Na semana passada, concluí aprimeira parte de minha análisedo artigo científico “Investigating the Fit and Accuracy of Alleged Mediumistic Writing: A Case Study of Chico Xavier’s Letters” (Investigando o Acerto e Precisão de Suposta Escrita Mediúnica: Um Estudo de Caso de Cartas de Chico Xavier) apontando o que me parece uma falha grave do trabalho.
Recapitulando: a pesquisa, realizada por cientistas brasileiros com verba da Fapesp, tenta estabelecer que a probabilidade de Xavier ter tido acesso, via meios “normais”, a certas informações contidas em 13 cartas, atribuídas ao espírito de J.P., um jovem de Campinas (SP) morto em 1974, é tão pequena que a probabilidade de o acesso ter ocorrido por outro meio – extraordinário, talvez paranormal – torna-se relevante.
O problema que apontei é que o conceito de “extraordinário” adotado pelos autores é curiosamente arbitrário. Eles consideram, por exemplo, extremamente improvável que Chico Xavier, em Uberaba (MG), tivesse acesso a jornais da cidade de Campinas, durante a década de 70. Para esses pesquisadores, suponho, o acesso seria algo extraordinário. No entanto, para a linha de raciocínio do artigo fazer sentido, isso teria de ser ainda mais extraordinário do que um morto ditar cartas. O que é uma opinião, para dizer o mínimo, controversa. Há mais de 100 anos, a psicóloga americana Amy Tanner já ensinava, em seu clássico “Estudos do Espiritismo”, que não é correto pressupor que a comunicação com os mortos seja uma explicação em pé de igualdade com as demais: antes de levá-la em conta é preciso, primeiro, descartar todas as vias alternativas normais.
Mas, ponhamos essas chateações filosóficas de lado. A probabilidade de a informação ter sido transmitida por meios usuais foi classificada, no artigo, segundo uma certa Escala Leak (“Vazamento”, em inglês), com cinco graus, de 0 a 4. Cada grau corresponde a uma classe conceitual, em linhas gerais dependente do nível de contato entre a pessoa que poderia ter a informação e o médium, ou um de seus assistentes.
Já a veracidade (ou não) das informações extraídas das cartas foi auferida por meio de entrevistas com parentes e amigos de J.P., realizadas quase 40 anos depois dos eventos. Essas mesmas entrevistas foram usadas para definir os valores atribuídos a cada dado, dentro da Escala Leak.
Os autores reconhecem a fragilidade das entrevistas. Escrevem: “Pesquisas sobre a memória indicam que a lembrança que uma pessoa tem de um evento pode ser alterada por informações posteriores ao evento ou por influência do grupo (...) não podemos descartar a hipótese de que o desejo dos participantes de que as cartas fossem genuínas (...) possa tê-los levado a distorcer suas memórias”.
A Escala Leak é construída sobre o pressuposto de que as informações corretas, presentes nas cartas, só poderiam ter chegado “naturalmente” ao médium ou por ser de conhecimento geral – algo que deu na televisão, por exemplo – ou por meio de comunicação explícita da família, falando diretamente com Chico Xavier ou com um de seus assistentes devidamente identificados. O que é ingênuo, para dizer o mínimo.
Para ficar só num exemplo, a ideia de que os familiares de J.P. poderiam ter sido ouvidos conversando entre si enquanto esperavam ser atendidos, ou de que o médium pudesse ter gente “plantada” entre as centenas de consulentes aguardando a vez, para puxar conversa com eles e extrair informações úteis, não parece ter ocorrido a ninguém. Chico Xavier se valia desses expedientes, verdadeiros clássicos no repertório do mentalismo, do curandeirismo e da mediunidade? Não sei, mas trata-se de uma possibilidade de “vazamento” – apenas uma, entre várias outras – que não foi levada em conta pelos autores.
Os pesquisadores, embora afirmem o contrário, também são extremamente generosos na aplicação da escala. Eles consideram que informações como “eles me chamaram”, “eles me massagearam”, “eles me fizeram respirar”, referentes às circunstâncias da morte de J.P., tinham uma probabilidade extremamente baixa de terem sido obtidas naturalmente pelo médium. Mas a verdade é que são ilações lógicas, vindas de uma única peça de informação real, que poderia muito bem ter sido entreouvida na sala de espera: a de que o jovem morreu afogado, enquanto nadava com amigos.
A conclusão, a esta altura, deve ser óbvia: o artigo não só falha em estabelecer o que parte da mídia diz que estabelece – a realidade da comunicação de Chico Xavier com os mortos – como ainda é fraco demais, até mesmo, para cumprir a tarefa mais modesta que lhe foi dada pelos próprios autores: a de enfraquecer a tese científica dominante de que a mente não passa de uma função do cérebro.
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