publicado em recortes por Roberta Simão
Há um ditado popular que diz que quem apanha nunca esquece. E da primeira pancada da vida a gente jamais esquece mesmo. A pancada no coração, quando inesperadamente a vida lhe tira um irmão sem que ele ao menos possa apertar suas bochechas e dizer tchau. Sem que você possa dizer eu te amo pela última vez. De repente, não se tem mais aquele abraço gostoso. De repente não se tem mais os finais de semana de risadas e gozações um com o outro, nem as as madrugadas ouvindo música e aprendendo a tocar violão. E os pais que se tinha antes desse irmão partir, cadê?
Não há mais ninguém no quarto ao lado. Apenas o silencio ensurdecedor da ausência que a vida lhe cobra ser suportada. O violão está mudo e desalento no canto. E você só queria aquecer seus sonhos com um abraço apertado, mas o quarto morre de frio e abandono em todos os cantos. Com o passar do tempo, para sua surpresa, alguma luz de ânimo no universo brilha acanhada e tímida, te dando forças e coragens de seguir em frente. É preciso suportar e se acostumar com esse cenário de ruídos silenciosos e ausências.
Mas sem que você perceba, o seu coração que antes era de carne, lento e discretamente vai se endurecendo e sendo acometido por simultâneas fibroses. Em dias de sufocantes saudades ele até para de bater, mas chora em silencio. E antes de se necrosar por inteiro, se recorda, quando o tempo girava sem pressa, que já foi cuidado por mãos amorosas e perfumadas. E se lembra que precisa se virar sozinho. E se acostumar com os insetos que vez ou outra fazem uma visita para um café. Pois as veias que ele possuía se transformaram em raízes presas à próxima planta que ainda irá nascer. O coração já foi macio, e muitas vezes se enfeitava de rendas e tecidos coloridos, para se esbaldar em abraços fraternos e gargalhadas escandalosas nas festas da família, que um dia foi família e que hoje é apenas uma formalidade conveniente.
O coração que pulsava em encantos e possibilidades, hoje não sente mais nada que emocione. Como no filme O Mágico de Oz, parece que o tempo vai te fazendo um "homem de lata". O coração despencou pela calçada sem que ninguém percebesse, em pele e osso o amor se definhou como mendigos poetas.
( Homem de Lata - Filme: O Mágico de Oz - Google imagens)
Outras pancadas vieram após a primeira. Uma traição vulgar. O final monocromático de uma grande história de amor. As frustrações com amigos. As injustiças sociais e políticas do país. Os desvios éticos sutis e escancarados detectados no dia a dia em seus interlocutores. E a essa altura do campeonato, involuntariamente, eu me vi trancando a delicadeza, o amor, as emoções e a esperança em um baú de recordações que fica empoeirado em algum canto esquecido da alma e jogando a chave fora.
(google imagens)
A conclusão? Somos seres humanos feitos de carne. Mas parece que ao longo da vida, somos conduzidos a viver como se fossemos de ferro ou lata. E, aproveitando que é final de ano, muito embora escrever sobre o ano vindouro seja um clichê dos mais manjados, é válida a tentativa de colocar os pingos nos “is” que se escondem dentro de nosso alfabeto mental. Pancadas servem para encararmos a vida com mais maturidade e nos proporcionarem passeios por certas ousadias, mantendo os braços seguros e abertos para as pequenas e irretocáveis ternuras da vida. Pois há que se acreditar que elas existem. Depende de cada um querer ou não sair da inércia emocional. Como na música dos Beatles: “The movement you need is on your shoulder.”
Alguém viu por aí a chave de um baú velho e empoeirado?
Feliz 2015.
(Googles imagens)
Nota: Título inspirado na frase de Ernesto Guevara ( Che Guevara): "Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás"
© obvious: http://lounge.obviousmag.org/sobre_todas_as_coisas/2014/12/sobre-a-dificuldade-de-endurecer-sem-perder-a-ternura.html#ixzz3NuNzWlGd
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