quinta-feira, 31 de outubro de 2013

GRACILIANO, O GRANDE (Artigo de Reynaldo Azevedo)


"Vidas Secas poderia ser um romance de denúncia social,
eivado de proselitismo. Mas não. Graciliano Ramos repudiava
o chamado ‘engajamento’ na arte"

Evandro Teixeira
METÁFORAS QUENTES DE SOL
O sertão de Graciliano Ramos hoje, fotografado por Evandro Teixeira: mundo primitivo em linguagem culta e rigorosa
Graciliano Ramos (1892-1953) nunca foi vítima do preconceito organizado que existe contra o Monteiro Lobato para adultos, por exemplo. Sempre foi considerado entre os grandes escritores brasileiros. Mas há muito a crítica e a academia – esta em especial – negam-lhe o devido lugar no panteão da prosa modernista: o topo, onde segue embalsamado por certa mistificação o sem dúvida inventivo Guimarães Rosa. As razões que levam à superestimação de um concorrem para subestimar o outro.
Por que Graciliano agora? A Editora Record relança a sua obra, sob a supervisão de Wander Melo Miranda. Trata-se de um trabalho bem-cuidado, com a recuperação de textos originais, correções feitas pelo próprio escritor, cronologia e bibliografia de e sobre o autor de Vidas Secas – ou "Cyx Knbot" em búlgaro, uma das dezesseis línguas em que ele pode ser lido. O romance, que completa setenta anos, merece especial atenção: além da edição regular, há uma outra, limitada a 10.000 exemplares, no formato de um álbum, com capa dura e papel cuchê (208 páginas, 99 reais): cuidado à altura das belas fotos de Evandro Teixeira, que acompanham o texto. Sete décadas depois da publicação do livro, o fotógrafo refez o roteiro de Fabiano, sinhá Vitória, Baleia e os meninos.
Vidas Secas? É bastante conhecida uma das mais devastadoras passagens da literatura brasileira: as páginas em que Graciliano narra a agonia e morte da cadela Baleia. Fabiano, que vaga com a família pelo sertão, tangido pela seca, decide matá-la com um tiro para aliviar-lhe o sofrimento. Segue um trecho:

"A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia (...) E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo (...). Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano (...). Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora, cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas (...). A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia (...). A pedra estava fria. Certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás (...) gordos, enormes".

Algumas das qualidades que fazem de Graciliano mestre da língua portuguesa e do texto literário estão acima condensadas. Vidas Secas, saído da pena de um escritor das Alagoas, de esquerda, poderia ser um romance de denúncia social, eivado de proselitismo e anseios libertários. Mas não. O autor repudiava o chamado "engajamento" na arte. Referia-se a Jdanov (1896-1948), o comissário da Cultura da URSS que fundara as bases do chamado realismo socialista, como o que era: "uma besta". Baleia é mais comoventemente miserável quando se arrasta sobre dois pés, quando "anda como gente". Ele não deprecia o homem, comparando-o ao cão; antes, hominiza o cão porque vê com compaixão a nossa condição – e essa compaixão inclemente pelo humano é marca da sua obra. Há dias, em passagem pelo Brasil, José Saramago declarou padecer de "marxismo hormonal". Segundo o escritor português, não merecemos a vida. Ele nos negaria um pedaço de osso. "Preás gordos, enormes", então, nem pensar.
Evandro Teixeira
REGIONALISMO SEM FOLCLORE
O homem do sertão, com seu cachorro, e Graciliano (à dir.): a condição humana expressa na agonia da cadela Baleia
O mundo da Baleia agonizante é primitivo, feito só de sentidos e sensações. Mas ele nos chega numa linguagem culta, fluente, rigorosa, sem charadas vocabulares para "desconstrução" em colóquios acadêmicos. Tanto em Vidas Secas como na obra de temática urbana, proto-existencialista – Graciliano traduziu A Peste, de Albert Camus, em 1950 –, os adjetivos e as imagens nascem das coisas. Como escrevi num ensaio que integra o livro Contra o Consenso, não há ali "uma única e miserável metáfora que não seja quente de sol (...), pulsante de sangue, aguda de espinhos, dura de pedra. Tudo nasce da matéria precária da vida". A face regionalista de sua literatura não folcloriza a realidade sertaneja, tentando atribuir-lhe alguma metafísica ou lógica interna superiores, que demandassem sintaxe e vocábulos de exceção. O estoque da língua e as regras do jogo lhe bastam. Como ele mesmo escreveu, "começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer".
Atribuo-lhe características de meu gosto pessoal? Não! Era uma escolha consciente. Em 1949, envia uma carta a Marili Ramos, sua irmã. Ela acabara de publicar um conto chamado Mariana. A apreciação do leitor-irmão não tinha como ser mais severa. A tal carta resume um credo literário: "Julgo que você entrou num mau caminho. Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as complicações interiores da menina habituada aos romances e ao colégio. As caboclas de nossa terra são meio selvagens (...). Como pode você adivinhar o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupa. (...) Você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe. Apresente-se como é, nua, sem ocultar nada".
Em Graciliano, a literatura é um jogo da inteligência analítica, como neste trecho de Insônia: "Um silêncio grande envolve o mundo. Contudo, a voz que me aflige continua a mergulhar-me nos ouvidos, a apertar-me o pescoço. (...) explico a mim mesmo que o que me aperta o pescoço não é uma voz, é uma gravata". A conspiração das vozes do silêncio que perseguem o insone perdem imediatamente o encanto de uma maldição metafísica: basta afrouxar a gravata. Sabemos a origem das nossas aflições, o que não quer dizer que tenhamos respostas para elas. Com freqüência, não. E isso nos torna demasiadamente humanos. Não para o comunista Saramago, claro...
Essa lembrança me remete ao mais explicitamente político dos muitos Gracilianos, incluindo aquele que chegou até a ser prefeito da cidade de Palmeira dos Índios (1928-1930). Refiro-me ao livro Memórias do Cárcere, reeditado pela Record em um único volume. O escritor ficou preso entre março de 1936 e janeiro de 1937, acusado de ligações com a conspiração que resultara no levante comunista de 1935. Era mentira. Filiou-se ao PCB só em 1945. Nesse livro, publicado postumamente no ano de sua morte, ele se agiganta. Em muitos sentidos, a cadeia é a caatinga de um Graciliano-Fabiano que, à diferença do personagem de Vidas Secas, consegue se expressar com clareza. Em vez do herói da resistência, o anti-herói dos escrúpulos que comunistas chamariam pequeno-burgueses. Definitivamente, ele não era o "novo homem socialista". Era o velho homem apegado a suas dores privadas, a seus anseios, a suas mesquinharias. Leiam trecho do diálogo que ele trava com um militante comunista russo de nome Sérgio, que acabara de ser torturado. Graciliano pergunta se ele sente ódio:

"– Ódio? A quem?
– Aos indivíduos que o supliciaram, já se vê.
– Mas são instrumentos, sussurrou a criatura singular.
(...)
– Admitamos que o fascismo fosse pelos ares, rebentasse aí uma revolução dos diabos e nos convidassem para julgar sujeitos que nos tivessem flagelado ou mandado flagelar. Você estaria nesse júri? Teria serenidade para decidir?
– Por que não? Que tem a justiça com os meus casos particulares?
– Eu me daria por suspeito. Não esqueceria os açoites e a deformação dos pés. Se de nenhum modo pudesse esquivar-me, nem estudaria o processo: votaria talvez pela absolvição, com receio de não ser imparcial. (...) Fizemos boa camaradagem. Mas suponho que você não hesitaria em mandar-me para a forca se considerasse isto indispensável.
– Efectivamente, respondeu Sérgio carregando com força no c. Boa noite. Vou dormir. Estendeu-se na cama agreste, enfileirada com a minha junto ao muro, cruzou as mãos no peito. Ao cabo de um minuto ressonava leve, a boca descerrada a exibir os longos dentes irregulares. Nunca vi ninguém adormecer daquele jeito. Conversava abundante, sem cochilos nem bocejos; decidia repousar e entrava no sono imediatamente."

Como se vê, também os monstros morais podem ser torturados. Notem como Sérgio dorme tranqüilo, mesmo depois de supliciado, e com rapidez, o que espanta o observador. Está certo de seu senso de justiça como o crente em uma religião qualquer. Esquerdistas convictos nunca têm dúvidas. Já os personagens do autor de Insônia – a começar do próprio Graciliano em Memórias do Cárcere – não descansam nunca. Quando o brutal Paulo Honório, em São Bernardo, vê consumada a sua obra, restam-lhe a solidão e a insônia. O tema aparece em Angústia ("visões que me perseguiam naquelas noites compridas"), no autobiográfico Infância ("À noite o sono fugiu, não houve meio de agarrá-lo") e até nas suas cartas de amor. O homem de Graciliano vive em vigília, num ambiente sempre hostil, seja a caatinga, a cadeia ou as paisagens íntimas.
Falei de sua compaixão pelas dores humanas. Também nesse caso, seu horizonte não é finalista: não tem uma resposta para a nossa condição nem a vê com moralismo. Paulo Honório, por exemplo, acaba, na prática, matando quem tentara proteger: Madalena, a sua mulher. Tem ciúme da piedade que ela sente do mundo e ódio da sua própria incapacidade de se comover. Narrado em primeira pessoa, o romance não o caracteriza como um monstro. É só um ser desesperado tentando, como todos nós, sobreviver, salvar-se. Honório não é diferente da estabanada menina Luciana, do conto Minsk, nome do seu periquito. Um dia, numa de suas trapalhadas, ela pisa num objeto mole e ouve um grito. 

"Os movimentos de Minsk eram quase imperceptíveis; as penas amarelas, verdes, vermelhas, esmoreciam por detrás de um nevoeiro branco.
– Minsk!
A mancha pequena agitava-se de leve, tentava exprimir-se num beijo:
– Eh! eh!"

"Todo homem mata aquilo que ama", escreveu na cadeia o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Por isso nos arrastamos, como Baleia, vida afora, em busca de perdão. Somos uns cães. Mas, ainda assim, dignos de amor. E cerraremos os olhos contando acordar felizes, num mundo "cheio de preás gordos, enormes".

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