sábado, 14 de dezembro de 2013

ACHADO PARA NÃO SER ESQUECIDO


Em meio às obras de revitalização da zona portuária do Rio, foram descobertas recentemente as estruturas de antigo mercado de escravos. Em sua coluna de abril, Keila Grinberg conta um pouco de sua história e defende a ideia da prefeitura de criar um memorial no local.
Por: Keila Grinberg

Achado para não ser esquecido
Em viagem ao Brasil, o pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848) retratou o mercado de escravos de Valongo, no Rio de Janeiro. Historiadores e arqueólogos da prefeitura conduzem escavações nas ruínas recém-encontradas.
No dia 1º de maio de 1823, a escritora inglesa Maria Graham (1785-1842), em uma de suas viagens ao Brasil, escreveu em seu diário:
“Vi hoje o Val Longo [Valongo]. É o mercado de escravos do Rio. Quase todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de escravos. Passando pelas suas portas à noite, vi na maior parte delas bancos colocados rente às paredes, nos quais filas de jovens criaturas estavam sentadas, com as cabeças raspadas, os corpos macilentos, tendo na pele sinais de sarna recente.
Em alguns lugares, as pobres criaturas jazem sobre tapetes, evidentemente muito fracos para sentarem-se. Em uma casa, as portas estavam fechadas até meia altura e um grupo de rapazes e moças, que não pareciam ter mais de quinze anos, e alguns muito menos, debruçava-se sobre a meia porta e olhava a rua com faces curiosas. Eram evidentemente negros bem novos.”
Maria Graham (1785-1842)
Maria Graham retratada por seu marido. A escritora inglesa ficou chocada com a condição dos escravos no Brasil.
Assim como tantos outros viajantes que estiveram no Rio de Janeiro na primeira metade do século 19, Maria Graham estava chocada com o que via, mas a cena não era nenhuma novidade para os habitantes da cidade.
Desde 1770, quando o marquês do Lavradio ordenou a mudança do mercado de escravos das proximidades do Paço (hoje, Praça XV) para a rua do Valongo (atual rua Camerino), a região que hoje compreende os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo passou a abrigar, além do próprio mercado, um sem número de trapiches e casas de negociantes, onde os recém-chegados ficariam expostos à espera de seus futuros senhores.
Desses africanos, muitos eram crianças, capturadas quando o comércio de africanos já estava nos estertores: proibido no Brasil desde 1831 – ainda que essa interdição tenha sido largamente desobedecida – e condenado pela Inglaterra desde o início do século 19.
Os traficantes perceberam que seu negócio estava com os dias contados e, por isso, traziam quem conseguisse encontrar pela frente. Essas crianças muitas vezes nem resistiam às agruras da viagem e faleciam ao chegar ao Rio de Janeiro.

Costurando a história

Lembro disso por conta da recente descoberta das estruturas do cais do Valongo – e também do cais da Imperatriz, projetado pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny (1776-1850) em 1843 para receber Teresa Cristina (1822-1889), que chegava ao Brasil para desposar D. Pedro II, imperador do Brasil – durante as obras de reforma da zona portuária do Rio de Janeiro.
Nas imediações do Valongo já havia sido encontrado o cemitério de pretos novos, originalmente um pântano onde eram lançados os corpos daqueles que não haviam resistido à viagem e atualmente um sítio arqueológico, localizado na rua Pedro Ernesto – que também já foi chamada de rua da Harmonia, caminho da Gamboa e rua do Cemitério.
Consta que o cheiro na região depois das chuvas era tão horrível que o intendente geral da polícia, Paulo Fernandes Viana, em 1815, chegou a mandar um ofício ao juíz do crime do bairro, solicitando que a área fosse aterrada e que os negociantes que lançassem cadáveres ali fossem multados.
A importância do achado não é pequena. Afinal, passaram pelo Valongo nada menos do que 897.748 africanos escravizados
A importância do achado não é pequena. Afinal, de fins do século 18 até 1843, data de sua desativação como local de desembarque de escravos, passaram pelo Valongo nada menos do que 897.748 africanos escravizados, segundo dados do projeto The Transatlantic Slave Trade Database (O Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, em português), que reúne informações sobre todas as viagens da África para as Américas realizadas por navios negreiros entre 1514 e 1866.

Povoado e frequentado

Junto com alguns outros portos na Bahia e em Pernambuco, o Valongo foi a porta de entrada para os últimos africanos escravizados que entraram no país. Em seu entorno, toda uma estrutura de organização do comércio escravista se desenvolveu.
Desembarque
'Desembarque' (1835), pintura do artista alemão J. M. Rugendas. O cais de Valongo foi a porta de entrada para os últimos africanos escravizados no Brasil. Estima-se que por ele tenham passado cerca de 900 mil negros.
A peça-mestra dessa estrutura era justamente os “homens de Valongo” – não por acaso, a forma como eram denominados os traficantes –, mas dela também participavam comissários da alfândega, capitães dos navios, tropeiros, ciganos, libertos e até ladrões. Não é exagero afirmar que parte substancial da sociedade carioca contemporânea passou por ali.
Depois da transferência do mercado de escravos para o Valongo, a área quase rural, distante dos olhares curiosos dos viajantes estrangeiros, adensou-se com a construção de novos trapiches, armazéns, mercados, casas de negociantes e pequenas lojas.
São justamente as ruínas desse entorno – além de objetos pertencentes aos escravos, como joias e amuletos – que vêm sendo encontradas por historiadores e arqueólogos da prefeitura da cidade, responsável pelas escavações.
Memorial servirá para lembrar que a cultura negra carioca tem origem em um episódio terrível
O plano da prefeitura é transformar o lugar em um memorial. Caso se torne realidade, a iniciativa é mais do que louvável. Afinal, memoriais servem para não deixar esquecer.
Este, ao expor uma das faces mais cruéis da escravidão brasileira, servirá para mostrar que a cultura negra carioca, tão importante para a identidade nacional brasileira, tem origem em um episódio terrível. Disso, ninguém mais vai poder esquecer.

Keila GrinbergDepartamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro


Limpeza do pântano do Valongo

Ofício emitido ao juiz do crime do bairro da Sé pelo intendente geral da Polícia, Paulo Fernandes Viana, no qual pede a limpeza de um pântano localizado nos fundos das casas da rua nova de São Joaquim. Este pântano, além de "nocivo à saúde pública", se tornou um cemitério de negros novos, dada a "ambição dos homens do Valongo" que querem evitar a despesa de enterrá-los. O "charco" sujava o bairro e a cidade, e, portanto, deveria ser aterrado, com entulho e terra dos terrenos vizinhos. Notifica ainda os "negociantes que recolherem pretos no Valongo para que nunca mais se atrevam a lançar por ali cadáveres" e ordena que se recolham os corpos para, através das marcas neles, se reconheçam de quais armazéns vieram e se imponham as penas aos culpados para acabar de vez com aquele "mal".
Conjunto documental: Registros de ordens e ofícios expedidos da Polícia aos ministros criminais dos bairros e comarcas da Corte e ministros eclesiásticos
Notação: códice 329, vol. 03
Datas-limite: 1815-1817
Título do fundo : Polícia da Corte
Código do fundo: ØE
Argumento de pesquisa: cidades, ordem pública
Data do documento: 9 de dezembro de 1815
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -
Ofício expedido ao Juiz do Crime[1] do Bairro da Sé[2]
            Nos fundos da rua nova de São Joaquim[3] e fundos das casas novamente edificadas nos cajueiros há um pântano que além de nocivo a saúde pública[4] ainda de mais a mais é cemitério de cadáveres de negros novos[5], pela ambição dos homens de valongo[6] que para ali os lançam a fim de se forrarem a despesa de pagar cemitério. [Desses] males vem da existência do dito [lago], um a perda do terreno, outro a facilidade de ali se conservarem cadáveres, e imundícies com que se [imputa] o bairro, e dele toda a cidade. Fica Vossa Mercê encarregado de fazer aterrar mandando no distrito de todo o seu bairro declarar ou por editais ou por notificações as obras que se fizerem de concertos que caliço e entulhos para ali se levem e de dias em dias os mande estender a enxada e assim mesmo vendo que terrenos vizinhos se podem tirar a terras para as pôr ali por meio de algumas carroças por [ajustes] cômodos de que me dará parte e logo ao mesmo tempo mande notificar a todos os negociantes que recolherem pretos no Valongo[7] para que nunca mais se atrevam a lançar para ali cadáveres [ilegível] de logo que se conheça que lhes os pertencem pormarcas[8] e outras informações pagarem da cadeia trinta mil réis para se gastar no enxugamento, e melhoramento do mesmo charco. Ordene ao seu escrivão que nos autos que fizer dos corpos ali achados se examinem todas as marcas que tiverem [ilegível] individualmente e por elas, nessas ocasiões, mandará proceder a exame nos livros das cargas dos escravos[9] para descobrir de quem sejam e a que armazéns vieram, de forma que por este meio se possa impor as penas, e que todos conheçam que devem a Polícia[10] este miúdo exame a fim de extinguir este mal de que Vossa Mercê irá dando contas, pois que esta providência é perene, e tem um trato sucessivo para não se dar por acabada sem que todo se enxugue o pântano, e desapareçam os fatos de contravenção: para o que lhe fica esta notada. Deus Guarde a Vossa Mercê. Rio 9 de dezembro de 1815. = Paulo Fernandes Viana[11] = Senhor Juiz do Crime do Bairro da Sé


[1] Magistrado com competências semelhantes às do juiz de fora, no entanto restritas à esfera criminal. A ele, como aos juízes de fora, cabia realizar devassas sobre crimes acontecidos nos bairros (ou cidades) de sua jurisdição, visando a solucioná-los e a prender os culpados; executar as sentenças estabelecidas pelo intendente geral de Polícia da Corte (no período joanino, Paulo Fernandes Viana); e, especificamente no Brasil, cobrar as décimas, impostos cobrados aos proprietários de prédios urbanos. Os juízes do crime que atuavam no Brasil seguiam o regimento dos ministros criminais de Lisboa, cujas atribuições eram as mesmas. Com a chegada da Corte, d. João criou mais postos de juiz do crime (alvará de 27 de junho de 1808), principalmente para o Rio de Janeiro, prevendo um incremento da criminalidade em decorrência do brusco e significativo aumento populacional que a cidade sofrera com o desembarque da família real e da Corte, e pretendendo incrementar a "segurança e a tranqüilidade de seus vassalos". Cada juiz do crime respondia por um bairro ou freguesia, como a da Candelária, da Sé, de São José e de Santa Rita, por exemplo.
[2] O bairro ou freguesia da Sé compreendia a região ao redor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, e limitava-se com o bairro de São José. Construída em 1570 como cumprimento de uma promessa, a Capela de Nossa Senhora da Expectação e do Parto foi doada pela Câmara, em 1589, aos carmelitas, que iniciaram a construção da atual igreja em 1761 - a sagração deu-se em 1770. Em 1808, com a chegada da família real, a Igreja foi convertida em Capela Real (mesmo que ainda incompletas as obras da fachada). No convento anexo foi instalada a rainha, d. Maria I e suas damas, e outros órgãos, como a Ucharia Real  e a Real Biblioteca. A Capela Real foi palco da sagração de d. João VI em 1818 e do casamento de d. Pedro com d. Leopoldina em 1817, entre outros importantes eventos. Somente durante o primeiro reinado, já então denominada Capela Imperial, foram concluídas as obras. Foi sede episcopal durante todo o Império, e parte do período republicano, quando em 1977 foi terminada a nova Catedral Metropolitana. A partir de então passou a ser conhecida como a Antiga Sé (ou Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé).
[3] Hoje conhecida como avenida Marechal Floriano, uma das mais importantes e movimentadas do centro do Rio, nos tempos da corte joanina era dividida em duas: a rua estreita de São Joaquim (mais antiga) e a rua larga de São Joaquim (a mais nova). A rua estreita compreendia o trecho entre a antiga rua da Vala, hoje Uruguaiana, e a rua do Valongo, atual Camerino, e era conhecida na época por seus prostíbulos e malandros. Anteriormente chamada de rua do Curtume, ganhou o novo nome em função da construção da Igreja de São Joaquim, que também motivou a abertura da nova rua, três vezes mais larga que a primeira, que ia da igreja em direção ao campo de Santana. A igreja, que deu nome a ambas ruas, abrigou o Seminário de São Joaquim, que no século XIX se tornou o Imperial Colégio de Pedro II, e foi demolida para o alargamento da rua estreita e para a junção das duas ruas antigas em uma só - que mantém o mesmo traçado até hoje.
[4] Logo que chegou ao Brasil, d. João criou dois cargos, duas autoridades sanitárias, encarregadas dos serviços de saúde pública na administração do reino: o Cirurgião-mor do Exército e o Físico-mor do Reino, que juntos (e com os seus delegados, juízes, escrivães, meirinhos, entre outros oficiais) formavam a Inspetoria Geral de Saúde Pública. O Cirurgião-mor era responsável por todas as atividades relativas ao ensino e exercício da cirurgia - pelos sangradores, barbeiros, parteiras, dentistas, hospitais e médicos do exército. Ao Físico-mor cabiam as atividades concernentes ao ensino e exercício da medicina, questões relativas a médicos e pacientes, ao exercício da farmácia, aos droguistas, boticários e curandeiros, às epidemias e ao saneamento das cidades. Esses profissionais eram encarregados de estabelecer uma política de saúde pública, principalmente através da atuação da Intendência de Polícia, no que tange às questões de saneamento e ordem pública, na melhoria da salubridade do ar e da cidade; e da atuação da própria Inspetoria, nas questões de vigilância sanitária dos estabelecimentos que comercializavam remédios e alimentos e no controle das práticas médicas. Agem também no controle das epidemias, quer pela difusão das práticas de higiene, quer pela introdução da vacinação, principalmente para controlar doenças graves, como, por exemplo, a varíola e a febre amarela, que assolavam a população.
[5] Até fins do século XVIII, o comércio de escravos efetuava-se nas ruas estreitas da área central do Rio de Janeiro, sobretudo próximas ao Paço (hoje, Praça XV), concentrado no mercado da rua Direita. Até então os pretos novos - como eram chamados os escravos africanos recém-chegados - que sucumbiam no decorrer da longa e terrível viagem de travessia do Atlântico eram enterrados em um cemitério próximo ao Largo da Igreja de Santa Rita. A penosa viagem, insalubre, sem condições mínimas de higiene e praticamente sem alimentação deixava muitos negros gravemente enfermos e muitos faleciam durante o percurso ou ao chegar em terras brasileiras. Os escravos que morriam ao chegar, ou já nos armazéns em decorrência da fome e das doenças, eram enterrados, ou melhor, lançados em covas rasas no cemitério a princípio improvisado, mas bastante duradouro do bairro de Santa Rita. Quando o marquês do Lavradio ordenou a mudança do mercado de escravos para a rua do Valongo em 1770 (atual Camerino) e o desembarque dos navios para a área de mesmo nome às margens dos morros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, o antigo cemitério foi desativado e ressurgiu um novo cemitério dos pretos novos, maior e mais abandonado ainda do que o anterior, onde hoje é a rua Pedro Ernesto (antigamente chamou-se rua da Harmonia, caminho da Gamboa e rua do Cemitério). Com a crescente importação de escravos africanos, a região do Valongo e o cemitério só faziam aumentar, e por conta da pouca profundidade das covas, era possível ver os ossos saltando da terra e sentir o cheiro horrível que emanava do lugar, principalmente depois de chover, quando o terreno se tornava um alagadiço. Na maior parte das vezes os corpos eram enterrados sem nenhum tipo de cerimônia religiosa ou rito funerário, e os ossos eram freqüentemente queimados para que cedessem lugar aos outros que constantemente chegavam, sem mencionar que há indícios que alguns negros chegavam ao cemitério ainda agonizando e morriam por lá mesmo. As reclamações dos moradores da região eram constantes e, apesar de protestos e reclamações, somente em 1863 o cemitério foi fechado. Atualmente há um sítio arqueológico no local, onde se realizam pesquisas sobre os escravos e a cultura africana com base nas descobertas feitas no antigo cemitério.
[6] Homens de valongo - assim eram também conhecidos os traficantes e negociantes de escravos africanos no Brasil, a maior parte deles portugueses ou africanos livres. No Brasil havia uma complexa estrutura de organização do comércio escravista, que envolvia comissários da alfândega, capitães dos navios, tropeiros, ciganos, ex-escravos e até mesmo ladrões, principalmente depois da transferência promovida pelo marquês do Lavradio ainda em fins do século XVIII da venda de escravos para a região do Valongo. Anteriormente, os escravos eram vendidos nas ruas da área central da cidade, mormente nas proximidades do Paço, na rua São José e arredores (atual Praça XV). A região do Valongo (que compreende hoje as áreas da Saúde, Gamboa e Santo Cristo) abrigou o desembarque dos navios, e a comercialização dos escravos, nos mercados, trapiches e casas dos negociantes que se localizavam na rua de mesmo nome (hoje rua Camerino). O comércio de escravos nesta época não era um negócio simples: exigia cuidados com higiene e alimentação dos recém-chegados (pretos novos) e transporte para os armazéns onde ficariam em exposição nos pátios à espera dos compradores (que freqüentemente fechavam negócio antes mesmo do navio aportar). Os escravos recusados ou que não tinham comprador certo deviam ajudar a atrair compradores, aparentando disposição e saúde, cantando e dançando músicas africanas. Durante o período em que vigorou o tráfico, essa foi uma das mais lucrativas atividades comerciais, que atraiu e enriqueceu muitos comerciantes, e mesmo depois da lei de 1831 que proibia o tráfico, muitos donos de armazéns continuaram a trabalhar na clandestinidade, mas em condições mais difíceis por conta da inspeção inglesa. Os negociantes continuaram obtendo muito lucro, principalmente por conta do aumento do preço do escravo, mas a atividade se tornou mais arriscada. A partir de 1850, quando o tráfico é definitivamente extinto, o comércio interno continua a render grandes lucros, entretanto, parte dos comerciantes passa a dedicar seus capitais a outras atividades comerciais e a indústria.
[7] Em 1770 o marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, decidiu transferir o desembarque dos navios negreiros e o comércio de escravos da área central do Rio de Janeiro para a região mais afastada conhecida como Valongo. O mercado de escravos funcionava, então, na rua Direita, próximo à rua de São José, além de nas outras ruas estreitas do centro da cidade. Sua intenção ao promover a mudança do mercado para uma área praticamente rural, de chácaras e sítios, entre as atuais regiões da Saúde e da Gamboa, e de estabelecer o novo mercado de escravos na rua do Valongo (atual Camerino), era de evitar, principalmente aos olhos dos estrangeiros, nobres e recém-chegados que desembarcavam no Rio de Janeiro por onde atualmente é a Praça XV, um espetáculo triste de homens, mulheres e crianças seminus, em sua grande maioria fracos e doentes, em exposição à venda pelas ruas do centro. Logo que o porto e o mercado foram transferidos para o Valongo, a população da área adensou, trapiches, armazéns, mercados, pequenos comércios e residências dos negociantes e traficantes de escravos cresceram nos arredores, pântanos foram aterrados e ruas abertas. Ao desembarcar dos navios, os negros africanos eram conduzidos aos armazéns e mercados onde eram alimentados, minimamente vestidos, recebiam cuidados de saúde e higiene (para se recuperarem da viagem das doenças e não morrerem), e separados, por idade, nacionalidade e sexo, homens de mulheres e crianças, sendo a maioria dos escravos do Valongo homens entre 13 e 24 anos. A região começa a sofrer um pequeno declínio após a primeira tentativa de interrupção do tráfico em 1831, que se intensifica depois da lei de 1850 que efetivamente extingue o tráfico. Posteriormente, essa região ficou conhecida por ser habitada pela população mais pobre da cidade, que foi ao longo dos anos subindo os morros em busca de moradia, e pela grande concentração de negros (ex-escravos e seus descendentes), que mantinham vivas as tradições da cultura africana, até mesmo os dias de hoje.
[8] A escravidão se estabelece sobre o instituto da violência. A dor era inerente à vida dos escravos e se faz presente ainda hoje nos documentos que dizem respeito a castigos, maus tratos e a principal forma de identificação dos negros: as marcas feitas a ferro quente. Havia três tipos de marcas, as da própria nação africana, culturais, que identificavam a comunidade de origem ou funcionavam como adorno, como desenhou Jean-Baptiste Debret em duas pranchas de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil; as feitas pelos negociantes e proprietários, e as que serviam como punição, para que se reconhecesse quem fugiu ou cometeu algum delito. Ao chegar ao porto de onde sairia o navio negreiro, ainda na África, os escravos eram marcados com as iniciais do traficante responsável por eles, e ao chegar ao Brasil, recebiam novas marcas, desta vez com as iniciais de seus proprietários. Essa prática se repetia quantas vezes fosse preciso, ou seja, a cada vez que o escravo fosse vendido, seria novamente marcado. Embora muitos deles já tivessem marcas de origem, as feitas pelos comerciantes tinham outro significado. Elas se tornavam cicatrizes, quase sempre inalteráveis, que serviam para evitar fugas e, caso elas ocorressem, localizar mais facilmente o escravo. D. Manuel, rei de Portugal, foi um dos primeiros a institucionalizar a marca, no início do século XVI, utilizando-se primeiramente desse recurso nos escravos da Coroa. Outra marca comum era a cruz, gravada no peito dos cativos que haviam sido batizados. Embora algumas vezes vozes se levantassem contra essa agressão, ela somente se extinguiu por um curto momento, entre 1813 e 1818, por razões humanitárias, mas a prática logo foi restabelecida por necessidade de racionalização do negócio negreiro. Os corpos eram marcados em lugares de fácil visualização, como peito, braço, ombros, no ventre, na coxa e até na face. Em 1741 Gomes Freire de Andrade, governador da capitania do Rio de Janeiro, instituiu que os escravos fugitivos seriam marcados com um F (de fugido) quando fossem encontrados, e seriam obrigados a usar doravante um cordão de estacas. Caso se apreendesse um escravo em fuga já com aquela marca F, este teria uma punição mais severa e exemplar, uma orelha cortada. As marcações a ferro quente como punição, bem como a mutilação, foram extintas com o Código Criminal do Império de 1832.
[9] Pessoa cativa, sem liberdade, que está sujeita a um senhor como sua propriedade. Desde o século XV, os portugueses realizavam o tráfico de escravos africanos. A atividade escravista, além de ser um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal, era também a principal fonte de mão-de-obra para o cultivo de diversas culturas no Império português. Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Apesar dos acordos entre Brasil e Inglaterra para interrupção do tráfico de escravos nas primeiras décadas do século XIX, este se intensificou e os escravos de origem africana continuaram a ser, durante o período joanino, a principal fonte de mão-de-obra utilizada na lavoura, no comércio e nas mais variadas atividades urbanas e rurais.
[10] Instituição criada pelo príncipe regente d. João, através do Alvará de 10 de maio de 1808, nos moldes da Intendência Geral de Polícia de Lisboa. A competência jurisdicional da colônia foi delegada a este órgão, concentrando suas atividades no Rio de Janeiro. Desde a sua criação, a Intendência manteve uma correspondência regular com as capitanias, criando ainda o registro de estrangeiros. Além da atividade policial, coube à instituição papel relevante na urbanização e nas obras públicas, atuando na secagem de pântanos, aterros, na pavimentação e conservação de ruas e caminhos e na construção de chafarizes, entre outros. A instituição teve, portanto, ampla, abrangendo assuntos desde segurança pública até questões sanitárias, incluindo a resolução de problemas pessoais relacionados a conflitos conjugais e familiares. Foi a estrutura básica da atividade policial no Brasil e influenciou os órgãos seqüentes.
[11] Desembargador e ouvidor da Corte, foi nomeado intendente geral de Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente geral de Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis, e cabendo a ele não somente questões de polícia, como investigações e combate ao crime, mas de ordem pública - controle da Ordem urbana, urbanização, saneamento, controle de pestes, manutenção de prédios, entre outros assuntos pertinentes à cidade. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou energicamente como uma espécie de ministro da segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle os ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Entre seus feitos, destaca-se a organização da Guarda Real da Polícia da Corte. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro e retornou a Portugal com a Corte.

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