Dolores Duran: “A vida acaba um pouco todo dia”
A importância de Dolores Duran, que não chegou a viver a bossa nova que ela, provavelmente sem perceber, ajudou a moldar e construir
Por Pedro Alexandre Sanches
A matéria abaixo faz parte da edição 120 de Fórum
O clichê autoritário que sempre busca o “definitivo” nas obras artísticas e/ou intelectuais não encontra morada por aqui. Apesar de suas caudalosas 560 páginas, Dolores Duran – A Noite e as Canções de uma Mulher Fascinante (editora Record) não é, definitivamente, a biografia definitiva da mais influente compositora brasileira do século passado. Escrito pelo jornalista carioca Rodrigo Faour, o livro é tão transbordante em valor enciclopédico quanto carente de charme literário ou elaboração sobre o significado e a importância da presença pioneira, curta e lancinante da também carioca artista no cenário musical brasileiro.
Dolores foi a mais eloquente personificação do momento imediatamente anterior ao advento da Bossa Nova. Morreu em 24 de outubro de 1959, sem ter tempo para compreender a reviravolta que o movimento capitaneado por João Gilberto e Tom Jobim iniciava no biênio 1958-1959. Segundo conta o livro, foi cogitada para protagonizar o álbum inaugural Canção do Amor Demais (1958), a primeira coleção de canções de Tom e Vinicius de Moraes, que acabaria vindo à luz na voz (algo antiquada) de Elizeth Cardoso. Dolores não chegou a viver a Bossa Nova que ela, provavelmente sem perceber, ajudou a moldar e construir.
O trabalho de Faour é precioso pelo detalhismo em reconstituir a rápida passagem de Dolores pela música brasileira, inclusive por intermédio de um sem-número de entrevistas com colegas da artista, vários deles prestando seus depoimentos pouco antes de morrer, já na casa dos 80 anos. Opta, no entanto, por erguer uma narrativa edulcorada, daquelas de uma princesinha irreverente que viveu uma vida cor-de-rosa e num belo dia morreu – aos 29 anos.
Quando se foi, a cantora Dolores deixou quatro LPs gravados (o formato era incipiente, e ganharia força justamente com a bossa nova, e com o rock adolescente à moda de Celly Campello). Já a Dolores compositora ouvira gravadas meras 20 de suas criações, e apenas cinco delas pudera registrar em sua própria voz: “Por Causa de Você” (1957), “Não Me Culpe”, “Solidão” (1958), “Prece da Vitalina” e “Minha Toada” (1959). Futuros clássicos da pré-bossa nova, “A Noite do Meu Bem e “Fim de Caso” (1959) só apareceriam depois (e por causa) de sua morte. A indelével “Estrada do Sol” (1958), parceria com um Tom Jobim ainda pré-bossa nova, jamais foi registrada na voz da dona.
As evidências de que nem tudo foram flores na breve existência de Dolores estão espalhadas por todo o livro, mas Faour não banca sua decifração, preferindo colocar colegas, amigos e parentes a repetir e repetir como havia sido feliz e genial a moça que trazia no codinome artístico latinizado e abolerado (o de batismo era Adiléia Silva da Rocha) o peso e o charme da dor, das dolores.
Para começo de conversa, Dolores era Silva e, como muitos dessa imensa família, vinha de origem pobre e tinha a pele negra, mestiça no mínimo. Faour principia classificando-a de branca, em operação escamoteadora muito frequente quando se trata de Dolores (ou Machado de Assis, ou…). Mas não passa muitas páginas sem descrever consequências do racismo que essa artista pioneira não deve ter parado de sofrer vida afora.
Dá conta, por exemplo, da reação de desistência de Dolores, pouco após começar a aprender música com um especialista em música erudita e ópera. “Não vou mais nessa aula de canto, não. Já viu Desdêmona preta? A gente não vê preto em ópera”, teria dito a artista à irmã mais nova. Um namoro com o então adolescente João Donato, outro futuro gênio da bossa, não progrediu – a irmã do músico aparece no livro rendendo juras de que não foi por preconceito racial na família.
Amiga de juventude de Dolores, Eloá Dias aparece contando detalhe que poderia ganhar ares de relevância se pensássemos numa Dolores relegada a segundo ou terceiro plano por ser menos branca do que nossa pálida memória gosta de assumir: “Vivia de lenço e bobes na cabeça por causa do cabelo duro, que ela tinha ódio”. Em inúmeras descrições (em depoimentos ou recortes de imprensa), a artista é descrita como “um pinguinho de gente”, “moreninha trigueira”, “garota morena jambo”, “bochecha”, “quase bonita”, “gordinha”.
“Aquele seu tipo mignon não inspirava confiança”, lanceta um cronista de época. “Ela não era bonita, mas se fazia bonita”, diz Alberico Campana, dono do Little Club, boate na qual Dolores ajudou a tornar mítico o logo a seguir bossa-novista Beco das Garrafas, em Copacabana. Olhe bem uma foto de Dolores e diga: ela era “feia”, como se insinua repetidamente, ou era… negra?
Faour relata a origem de “A Banca do Distinto”, (1959) de Billy Blanco, outra preciosidade eternizada apenas postumamente na voz de Dolores. Diria respeito a um freguês de boate que humilhava a crooner com a frase “manda a negrinha cantar…”. Inspirado na queixa da amiga, o paraense Billy compôs: “Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho/ pra que tanta pose, doutor?/ pra que esse orgulho?/ a bruxa, que é cega, esbarra na gente, e a vida estanca/ o infarto lhe pega, doutor, e acaba essa banca”. Quando “A Banca do Distinto” foi lançada, no mesmo compacto de “A Noite do Meu Bem” e “Fim de Caso”, o infarto já havia pegado… a cantora.
A cantora se impõe
O livro dedica um capítulo à “explosão da compositora”, no ano derradeiro de vida, mas a tese é questionável. De fato, poucas de suas composições ganharam inúmeras gravações naquele ano, enquanto Dolores adquiria status de “cult” junto à crítica (frequentemente um índice de impopularidade comercial). Mas é incômodo notar que demorou para poder gravar o que queria e, mais ainda, a cantar suas próprias composições – se é que algum dia os tenha conseguido.
O livro dedica um capítulo à “explosão da compositora”, no ano derradeiro de vida, mas a tese é questionável. De fato, poucas de suas composições ganharam inúmeras gravações naquele ano, enquanto Dolores adquiria status de “cult” junto à crítica (frequentemente um índice de impopularidade comercial). Mas é incômodo notar que demorou para poder gravar o que queria e, mais ainda, a cantar suas próprias composições – se é que algum dia os tenha conseguido.
O LP de estreia, Dolores Viaja (1955), era uma panaceia de canções em oito idiomas diferentes, que explorava a propalada habilidade da cantora com os idiomas. A fórmula persistiria nos dois álbuns seguintes, Dolores Canta para Você Dançar…, volumes 1 (1957) e 2 (1958). No primeiro, a autora tentava (e conseguia) se impor diante da crooner de boate, incluindo a lancinante “Por Causa de Você”, dela com Tom Jobim. No segundo, pôde incluir a doloridíssima “Solidão” (“ai, a solidão vai acabar comigo”), suficiente, se não houvesse outros muitos motivos, para carimbar Dolores como cantora (e compositora) de dor de cotovelo.
Surge mais uma pista na transcrição de uma entrevista da artista em 1958: “Na prática, minha carreira não progredia. Decidi, então, dar cunho bem popular. Troquei a boate pelo circo [que] ao contrário do que muitos pensam não desmerece ninguém.” Modernidades vocais e musicais à parte, ela começava então a lançar temas de tez nordestina, inclusive um LP quase todo dedicado a essa temática, o derradeiro Este Norte É Minha Sorte (1959).
Soam saborosíssimas hoje canções como “Zefa Cangaceira”, “A Fia de Chico Brito” (ambas do cearense Chico Anysio, a segunda revivida por Elis Regina em 1971) e “Na Asa do Vento” (de João do Vale e Luiz Vieira, tornada mais conhecida quando Caetano Veloso a regravou, em 1975). Mas poderíamos nos perguntar se, à época, o repertório mais forrozeiro e as apresentações em circo não estigmatizavam Dolores como a Silva que ela, de fato, era.
Já ao final do livro, o compositor Tito Madi (de “Chove Lá Fora”) rende evidência nesse sentido, afirmando que, nos últimos tempos de vida, Dolores planejava um disco só com composições dele e de Tom Jobim. “Acabou que a gravadora Copacabana vetou o projeto dela”, afirma Tito. Faour também relata o desejo não materializado de um disco só de “Dolores canta Dolores”. Será que o tempo de Dolores estava pronto para Dolores?
Tudo indica que não estava. É de “Estrada do Sol” para frente que a nascente bossa nova se destaca dos temas depressivos e soturnos celebrizados por Dolores, Antonio Maria, Tito Madi e outros contemporâneos, para partir com tudo para o amor, o sorriso e a flor. De influenciadores, os modos mansos e tristes dos sambas-canção de artistas como Dick Farney, Nora Ney, Lúcio Alves e dezenas de outros passariam a ser marginalizados como pouco sofisticados. Não teria a morte precoce de Dolores funcionado como o cordeiro de sacrifício para que a bossa exorcizasse a fossa e se fizesse luminosa por sobre o cadáver de uma ex-futura líder bossa-novista que era mulher, pobre, triste e preta?
Como a história prega peça em seus feitores, Dolores correria mundo depois de morta, pendurada no prestígio de Jobim e, dentro desse contexto, das parcerias “Por Causa de Você” (gravada em inglês por Frank Sinatra, em 1971) e “Estrada do Sol”. De quebra, a tristeza que a bossa tentava esconder permaneceria viva e pulsante na revisitação constante dos temas de dor e morte que Dolores compôs pouco antes de morrer.
“A vida acaba um pouco todo dia”, dizia e continua a dizer, em constantes regravações, a letra de “Olhe o Tempo Passando” (1959). Em “Noite de Paz” (1959), coube a Maysa encarnar o aparente desejo de morte da autora: “Dai-me, senhor, uma noite sem pensar/ dai-me, senhor, uma noite bem comum/ uma noite em que eu possa descansar”. Como o ex-patrão Alberico Campana conta a Faour, Dolores “gostava de chegar em casa apenas de manhã, porque tinha medo de morrer dormindo”. E morreu, mas de manhã. “No ar parado passou um lamento/ riscou a noite e desapareceu”, preconizava “Pela Rua” (1959), outro tema noturno que sua compositora nunca gravou. F
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