Não há provas de que a pena de morte tenha qualquer impacto na redução do tráfico de drogas ilegais
por Luís Fernando Tófoli
Ao assumir seu mandato no fim de 2014, o novo presidente da Indonésia, Joko Widodo, decidiu dar ao mundo o recado de que seu país não toleraria o malefício causado pelas drogas ilícitas e passou a negar clemência a todo e qualquer condenado à morte por tráfico, incluindo o caso de Marco Archer Cardoso Moreira, brasileiro preso em uma tentativa de entrar no país com uma grande quantidade de cocaína. Quando foram divulgados os esforços infrutíferos da presidente brasileira em conseguir a comutação da pena, foi usada a palavra “milagre” para descrever a única situação que poderia salvar o condenado do fuzilamento.
Não houve milagre: Archer foi executado em meio aos efusivos aplausos vindos do ambiente selvagem das caixas de comentário na internet. Essas são vozes que defendem a pena de morte por entender que a única forma de se terminar a guerra ao “flagelo das drogas” é na base de disparos de armas de fogo e da repressão severa. O argumento não está muito distante daqueles usados por Widodo e seu governo, e inclui a noção de que execuções desse tipo seriam exemplares, tanto para desencorajar potenciais criminosos quanto para dar uma lição a países mais lenientes – o que, na visão dos apoiadores da medida por aqui, incluiria o Brasil. O próprio condenado pareceu aderir a esse conceito ao pedir por clemência em uma gravação divulgada na internet, dizendo que queria sobreviver para alertar aos jovens do Brasil de que o único destino de quem se envolve com drogas é “a cadeia ou a morte”.
Mas a pena de morte realmente funciona para coibir o tráfico? A mais importante revista médica sobre uso substâncias psicoativas, a Addiction, publicou um editorial no ano de 2009 em que pede o fim da pena capital para o tráfico de drogas. Os dois principais argumentos através dos quais os autores sustentam esse pedido são o da eficácia e o da proporcionalidade.
Se fôssemos ser absolutamente rigorosos em relação à proporcionalidade, um país que condena traficantes à morte teria que matar fabricantes de bebidas alcoólicas ou outros produtos que causem risco à vida, como automóveis. A grande maioria dos usuários de substâncias ilegais não é dependente e nem executa atividades violentas associadas ao uso, e mortes diretamente associadas ao uso de drogas ilícitas são bastante raras, especialmente no Brasil, um país com pequeno uso de drogas injetáveis. Matar traficantes é claramente desproporcional ao impacto à vida humana causada pelo produto que vendem, a despeito do que dizem o senso comum e os programas televisivos vespertinos.
Quanto à eficácia, não há provas de que a pena de morte tenha qualquer impacto na redução do tráfico de drogas ilegais. Os traficantes que produzem ou movimentam toneladas de drogas não são as mesmas pessoas que as carregam através das fronteiras em suas bagagens ou dentro de seus corpos, e, portanto, não estão sob risco de execução. Nesse mercado, “mulas” para cumprir essa tarefa são facilmente substituíveis, e a chance de ser capturado é relativamente pequena, como atesta a própria história de Archer, que já traficara por diversas vezes para dentro da Indonésia.
Os dados indicam que mais do que penas severas, é a chance de ser flagrado em um ato irregular que reduz a chance de alguém perpetrá-lo. Não é à toa que o Rio de Janeiro teve uma queda de 44% nas mortes no trânsito entre os anos de 2012 e 2013, enquanto em São Paulo foram somente 8%. O rigor e frequência das blitze da Lei Seca já influenciaram o hábito dos cariocas, que evitam dirigir depois de beber com mais frequência do que os paulistas. Ninguém precisou ser preso ou executado no Rio de Janeiro para que um importante dano ligado ao uso de álcool fosse reduzido.
Mas é claro que as coisas não funcionam assim quando o assunto é drogas ilegais. A despeito dos desejos conservadores, a pena de morte para tráfico de drogas já existe no Brasil, embora de maneira informal e nas áreas periféricas. O abuso do recurso judicial dos autos de resistência permite que uma parcela de policiais realizem execuções sumárias, sustentados pela conivência coletiva de que a solução para o problema é o extermínio de quem comete ou meramente é suspeito do crime de tráfico. Diante das manifestações públicas no caso indonésio, não há qualquer sinal de que essa conivência equivocada venha a esmorecer, alimentada pela clássica litania do pânico moral: “sem repressão isso seria muito pior”.
Esta suposta solução, no entanto, está longe de resolver a questão. A tolerância zero ao tráfico se nutre dos efeitos deletérios da violência que ela mesma causa, e assim justifica e amplia a carnificina e o encarceramento de populações marginalizadas. Em contrapartida, os grupos criminosos organizados causam a morte ou a corrupção de policiais e a execução de rivais por disputa de pontos de venda, e isso se estende em um banho de sangue sem fim, o que parcialmente explica porque somos o país onde mais se mata no mundo.
Sob qualquer ângulo que se olhe este fenômeno, é improvável encontrar um efeito virtuoso no atual estado das coisas. O próprio país onde a guerra às drogas começou e foi aplicada com maior eficiência, os Estados Unidos, começa há já algum tempo apontar que esse modelo estaria se esgotando. Assim, se é impossível dar um tiro no coração do problema, afinal, qual a intercessão milagrosa que porventura descerá dos céus para nos salvar?
Ao mesmo tempo em que há os que pedem por mais punição, devemos notar que nunca se reivindicou de forma tão insistente e clara que as leis de drogas devam ser revistas de forma a reduzir o viés punitivo, apesar da força da burocracia e dos costumes estabelecidos que ainda sustenta que a atual política de drogas gere prejuízos maiores do que os promovidos pelas próprias substâncias.
Marco Archer não é um mártir. Devemos entender, porém, que sua morte lastimável, porém, simboliza o paroxismo da mesma política que também apoiamos como nação, ainda que à surdina. Há uma enorme contradição entre o repúdio manifestado pela presidente Dilma a Widodo e a declaração recente do seu Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, ao afirmar que o governo sequer irá debater mudanças nas políticas de drogas. Se por um lado se cumpre um protocolo diplomático necessário, por outro se demonstra que a estrutura de alianças políticas da governabilidade brasileira está nutrida por raízes fincadas profundamente no preconceito, no autoritarismo e em um fundamentalismo religioso que ainda não chegou a compreender o significado da palavra compaixão.
Em um ambiente como esse, não é o caso de esperar que uma força superior venha interceder por nós. É necessário que aqueles que são contra a matança e buscam verdadeiras políticas de amparo às pessoas que fazem uso problemático de drogas não se aquietem e tomem posição, seja em fóruns públicos, seja discutindo a questão com seus próximos. É somente por meio da discussão sóbria e franca que se poderá mudar a história da Guerra às Drogas que narcotiza a nossa percepção sobre este problema. Definitivamente, se isso vier a acontecer, não será por força de tiro de fuzil – e muito menos por milagre.
*Luís Fernando Tófoli é médico e professor de psiquiatria da UNICAMP
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