quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

MEIO SÉCULO DE CRISE CRIATIVA


Há 95 anos, nascia Federico Fellini. Releia artigo sobre 8 ½, obra-prima do cineasta italiano.

Obra predileta de Federico Fellini, 8 ½ completa 50 anos ainda atual, metalinguístico e polêmico

Não é sempre que a história do cinema imortaliza filmes que têm histórias fascinantes dentro e fora das telas, ou seja, tanto o que se assiste quanto os bastidores de sua produção são fascinantes. É o caso de 8 ½ de Federico Fellini, lançado em 1963, ganhador de quase duas dezenas de prêmios pelo mundo – entre eles o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro –, e que agora completa 50 anos. Embora notório freqüentador da lista de cinéfilos e estudiosos de arte, poucos sabem que o filme é ao mesmo tempo fruto e desavença interna do maior movimento cinematográfico de todos os tempos.
Antes mesmo da 2ª Guerra Mundial acabar, nascia na Itália ainda ocupada o neorrealismo italiano, movimento que seria grande influência na posterior formação da Nouvelle Vague, do cinema autoral norte-americano e até mesmo do Cinema Novo no Brasil. O movimento foi oficialmente inaugurado com Roma, cidade aberta, em 1945. Curiosamente, o projeto deste filme só nasceu com a forcinha do ator Aldo Fabrizi, que apresentou seu amigo Federico Fellini a Roberto Rossellini, que estava incubando há alguns anos o projeto de um movimento baseado nas teorias de André Bazin e que tivesse como intuito central abordar a realidade social da época. Ou seja, Rossellini estava justificadamente obcecado em retratar aquele atual momento social-histórico europeu e tinha como baliza uma teoria que, entre outras coisas, justificava que o cinema era uma linguagem tão acessível a todos os extratos sociais que deveria ser usado para ampliar e refletir a realidade do mundo, sendo que o viés artístico de cada obra se daria pelo recorte que cada diretor faz desta mesma realidade, mas sem nunca fugir dela.
Fellini já era um habilidoso escritor antes mesmo do movimento nascer, pois já havia colaborado como desenhista de histórias em quadrinhos, sketches para rádio, canções para teatro de revista e até monólogos para humoristas famosos. Rossellini não pensou duas vezes para convidá-lo a ser um dos roteiristas de Roma, cidade aberta, que seria filmado na Itália ainda durante a 2ª Guerra Mundial. O filme foi um estrondo e alastrou as influências do movimento para todo o mundo, dando força para Rossellini continuar com seus projetos posteriores, bem como seus diretores ideologicamente mais alinhados, como Vittorio de Sica e Luchino Visconti.
Mas e Federico Fellini? A perceber por sua biografia, nota-se que seus grandes filmes não foram feitos neste início fervoroso do neorrealismo italiano, ou seja, entre 1945 e 1950, quando a 2ª Guerra ainda era uma fonte riquíssima de histórias e recortes sociais, políticos e até culturais para o cinema. Fellini brilhou só depois, ainda que tenha inaugurado o movimento com Rossellini. Começou a nascer como diretor em Mulheres e luzes (1950), A estrada da vida(1954), Julieta dos Espíritos (1957) e, posteriormente, suas obras magistrais, A doce vida(1960) e 8 ½ (1963).
É aí que entram os bastidores desta obra-prima que completa meio século de existência. Ela é fruto de uma insistente desavença entre Fellini e o criador oficial do movimento do qual o próprio filme faz parte, Roberto Rossellini. A razão de tudo isso é que Fellini aparentemente não se identificava com a temática dura, seca, não envolvente dos filmes de Rossellini, Visconti e De Sica, sempre abordando a dureza social no iminente pós-guerra. Ele astutamente esperou a poeira da guerra baixar e, enquanto a Europa ia sendo reconstruída com bilhões de dólares norte-americanos do Plano Marshall, uma nova realidade foi se instaurando e então Fellini pôde retratar outra realidade, aquela que Michelangelo Antonioni chamava de “neorrealismo sem bicicletas”, veículo que era o símbolo da miséria e degradação social no pós-guerra.
Comédia neorrealista
Rossellini enfureceu-se contra filmes como 8 ½, acusando diretores como Fellini e Antonioni de “traírem o movimento”. Mas como não incluir 8 ½ no neorrealismo italiano? Ao abordar a história de um diretor em crise pessoal e criativa, que trava no momento de filmar e começa a resgatar suas memórias e fantasias, Federico Fellini não só estava fazendo uma obra com ricos traços autobiográficos (só aqui já neorrealista por excelência), como também estava dando uma necessária oxigenada num movimento fadado a desaparecer caso continuasse a abordar apenas a miséria do pós-guerra num continente em rápida recuperação econômica.
Mas o legado de 8 ½ para a história do cinema não se resume a curiosas histórias dentro da tela e nos seus bastidores. O filme, cujo nome se refere ao número de obras que Fellini havia feito até aquele ponto – seis longas, dois curtas e uma codireção (meio filme) –, é uma espécie de comédia neorrealista. Tanto que Fellini colocou uma nota, durante toda a filmagem, para si mesmo abaixo da câmera, dizendo: “lembre-se, isso é uma comédia”. Ou seja, trata-se de um diretor explorando um dos gêneros mais árduos do cinema num movimento no qual até então as comédias praticamente inexistiam.
Com uma atuação excepcional do ator-fetiche de Fellini, Marcello Mastroianni, no papel principal (embora Fellini quisesse primeiramente Laurence Olivier), o filme serviu de inspiração para diversas outras produções ao redor do mundo, como o musical da BroadwayNine, ganhador do Tony de Melhor Musical em 1982 e 2003. O próprio Fellini considerava este seu filme predileto – incluindo aí os filmes de outros diretores, num claro gesto de pouca modéstia.
Em 8 ½, Fellini arrisca-se em trabalhar com um roteiro semiestruturado, ou seja, que ainda seria preenchido por improvisações e outras colaborações no ato da filmagem. Ocorre que, durante um determinado momento da pré-produção do filme, ele esquecera completamente o que tinha que fazer depois, e tampouco havia deixado por escrito. Pronto para comunicar ao produtor do filme, Angelo Rizzoli, que abandonaria o projeto, ao ir ao aniversário do operador de câmera chefe da Cinecittà, ele teve a ideia de mudar a história e então contar a saga de um diretor prestes a filmar um longa de cuja história se esquece.
Com atuações inesquecíveis de Mastroianni e Claudia Cardinale, que aproveitaram a semiestruturalidade do roteiro para contribuir com ideias pessoais, 8 ½ também apresenta um magistral trabalho de fotografia de Gianni Di Venanzo, que trabalhou nos grandes filmes de Fellini e Antonioni. Com planos abertos tão belos quanto os de A doce vida, Federico Fellini apresenta um recorte da sua própria realidade e da Itália nos anos 1960, mesclando uma visão de mundo que, embora pragmática, é também bastante lúdica, servindo de inspiração para diversos diretores do mundo que posteriormente falarão de memória – do conterrâneo Giuseppe Tornatore (Cinema Paradiso) a Woody Allen e Robert Altman.
Preocupado com as possibilidades poéticas da representação, adorado pela crítica e nem sempre aplaudido pelos moralistas de plantão, 8 ½ de Fellini é uma obra para saborear imagens, diálogos e narrativas altamente metalinguísticos de um diretor cujas obras contribuíram não só para o fechamento em grande estilo do movimento cinematográfico mais importante do mundo, como, mesmo após meio século de existência, permanecem atuais e encantadoras.
Franthiesco Ballerini é jornalista e coordenador geral da Academia Internacional de Cinema

Nenhum comentário: