"O socialismo acabou, sim. Então
vamos lá: ‘Abaixo o socialismo!’.
Porque ele sobreviveu nas mentalidades e ainda oprime o cérebro dos vivos com o peso de seus milhões de mortos. O século passado viu nascer e morrer esse delírio totalitário"
Porque ele sobreviveu nas mentalidades e ainda oprime o cérebro dos vivos com o peso de seus milhões de mortos. O século passado viu nascer e morrer esse delírio totalitário"
Falei outro dia a estudantes da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Um deles, militante
socialista, antiimperialista, favorável ao bem, ao justo e ao belo, um
verdadeiro amigo do povo (por alguma razão, ele acha que eu não sou), tentou
esfregar Rousseau (1712-1778) na minha cara como exemplo de filósofo preocupado
com o bem-estar do homem. "Justo esse suíço que não cuidava nem dos próprios
filhos, entregando-os todos a asilos de crianças?", pensei. O sujeito amava
demais a humanidade para alimentar as suas crias. "O que será que alguns mestres
andam dizendo nas escolas?" Já participei de outros eventos assim. A expressão
do momento, nas universidades, é resistir à "colonização promovida pelo
mercado". A maioria silenciosa não dá bola pra essa besteira. A minoria
barulhenta vai à guerra. O conceito é curioso porque faz supor que possamos ser
caudatários, então, de uma cultura autóctone, de um nativismo pré-mercado ou de
um tempo edênico em que o mundo não havia sido ainda corrompido.
A pauta de contestação varia pouco. Que
importa se Israel é a única democracia do Oriente Médio? A justiça, sem matizes,
estará sempre com os palestinos. O terrorismo islâmico assombra o planeta e
obriga os regimes democráticos a uma vigilância que testa, muitas vezes, seus
próprios fundamentos? A culpa cabe ao "fundamentalismo cristão" de George W.
Bush, com sua "guerra ao terror". As Farc seqüestram e matam? É preciso eliminar
a influência que os EUA exercem na América do Sul. O crime assombra a vida
cotidiana dos brasileiros? O país precisa é de menos cadeias e mais escolas,
como se fossem categorias permutáveis. Existe remédio para a tal "injustiça
social"? Claro! Responda-se com a estatização dos pobres. A Terra está
derretendo? É preciso pôr fim ao neoliberalismo. Sem contar os malefícios da
imprensa burguesa...
Agora sei. É tudo culpa de Rousseau e do
seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens. Quem melhor comentou a obra, numa cartinha enviada ao próprio autor,
foi Voltaire (1694-1778), pensador francês: "Quando se lê o seu trabalho, dá
vontade de andar sobre quatro patas". Este sabia das coisas. Descobriu a "força
da grana – e da liberdade – que ergue e destrói coisas belas". Está claro nos
textos de Cartas Inglesas. E, à diferença do outro, não dava muita pelota
pra esse papo de "igualdade"
.
Algumas normalistas de meias
três-quartos do articulismo pátrio diriam que Voltaire era um malcriado. Onde já
se viu tratar daquele jeito um senhor que só pensava no bem da humanidade?
Afinal, o que ele queria? Ora, todos cedemos um pouquinho aos interesses
coletivos e seremos felizes. Não sou Voltaire: minhas ambições e meu nariz são
menos proeminentes, mas noto o convite permanente para que passemos a nos
deslocar sobre quatro patas. Na prática, o iluminismo anglo-saxão venceu: a
força da grana erigiu cidades, catedrais, civilizações e fez vacinas. O discurso
da igualdade, quando aplicado, produziu uma impressionante montanha de mortos.
Mas vejam que coisa: é Rousseau quem está em toda parte, reciclado pela bobajada
do marxismo, que tentou lhe emprestar o peso de uma ciência social.
O que isso quer dizer na história das
mentalidades? O socialismo perdeu o grande confronto da economia e desabou sobre
a cabeça dos utopistas, mas as esquerdas têm vencido a guerra da propaganda
cultural, impondo a sua agenda, aqui e em toda parte. Dominam o debate público
e, pasmem!, foram adotadas pelo capital. Estão incrustadas, como se sabe, nas
universidades e nos aparelhos do estado, mas também nas grandes empresas, que
financiam institutos culturais e ONGs dedicados a preservar as árvores, as
baleias, as tartarugas, a arte e, às vezes, até as criancinhas. De quebra,
também nos convidam a ser tolerantes com o que nos mata.
São todos, de fato, "progressistas",
filhos bastardos do suíço vagabundo. Eu, um "reacionário", um tanto voltairiano,
embora católico, pergunto aos meus botões: um banco não é mais "humanista"
quando oferece crédito e spread baratos do que quando se propõe a salvar o
planeta? Na propaganda da TV, a mineradora parece extrair do fundo da terra mais
sentenças morais do que ferro, mais poesia e idéias de "igualdade" – esta droga
perigosa – do que minério. Escondam o lucro! Ele continua a ser um anátema, um
pecado social e uma evidência de mau-caratismo. O lucro leva pau até em roteiro
de Telecurso 2º Grau. Aposto que boa parte dos nossos universitários, a pretensa
elite intelectual brasileira, acredita que as vacinas nascem do desejo de
servir, não da pesquisa financiada pela salvadora cupidez da indústria
farmacêutica.
O socialismo acabou, sim. Então vamos
lá: "Abaixo o socialismo!". Porque ele sobreviveu nas mentalidades e ainda
oprime o cérebro dos vivos com o peso de seus milhões de mortos. O século
passado viu nascer e morrer esse delírio totalitário. Seu marco anterior
importante é a Revolução Francesa, mas sua consolidação se deu com a Revolução
Russa de 1917, que ousou manipular a história como ciência da iluminação. A
liberdade encontrou a sua tradução nos campos de trabalhos forçados, com a
população de prisioneiros controlada por uma caderneta ensebada que o ditador
soviético Josef Stalin (1879-1953) levava no bolso. A igualdade mostrou-se na
face cinzenta da casta dos privilegiados do regime. A fraternidade converteu os
homens em funcionários do partido prontos a delatar os "inimigos do estado e do
povo". A utopia humanista vivida como pesadelo impôs-se pelo horror econômico e
acabou derrotada pelo inimigo contra o qual se organizou: o mercado. Mas,
curiosamente, sobreviveu como um alucinógeno cultural.
De que "socialismo" falo aqui? É claro
que o modelo que se apresentava como "a" alternativa não-capitalista de
organização da sociedade desapareceu. E a China é a prova mais evidente de sua
falência – do modelo original, o país conservou apenas a ditadura do partido
único. O livro O Fim da História e o Último Homem, do historiador
americano Francis Fukuyama, já se tornou um clássico do registro desse malogro.
Demonstrou-se a falência teórica e prática de um juízo sobre a história: aquele
segundo o qual o macaco moral que fomos nos tempos da coleta primitiva
encontraria o estágio final de sua sina evolutiva no bom selvagem socialista, de
espinha ereta, pensamentos elevados e apetites controlados pela ética
coletiva.
De fato, os donos das minas de carvão
(que seres desprezíveis!), os mercadores cúpidos, os colonizadores e até seus
sicários, toda essa gente acabou, mesmo sem saber, civilizando o mundo.
Felizmente, o homem não é bom. A sociedade, por meio dos valores, é que ajuda a
controlar os seus maus bofes. Estamos falando de duas visões distintas de mundo.
Uma supõe uma religião em que o deus único é o estado; o bem alcançado é
diretamente proporcional à redução do arbítrio individual: menos alternativas,
menos probabilidade de erro. E a outra acolhe a vontade do sujeito como motor da
transformação do mundo, respeitadas algumas regras básicas de convivência.
Atenção: a democracia moderna nasce dessa vertente, não da outra, semente dos
dois grandes totalitarismos do século passado: fascismo e comunismo.
É o modelo de proteção às liberdades
individuais, sem as quais inexistem liberdades públicas, que nos faculta o
direito de criticar o nosso próprio modelo. Não obstante, as causas influentes,
reparem, piscam um olho ora para utopias regressivas, ora para teorias que nos
convidam a entender os facínoras segundo a particularíssima visão de mundo
dos... facínoras! É a forma que tomou a militância de esquerda, que nos convida
a resistir à "colonização promovida pelo mercado".
Tomem cuidado com os militantes da
"igualdade" e da "justiça social". Toda crença tem um livro de referência. Esta
também. Além de ter sido escrito com o sangue de muitos milhões, só se pode
lê-lo adequadamente sobre quatro patas