BRASIL DE FATO
Gosto de saber que tem gente buscando ampliar os limites. Esses velhos teimosos me encantam. Quero ser assim ...
21/01/2015
Elaine Tavares
Eu estava ali, naquele bendito terminal do Rio Tavares, esperando já há mais de 20 minutos pelo ônibus do Castanheira, nesse insuportável cotidiano do transporte “desintegrado” de Florianópolis. Fervia de ódio, pois ninguém gosta de fazer aquele absurdo transbordo tão perto de casa. E, assim, enfadada e irada, observava o movimento das gentes. Então eu vi. Lá longe, numa das plataformas, no ônibus que ia para o Campeche, uma velhinha, carregada de umas poucas sacolas, tentava subir no coletivo. Ela fazia um tremendo esforço para alcançar o degrau e não conseguia.
Pois bem em frente a ela estava encostado um jovenzinho de uns 17 anos, talvez. Tinha um desses equipamentos de som pequeninos, o mp3, e os fones estavam encravados nos ouvidos. Ele balançava a cabeça e cantarolava bem alto, alheio a tudo que se passava no terminal. Apesar de estar com os olhos abertos, e voltados para a mulher, ele parecia não ver a velhinha e seu esforço quase sobre-humano para subir o degrau do ônibus. Meus olhos saíram da velha e se centraram no guri. Por átimos de segundo fiquei a pensar: que porcaria de mundo é esse em que as pessoas não conseguem mais enxergar umas as outras. Que merda de planeta é esse em que os seres humanos se encaixotam dentro de seus mundos, e fecham seus ouvidos para a vida que geme ao seu redor. E que porra de pessoas são essas que não se comovem com o esforço daquela velha, tentando avançar, no cotidiano que a exclui, com um mínimo de dignidade.
O garoto seguia cantando, e a fila de gente que estava por ali esperando o mesmo ônibus no qual a velhinha buscava subir tampouco enxergava o esforço que ela fazia, enredada nas pernas fracas, nos braços cansados e no corpo desgastado. Ali, o povo parecia adormecer, perdido em si mesmo, muitos também refugiados nos mp3, tal qual o guri que estava em frente à mulher. Estranho mundo em que a música, em vez de trazer alegria, aliena e separa. Fiquei meio bronqueada com esse lance de mp3, embora eu saiba que, no sistema de transporte coletivo por vezes alienar pode significar a sobrevivência. Ainda assim bateu a vontade de sair gritando: “escuta aqui, ninguém vê essa velha tentando entrar no ônibus?”. Mas, desisti do intento, pensando que aquilo de nada iria adiantar. Palavras o vento come. Há que agir.
Resignada com a falta de compaixão daquela gente de olhos vazios, saí do meu lugar na fila do Castanheira e vim até o ponto do Campeche ajudar a velhinha. Toquei o seu braço e sorri. “Segura em mim, querida, vamos lá...” Eu mesma sem muita força, mas já imbuída da missão. “Não é bolinho ser velha, né filha?” – disse, com certa resignação no tom de voz. “Qual nada. Essa é a hora em que os mais novos podem aproveitar para cuidar de vocês”. Ela suspirou. “Tás tola. Os jovens fogem dos velhos”. Ela estava com uma trombose, falou, e a perna doía muito. Nem sabia dizer por que insistia em sair sozinha. “A gente é teimosa”, redarguiu. Ajeitei aquele corpinho frágil no banco, ela agradeceu: “obrigada, filha”. E havia um lampejo de alegria no seu olhar. Eu desci. As pessoas seguiam ali na fila, com cara de paisagem. O guri fechara os olhos e cantava alto.
Naquele triste terminal as pessoas mofavam, perdidas de sua humanidade. A velhinha se foi, eu voltei ao final da fila. Ela acenou, alegre. Eu abanei de volta. Na janela do ônibus meio que me vi, igualmente em escombros, tão velha quanto ela, mas impávida. A vida empurrando para frente. Gosto de saber que tem gente buscando ampliar os limites. Esses velhos teimosos me encantam. Quero ser assim...
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