sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

MANDELA DEIXA UMA ÁFRICA DO SUL AINDA MARCADA PELAS DIFERENÇAS RACIAIS



Marcel Gascón.
Johanesburgo, 6 dez (EFE).- Nelson Mandela deixa uma África do Sul marcada ainda pelas diferenças raciais e as desigualdades, apesar de toda uma vida de sacrifícios para conseguir uma sociedade 'igualitária, não racial e não sexista'.
Em 10 de maio de 1994, Mandela e o juramento para assumir o cargo de presidente, o primeiro presidente negro do país, escolhido nas primeiras eleições livres da África do Sul.
O então líder do Congresso Nacional Africano (CNA) deu esse histórico passo após uma longa luta contra o regime de segregação racial do 'apartheid', imposto pela minoria branca do país, cujo combate o manteve preso por 27 anos.
O preso político mais famoso do mundo, prêmio Nobel da Paz em 1993 e símbolo da luta dos direitos humanos e da igualdade racial, pôde realizar uma das transições políticas mais pacíficas da África, onde a revanche e as vinganças partidárias foram substituídas pela reconciliação e pela convivência.
O homem que 'lutou contra a dominação branca e a dominação negra', como ele mesmo disse no histórico discurso no julgamento de Rivonia de 1964, quando foi condenado à prisão perpétua, inaugurou uma nova África do Sul que aspirava ser 'igualitária, não racial e não sexista'.
Esses princípios seguem inspirando a política do país, mas na prática África do Sul está longe de ter superado décadas de discriminação racial, e o legado de Mandela perde força, desbotado pela passagem do tempo, as desigualdades econômicas e as mensagens populistas dos líderes atuais.
'África do Sul é uma sombra da nação que foi sob o mandato de Mandela, a nação que triunfou sobre o apartheid e iniciou a cura das feridas', escreveu a colunista Ranjeni Munusamy, do jornal sul-africano 'Daily Maverick'.
'Desde 1999, a reconciliação foi enfraquecida em favor do objetivo de alcançar o poder político', acrescenta Munusamy no artigo 'O final da nação de Mandela', publicado em 2012.
No entanto, como comentou a Agência Efe Lucy Holborn, investigadora chefe do Instituto de Relações Raciais de Johanesburgo, 'houve alguns avanços, mas ainda há muito o que fazer no desenvolvimento social e econômico'.
Na opinião de Holborn, 'existe uma igualdade formal, mas não há uma igualdade real no que se refere à propriedade, à renda e a riqueza'.
'Os sul-africanos continuam a se identificar por raças, em parte pelas políticas de discriminação positiva, que seguem classificando os cidadãos segundo os grupos raciais que eram usados pelo apartheid: brancos, índios, negros e mestiços'.
'Muita gente lembra o papel que teve Mandela, mas na população negra cresce o sentimento que deram o perdão aos brancos e, apesar disso, seguem marginalizados'.
Esse sentimento aflora em algumas ocasiões, como em 29 de maio de 2012, quando centenas de sul-africanos negros se reuniram diante uma galeria de Johanesburgo que exibia um polêmico quadro que mostrava o presidente do país e líder do CNA, Jacob Zuma, com os genitais descobertos.
'Os brancos odeiam os negros' e 'Não vamos ser tratados como seres inferiores' foram algumas das mensagens deixadas pelos manifestantes, incluídos dirigentes do CNA, em alusão ao autor da obra, o artista sul-africano branco Brett Murray.
Embora a Presidência de Mandela (1994-1999) 'seja vista frequentemente com filtros cor de rosa', essa visão 'mascara muitos dos grandes desafios a nação tem', disse à agência Efe Piers Pigou, membro da Comissão da Reconciliação e a Verdade, dirigida pelo arcebispo emérito Desmond Tutu, prêmio Nobel da Paz em 1984.
Pigou acredita que a época de Mandela no governo foi uma espécie de 'cessar-fogo', pois só se abordaram 'os mais flagrantes abusos do apartheid' mas não se desenvolveu 'um verdadeiro diálogo sobre a reconciliação'.
Por outro lado, o CNA, partido no poder desde que Mandela ascendeu à Presidência em 1994, domina ainda o panorama eleitoral graças a sua contribuição à democracia, apesar de ter perdido apoio nos últimos pleitos devido aos escândalos de corrupção.
Um discurso que apela cada vez mais às questões raciais e sua aposta por uma 'segunda transição' no país africano fez com que ativistas como Mamphela Ramphele, que lutou junto de Mandela contra o 'apartheid' e que criou recentemente o partido político 'Agang' (Construir), tenham acusado o CNA de trair sua herança.
Além disso, o 'herói' sul-africano deixa uma disputa entre o Estado, o Centro da Memória de Nelson Mandela, seus descendentes e o próprio CNA, que disputam a gestão da lembrança de Nelson Mandela, assim como seus direitos autorais, de propriedade intelectual e de imagem.
Trata-se de um legado do qual 'todos querem ter uma parte', declarou a Efe um dos fotógrafos oficiais da família Mandela.
Por ora, 'sua morte reavivará sua memória, a importância de sua tarefa e sua mensagem de reconciliação', lembrou a pesquisadora do Instituto de Relações Raciais.
E vaticinou: 'depois os sul-africanos voltarão para sua vida cotidiana, e continuará o desmoronamento de seu legado'. EFE
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