, depois da entrevista, que perdeu nas duas instâncias a ação que moveu contra o jornal, por danos morais, depois do famoso episódio da “ditabranda”.
Relembrando algo que publicamos na época:
REPÚDIO E SOLIDARIEDADE
Ante a viva lembrança da dura e permanente violência desencadeada pelo regime militar de 1964, os abaixo-assinados manifestam seu mais firme e veemente repúdio a arbitraria e inverídica revisão histórica contida no editorial da Folha de S. Paulo do dia 17 de fevereiro de 2009. Ao denominar “ditabranda” o regime político vigente no Brasil de 1964 a 1985, a direção editorial do jornal insulta e avilta a memória dos muitos brasileiros e brasileiros que lutaram pela redemocratização do país. Perseguições, prisões iníquas, torturas, assassinatos, suicídios forjados e execuções sumárias foram crimes corriqueiramente praticados pela ditadura militar no período mais longo e sombrio da história política brasileira. O estelionato semântico manifesto pelo neologismo “ditabranda” é, a rigor, uma fraudulenta revisão histórica forjada por uma minoria que se beneficiou da suspensão das liberdades e direitos democráticos no pós-1964.
Repudiamos, de forma igualmente firme e contundente, a Nota da Redação, publicada pelo jornal em 20 de fevereiro (p. 3) em resposta as cartas enviadas a Painel do Leitor pelos professores Maria Victoria de Mesquita Benevides e Fábio Konder Comparato. Sem razões ou argumentos, a Folha de S. Paulo perpetrou ataques ignominiosos, arbitrários e irresponsáveis à atuação desses dois combativos acadêmicos e intelectuais brasileiros. Assim, vimos manifestar-lhes nosso irrestrito apoio e solidariedade ante as insólitas críticas pessoais e políticas contidas na infamante nota da direção editorial do jornal.
Pela luta pertinaz e consequente em defesa dos direitos humanos, Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato merecem o reconhecimento e o respeito de todo o povo brasileiro.
Pois bem, enquanto a Justiça brasileira protege o andar de cima — será que a Folha convocou algum desembargador para representá-la na segunda instância? –, condena os pobres ao encarceramento em massa:
 

 
Mas, para não terminar numa nota pessimista, perguntei a Comparato o que ele achava das recentes manifestações populares no Brasil.
Teriam sido um sinal de que o povo está abandonando a passividade?
 
 
 

 

Entrevista com Fábio Konder Comparato 

Fábio Konder Comparato:Uma questão de justiça social 

Fabio Konder Comparato - Comunicação Social no Brasil: o direito e o avesso

Fábio Konder Comparato: “Constituição do Brasil é mera aparência democrática”

 
 
 Fonte: Viomundo