O medo da máscara
A proibição do uso de máscaras em manifestações populares tem algo de igualmente patético, e, ao mesmo tempo, de igualmente preocupante: a falta de noção, por parte das autoridades, da existência de limites para seus desmandos e suas arbitrariedades
Por Canal Ibase
A proibição de máscaras em protestos gerou polêmica e intensas reflexões sobre o momento político que vivemos. Para alimentar o debate, reunimos duas opiniões sobre o tema: a análise de Renzo Taddei, antropólogo e professor da Universidade Federal de São Paulo, e o vídeo com a fala de Pedro Abramovay, diretor de campanhas no site Avaaz.org e professor da Fundação Getúlio Vargas.
O medo da máscara
Renzo Taddei*
colunista do Canal Ibase
No Brasil de hoje, quase todo mundo tem medo de máscara. A crise política que vivemos acentua a percepção, já antiga no Brasil, de que os políticos são, em sua maioria, “mascarados”. Há poucos dias, a Polícia Federal, na operação batizada de Esopo, prendeu quase duas dúzias de pessoas acusadas de envolvimento em desvio de verbas do Ministério do Trabalho. A referência a Esopo é curiosa: o nome vem de um autor grego a quem se atribui a criação da fábula como gênero literário. Ele foi, também, o criador da fábula do lobo sob a pele de ovelha (celebrizada no Novo Testamento, onde Mateus comparou os falsos profetas a lobos em peles de ovelha).
É nesse contexto que surge a novidade jurídica da criminalização do uso de máscaras em manifestações populares, no Rio de Janeiro e em outras capitais do país. Usei a auspiciosa data da última sexta-feira, 13, para analisar o contexto sociopolítico em que esse tipo de proibição ocorre, e tem ocorrido desde tempos remotos. Começo com uma provocação, aparentemente desconectada do tema em questão: colocando a expressão “sexta-feira 13” em mecanismos de busca de imagens na Internet, encontrei, além das previsíveis referências ao (mascarado!) Jason, personagem do filme de terror que tem a data como título, imagens de gatos pretos e bruxas. Tomemos, então, esta última: o leitor já se perguntou, em algum momento, o porquê da imagem icônica da bruxa que herdamos dos antepassados europeus se encarnar em uma mulher, velha, e inevitavelmente acompanhada por um gato preto?
O francês Emile Durkheim, um dos pais da sociologia, propôs no início do século passado que a criminalidade é parte integral das sociedades “saudáveis”, e não uma evidência de decadência social. A ideia de Durkheim é que a existência de ameaças à comunidade faz com que seus membros se unam, na necessidade de se proteger, e isso garante a coesão social necessária ao funcionamento do grupo. Quando não há uma ameaça óbvia, externa, sugeriu Durkheim, a coletividade criminaliza suas minorias. Até uma sociedade de anjos teria, necessariamente, seus criminosos, afirmou o sociólogo; o que seria considerado crime, aí, é que diferiria radicalmente dos nossos padrões jurídicos.
O que é que isso tem a ver com as bruxas? Ocorre que as sociedades da Europa medieval não possuíam mecanismos sociais robustos de reintegração das viúvas à vida social, e elas frequentemente se tornavam párias. A questão do destino das viúvas após a morte do marido, em sociedades fortemente machistas, foi tema de preocupação recorrente ao longo da história humana: há sociedades que praticam o levirato, sistema no qual as viúvas casam-se com seus cunhados, de modo que são assim reintegradas à ordem social. O levirato existe em regiões da Ásia, Oriente Médio e África. Foi praticado na Inglaterra, em momentos específicos de sua história, pelas famílias reais. Hamlet, de Shakespeare, tem no levirato a fonte de sua revolta. Há também casos em que se espera que a viúva cometa suicídio e junte-se ao marido morto. Na Índia, essa prática chama-se sati; apesar de ter sido proibida desde a era colonial, há indícios de sua ocorrência, nos dias de hoje, em regiões rurais daquele país.
Voltando à Europa medieval, o que ocorre é que as viúvas, miserabilizadas, eram frequentemente responsabilizadas pelas mazelas da coletividade. Durkheim diria que isso se dava em razão de elas estarem fora da ordem social. Eram, dessa forma, frequentemente criminalizadas, perseguidas e assassinadas. Surge daí a imagem da bruxa como mulher velha.
Há inúmeros exemplos, ao longo da história, da criminalização das minorias ou dos excluídos, em situação de crise social. Há um estudo, feito por uma economista, que mostra que o número de acusações de bruxaria na Europa medieval crescia em anos com eventos climáticos extremos, em especial em anos mais frios. Em lugares onde acusações de bruxaria existem como parte do funcionamento das coletividades, como em vários povos africanos, por exemplo, há estudos que sugerem que a frequência das acusações de bruxaria cresce em anos marcados por eventos meteorológicos extremos, como secas e inundações. Em décadas recentes, tristemente, há registro de crianças órfãs, em países assolados por guerras civis, acusadas de bruxaria.
E os gatos? Em geral, as análises folclóricas sobre os gatos das bruxas se centram no fato de que estes são pretos. No entanto, é mais relevante o fato de que estes são gatos. Há autores que dizem que os gatos jamais foram efetivamente domesticados. O grau de controle que os humanos têm sobre os gatos é limitado. Ou, colocando de outra forma, os gatos são resistentes ao controle humano. Uma piada comum entre amantes de gatos é que estes não têm donos, e sim funcionários.
Desta forma, tanto no caso da viúva como no caso do gato, o que se vê é a criminalização de quem oferece alguma forma de resistência ao poder instituído, ao status quo. Nesse sentido, não é de se estranhar que o Estado brasileiro, em todos os seus níveis, se empenhe em criminalizar os movimentos sociais. Trata-se de um padrão político antigo, como mostram os exemplos mencionados acima. Trata-se, também, de um indicador de quão tosca é a nossa realidade política: por trás do verniz de modernidade, mimetizamos padrões milenares de perseguição às minorias.
A máscara e a política como teatro do absurdo
No ano de 2003, quando eu fazia uma pesquisa acadêmica no sertão do Vale do Jaguaribe, no Ceará, o assassinato de um radialista por um pistoleiro movimentou politicamente a região. Assassinos de aluguel no Nordeste costumam fazer uso de motocicletas, não apenas em função desta ser conveniente no momento da fuga, mas também do anonimato produzido pelo uso do capacete. Foi então que o delegado do município de Jaguaribe decidiu, para espanto geral, proibir o uso de capacete na região. Foi repreendido no dia seguinte, por autoridades de Fortaleza, e revogou a proibição. Em 2009, outro delegado, na cidade baiana de Itaparica, adotou a mesma medida. Em 2010, foi a vez da Câmara Municipal do município de Tibau, no Rio Grande no Norte, aprovar lei municipal proibindo o uso do capacete.
A proibição do uso de máscaras em manifestações populares tem algo de igualmente patético, e, ao mesmo tempo, de igualmente preocupante: a falta de noção, por parte das autoridades, da existência de limites para seus desmandos e suas arbitrariedades. O que vemos aqui é o poder e a necessidade desesperada de controle se colocando contra a vida – literalmente, no caso do capacete; ocasionalmente, no caso das manifestações. Mas, principalmente, há a recusa em ver o óbvio: como eu mencionei em minha coluna anterior, o foco em ações isoladas de violência nas manifestações, retirando-as do contexto mais amplo, esvazia politicamente o movimento, reduz o político a um caso de polícia. O que o poder instituído não quer ver é que há um elemento de conflito de classe, de exclusão social, que se corporifica nas ações da multidão: os ataques não são aleatórios, mas direcionados a símbolos de status e do status quo – concessionárias, bancos, lojas de luxo, veículos da polícia. A criminalização do uso de máscaras surge como medida desesperada, porque sem qualquer chance de sucesso. Aliás, no país do carnaval, o que é preciso é que se faça uma distinção fundamental: há máscaras visíveis, como as usadas no carnaval, e como as usadas nas manifestações – são as máscaras da subversão constitutiva da liberdade. E as máscaras invisíveis, do paleopolítico corrupto e do policial sem identificação: essas são as máscaras reacionárias da nossa morte social e política.
Abaixo, o vídeo de Pedro Abramovay:
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