terça-feira, 26 de novembro de 2013

A FORMAÇÃO DE PESQUISADORES NEGROS


texto copiado do site  http://splashurl.com/n7pnkf3 : in 10 de agosto de 2006

Henrique Cunha Jr.
Uma necessidade democrática
A história da formação social brasileira é a história do escravismo criminoso que produziu ao longo de quase 300 anos a imigração massiva de africanos. Como os processos de invasões européias no continente africano encontraram fortes resistências, as regiões de exploração e lutas variaram e se alternaram no tempo, fazendo com que os cativos africanos para aqui trazidos viessem de diversas regiões e culturas. Dado o imenso desenvolvimento técnico e social, para época, vivido pelos diversos países africanos, o Brasil absorveu e se beneficiou de mão-de-obra portadora de todas as técnicas e conhecimentos utilizados nos diversos campos da produção no país. O conhecimento produtivo do Brasil Colônia é fundamentalmente africano, nas áreas de mineração, produção de ferro, agricultura, produção de açúcar, manufaturas, tecelagem, construção. O mesmo se dá no campo da política, se considerarmos que os quilombos foram a forma mais sistemática da produção de contestação do estado escravista. Não paradoxalmente, as artes e a cultura se fundam também sobre as mesmas heranças africanas. Até as literaturas e as músicas ditas eruditas são realizadas por africanos e descendentes de africanos. Basta nomearmos os marcos das nossas artes e da nossa literatura para constatarmos tal evidência.

A produção da pesquisa científica no Brasil é iniciada nos finais do século XIX e início do XX, aí também, vamos encontrar a participação ativa de afrodescendentes. Há casos extremos como o do engenheiro Teodoro Sampaio, que filho de escrava, depois de formado na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, volta à Bahia para comprar a liberdade de sua mãe. Tornou-se geógrafo, sanitarista, pesquisador, está entre os fundadores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
A contradição que nos preocupa é a de que, mesmo em face de inúmeras evidências históricas, ainda ser necessária a discussão sobre a pesquisa que trata da população negra e sobre a formação de pesquisadores negros. Os argumentos da história não são suficientes para a consciência de que existe um erro se perpetrando na composição dos corpus de pesquisadores brasileiros, nas temáticas eleitas pela ciência brasileira e sobretudo nas políticas científicas e de formação de pesquisadores no país. Surpreendente não é apenas a ausência de políticas nesta área, como também a falta de preocupações democráticas com a implantação destas. Num país que forma 6000 doutores por ano, temos que menos de 1% são negros e menos das teses 1% tratam temas de interesse das populações afrodescendentes.
“Ninguém discrimina ninguém, a razão disso é que o negro é pobre”, dizem. Errado, a razão é que os métodos de discriminação estão tão institucionalizados que não incomodam às consciências críticas. É tido natural o negro não entrar nos programas de pós-graduação. Examinando o histórico de cerca de dois mil mestres e doutores negros existentes no país, vemos que a faixa etária das candidaturas e os regimes de trabalhos estão fora dos perfis privilegiados pelas políticas e pelos programas de pós-graduação. A média dos pesquisadores negros ingressa no mestrado aos 35 anos, trabalha e precisa participar do sustento da família, o que é incompatível com o número e valores das bolsas. Os programas favorecem quem, em iniciação cientifica e artigos? Os pesquisadores negros vêm de ensino universitário noturno, que não dá oportunidades para a iniciação científica. As disciplinas de base dos temas pretendidos pelos pesquisadores negros não existem nas graduações. A única fonte de formação tem sido o próprio movimento negro. Os programas rejeitam pesquisadores militantes dos movimentos negros. Bancas de entrevista não conseguem superar a relação patroa-empregada existente nas nossas relações sociais cotidianas, tornando as entrevistas tensas e as pesquisadoras negras antipáticas. Fato mais notado entre as mulheres: “quem é antipático não entra, as negras ‘muito da exibida’ não entram”.
Mas, para os que entram, não há orientadores conheçam os temas, o que alimenta a dificuldade em se ter sucesso na pesquisa no tempo determinado. A universidade brasileira não confessa a sua ignorância nos temas de interesse dos afrodescendentes, sendo que única responsabilidade do insucesso fica por conta dos pesquisadores negros. O problema é grave, mais grave ainda é que nada disso tem sido questionado pela sociedade democrática acadêmica.

O que está ocorrendo
Está ocorrendo que as populações negras vivem em espaços geográficos que não recebem políticas públicas. São áreas sobre as quais o conhecimento científico é praticamente inexistente. Forma-se um círculo vicioso, nada se sabe; e nada se faz de coerente porque nada se sabe. As políticas universalistas do Estado se mostraram inócuas. No governo passado, através de pesquisa do IPEA concluiu-se o que os movimentos negros vinham dizendo há quase 30 anos: há a necessidade de políticas específicas. No entanto, quase nada se sabe sobre essas especificidades pois os pesquisadores e os atuais temas das pesquisas têm a ver com interesses que não são os das populações de descendência africana. Negro e afrodescendentes aqui são sinônimos, definições que vão além das denominações de raça e raça social. Estão ligados ao trânsito da história e a enfoques nos processos de dominação e na produção étnica da submissão neste país. Nós temos falado da necessidade de pesquisas e de produção de conhecimentos sobre os territórios de maioria afrodescendente. Mas não há pesquisa, não há política pública, não há solução objetiva dos problemas.

A democracia prevê a representação de todos os grupos sociais em todas as instâncias de decisão. No estágio atual do capitalismo, a pesquisa científica e os grupos de pesquisadores constituem um grupo privilegiado de exercício do poder, quer pela ação direta na participação nos órgãos de decisão do Estado, quer pela ação indireta através da difusão dos conhecimentos que justificam as ações dos poderes públicos. Os grupos sociais cujos membros não fazem pesquisa ficam alijados dessas instâncias de poder. A ausência de pesquisadores negros tem reflexo nas decisões dos círculos de poder. Vide que temas como a educação e a saúde dos afrodescendentes só passam para a pauta do Estado brasileiro depois que os movimentos negros, com esforços próprios, formaram uma centena de especialistas e pesquisadores nessas áreas e produziram um número relevante de trabalhos científicos.
Por que não existe mais pesquisa e mais pesquisadores? Por que não se quer ter. Não existe vontade política das instituições universitárias e muito menos dos órgãos de política científica do Estado. Os movimentos negros têm sido muito ativos nas propostas de políticas públicas de ações afirmativas para formação de pesquisadores negros. Estas propostas só têm recebido a atenção de setores isolados da sociedade e das fundações internacionais.

Finalizando sem terminar
São infindáveis as posições e contraposições que o tema encerra. Ainda temos uma mentalidade nacional avessa à existência de negros ou, pelo menos, insensível a qualquer manifestação de afirmação da existência de identidades negras. A aversão não é contra a existência material desses seres ditos negros, mas contra a existência política dos mesmos. Tal qual durante o período do escravismo criminoso, persiste a ótica dominante do medo branco com relação a onda negra. As idéias convenciam a sociedade que o perigo era negro, enquanto a criminalidade oficial branca do Estado e todos os processos de dominação impostos pela matriz européia não eram vistas como perigosos, danosos e dolosos para a sociedade. Tal mentalidade continua se processando, sob novas formas de inculcação, com os mesmos resultados de um certo pânico e pelo menos indisfarçável desconforto frente à visão da organização política, cultural e identitária de negros.

O país funciona bem, é democrático, a Constituição veda qualquer discriminação de raça, sexo ou religião. Essa é a visão conformista e utilitária da nossa situação: a harmonia. Quando algum pesquisador de pele clara se auto-denomina negro, correm os pares, as vezes até mais escuros que ele, a dissuadi-lo com uma enxurrada de argumentos e este passa a ser visto como o produtor da discórdia. “Quem é negro nesta sociedade? Somos todos mestiços. Temos todos um pouco de escravizado e escravizador no nosso passado.” Quem se denomina negro passa a ser o importador de temas estanhos à comunidade harmônica brasileira. As falácias desses argumentos não são analisadas com o rigor da comunidade científica, ficam no pseudo senso científico. As referências biologizantes do tema superam as referências políticas e sociais. Pesquisadores da história se esquecem dos conceitos da história social e se amparam no argumento biológico. Socialmente, nós não temos nada do escravizador, visto que este não mestiçou a sua propriedade com a nossa. Vejam que o escravizador sempre vendeu os filhos que teve como as escravizadas como mais um escravo. A nossa dita morenidade não está representada na distribuição de renda do país. Importada é a maioria ou quase totalidade das idéias científicas difundidas no país. Quais seriam os critérios da condenação de uma importação de idéias em particular? Ou só no campo das relações étnicas é que não é cientifico importar idéias? A crítica da importação também mostra uma ignorância sobre a nossa história social, já que os movimentos negros do Brasil, há mais de um século, pautavam essas temáticas.

É certo que nos damos bem, no campo informal. Pulamos carnaval juntos e jogamos futebol. Mas não estudamos juntos e, muito menos, pesquisamos juntos. “Mas é um problema social”. Não temos dúvida que é um imenso problema social, mas para o qual não se procura solução. Existem aqueles que nos dizem que têm em casa uma negra empregada e dizem que é como se fosse da família, mesmo que não dividam com ela o capital cultural, a educação dos filhos ou o seguro saúde da família. No Brasil, até o cachorro é membro da família.

Desde que organizamos a Associação de Pesquisadores Negros, em 2000, com intuito de acelerar o processo de pesquisa das temáticas de interesse dos afrodescendentes, tenho ouvido pelos corredores, e às vezes explicitamente, argumentos da ordem: pesquisa não tem cor; ou que as temáticas abordadas por nós não são suficientemente universais; ou seja, não fazem parte da ciência. Concordo que a pesquisa não tem cor, mas as políticas científicas, que não têm nada a ver com o cerne do fazer científico, essas têm os atributos de cor, de grupo social, de grupo histórico, de marginalizações e de produção das desigualdades sociais, econômicas e políticas. Quem detém o poder detém a primazia da ciência e determina quais temas são parte ou não da ciência. Veja que o mesmo universalismo científico fez com que todas as teorias racistas fossem produzidas, divulgadas e aplicadas pelos corpus científicos. Então, o argumento da universalidade da ciência não serve como científico, em face da própria história da sua construção eurocêntrica. Mesmo ainda por que as ciências físicas hoje travam um imenso debate sobre as idéias de generalização e universalização da ciência, visto as discordâncias sobre a natureza do tempo e do espaço, sobre a lógica da previsibilidade da ciência destruída pela teoria do caos. Podemos quase afirmar que não existe uma ciência universal, pelo menos nos moldes que era concebida há 30 anos atrás.

A formação dos pesquisadores negros passa por todos esses obstáculos ideológicos, políticos, preconceituosos, eurocêntricos, de dominações e até mesmo de inocências úteis vigentes nas instituições de pesquisa e nos órgãos de decisão sobre as políticas científicas. É fundamentalmente um problema político de concepção da sociedade e das relações sociais. Problema que a sociedade científica se nega a reconhecer como um problema, se negando a tratá-lo e colocá-lo na agenda das preocupações. O mesmo ocorre na esfera governamental, que de certa forma reflete o pensamento das instituições de pesquisa.

O capitalismo segue fabricando seus negros. Utiliza a produção científica para reatualizar as estratégias de dominação e subordinação desses negros produzidos. As definições sobre os negros e sobre nossas condições de vida seguem se alterando ao longo do último século. Para se ter uma idéia dessa dinâmica basta acompanhar as modificações que as Nações Unidas tiveram sobre a temática. Mas a média dos pesquisadores brasileiros permanece alheia a essas definições e redefinições. A maioria ainda pensa o negro no mesmo referencial racista e biológico do século XIX. Praticam as concepções da existência de raças humanas e de seus atributos. Vide, como exemplo, o imenso sucesso que o livro Casa Grande & Senzala ainda faz entre eles. Participam de um subdesenvolvimento científico mental nesse setor das relações étnicas, com graves conseqüências para as populações afrodescendentes. Sob um discurso de democracia e igualdade, impõe-se descasos e discriminações sobre a necessidade de pesquisas em temas de interesse da população negra e da formação de pesquisadores originários desse grupo social.

Henrique Cunha Jr. é professor titular do Departamento de Engenharia Elétrica do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Ceará.

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