Porta de saída do principal programa social brasileiro já é uma realidade. Em dez anos, 1,7 milhão de famílias abriram mão do benefício para caminhar com as próprias pernas
Josie Jeronimo
Mais importante programa social do Estado brasileiro, o Bolsa Família completa dez anos de existência como uma iniciativa louvada não só pelo governo, como também pela oposição. Considerado imprescindível por todos os candidatos a ocupar a Presidência da República no próximo ano, o programa tem se revelado uma política pública de sucesso político, econômico e também cultural. Ajudou brasileiros a se reconciliarem com uma dívida social acumulada ao longo de séculos de uma história de exclusão, permitiu a ampliação do mercado interno e, principalmente, conseguiu sepultar de uma vez por todas a alegação de seus principais críticos de que o programa de transferência de renda estimularia os beneficiados a não procurar emprego e melhores condições de vida. Nos últimos anos, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social, milhares de famílias procuraram repartições municipais para entregar seu cartão verde-amarelo, símbolo do programa, e assinar uma declaração de próprio punho na qual afirmam que não têm “mais necessidade de receber o beneficio”. Em uma década, 1,7 milhão de chefes de família – em sua maioria mulheres – abriram mão de um benefício mensal médio da ordem de R$ 250 para caminhar com suas próprias pernas, sem ajuda do Estado.
ISTOÉ conversou com quatro antigos beneficiários do programa que puderam se emancipar do auxílio do Estado. Ouviu relatos de famílias que conquistaram aumento de renda e qualidade de vida. As histórias de vida de bolsistas do Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste mostram que a porta de saída do programa não é um milagre, mas uma arquitetura realista quando famílias que enfrentam a pobreza em seus múltiplos aspectos – econômico, educacional, médico, social – recebem amparo e orientação para transformar vocações profissionais em fonte de renda. “Há quatro anos, fiz um curso oferecido pelo Sebrae e pelo governo do Estado e abri um ateliê em casa para artesanato. O negócio cresceu e hoje temos uma loja de joias, na avenida principal da cidade. Nós fomos os primeiros a entregar o cartão, aqui na região. O gestor ficou admirado”, conta Osmarina Uchoa, ex-beneficiária do Bolsa Família, moradora de Pedro II, município a 200 quilômetros de Teresina, no Piauí.
Outro ex-bolsista, Samuel Rosa Rodrigues, trilhou um caminho parecido com o de Osmarina. Era flanelinha e, com a ajuda do Bolsa Família, conseguiu montar um lava-jato. “Fiquei muito orgulhoso quando pude devolver o cartão do Bolsa Família. Eu quero que lá na frente o meu filho saiba dessa história e diga: meu pai é um lutador”, afirmou.
A exemplo de Osmarina e Samuel, a maioria do 1,7 milhão que devolveu o cartão do programa se tornou microempreendedor individual. Atualmente, 290 mil ex-bolsistas sustentam suas famílias trabalhando no setor de serviços. Outros 760 mil receberam orientação e ajuda para conseguir microcrédito e abrir pequenos negócios. De tanto oferecer cursos aos chefes de família e permanecer com vagas abertas, o governo percebeu que focar as ações do programa nas mulheres multiplicava os resultados. Hoje, 93% dos titulares são do sexo feminino e o mercado privado começa a oferecer cursos às beneficiárias.
Entre tantos passos intermediários na consolidação do programa, tem-se como certo que em 2006, quando teve início a formação do Cadastro Único, para verificar a situação social das famílias de todo o País, foi possível atravessar uma fronteira capaz de separar o assistencialismo convencional daquilo que se considera uma política social atualizada e efetiva, cuja base é um esforço pela autonomia dos cidadãos e não pela preservação de sua dependência. O coordenador-executivo da ONG Articulação pelo Semiárido (ASA), Naidson Baptista Quintella, cita o exemplo das cisternas para lembrar como a articulação do Ministério do Desenvolvimento Social e Integração Nacional consegue mudar a vida de famílias que vivem em áreas de seca severa. Com os recursos do Bolsa Família, que variam de R$ 70 a R$ 306, a família sai de uma situação de mendicância e de mazelas – às vezes incuráveis – que afeta a vida de cada um de seus membros. O acesso à água faz o beneficiário começar a sonhar em cultivar ou criar algo em suas terras para sustento da família ou gerar renda. “Antes, nos períodos de estiagem, nós sempre nos deparávamos com filas de pedintes e saques em armazéns,” lembra Naidson Quintella. Outro elemento notável é de natureza política. Impessoal, acessível a toda família que preenche um conjunto de requisitos idênticos, sem distinção de qualquer tipo, o programa também contribuiu para a derrocada dos coronéis que sempre dominaram a política das regiões mais atrasadas do País – quase sempre, as mais miseráveis – por meio da distribuição de favores de sobrevivência em troca de votos e de submissão política. Embora tenha se transformado numa alavanca poderosa para a popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva, no plano local o benefício não tem nome nem rosto. “É um crédito em conta, que não se vincula a ninguém,” afirma Naidson Quintella.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado este ano aponta que R$ 1 de aplicação no Bolsa Família gera crescimento de R$ 1,78 no Produto Interno Bruto (PIB). Não é de surpreender, assim, que nos anos de 2007 e 2008, quando a economia brasileira registrou grande expansão, com aumento de capital circulante, o número de beneficiários do programa sofreu redução. Um dos pioneiros na criação do Bolsa Família, o economista Ricardo Henriques, coordenador do grupo que criou o benefício, afirma que o movimento é circulante. “É mão dupla. O programa impacta a economia e a economia impacta o programa. A economia aquecida pode gerar o impacto do aumento de renda.”
Nas regras de concessão do Bolsa Família, não existe tempo-limite para o recebimento do benefício. As famílias podem ficar o tempo que necessitarem. Mesmo assim, o governo segue oferecendo cursos de capacitação para tentar abrir portas a quem teve poucas oportunidades. Até agora, só 5% dos beneficiários terminaram algum tipo de qualificação profissional proporcionado pelo governo. Na pasta de Educação, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego (Pronatec) oferece cursos especialmente direcionados aos bolsistas. Das 918 mil vagas abertas a beneficiários do Bolsa Família, 753 mil foram preenchidas. As letras e os números ainda assustam num universo em que 25 mil dos beneficiários se declaram analfabetos. Henriques conta que, durante a criação do programa, o objetivo de longo prazo era dar educação aos filhos de famílias comandadas por pais que não tiveram nenhuma educação formal. “O programa tem três dimensões: o impacto imediato da garantia alimentar, a transferência de renda para famílias e territórios e o impacto de longo prazo, que é a mudança da trajetória educacional de crianças filhas de pais analfabetos.” Sempre que ouve a observação de que muitas pessoas demoram para encontrar a porta de saída, o sociólogo Quintella rebate: “As pessoas vão caminhando em seu próprio tempo, não no tempo ditado pelos gabinetes. É uma tarefa para uma geração”.
Foi caminhando no seu próprio ritmo que Iolanda Silva, moradora da periferia de São Paulo, conseguiu mudar de vida. Depois de perder a guarda dos filhos, por falta de condições para sustentá-los, cadastrou-se no Bolsa Família e usou o dinheiro para reconstruir sua vida. “Consegui ter os meus cinco filhos de volta. O benefício do Bolsa Família ajudou muito. Todos os meus filhos estão estudando e o meu sonho, agora, é fazer um curso de enfermagem e melhorar minha renda”, disse.
A socióloga Amélia Cohn lembra que o Bolsa Família não faz parte do texto constitucional, por isso, as reservas orçamentárias do programa dependem exclusivamente da vontade do presidente em exercício, o que muitas pessoas consideram preocupante. A necessidade de garantir o Bolsa Família na Constituição voltou à agenda política depois que, em julho deste ano, rumores sobre o cancelamento do programa produziram uma corrida aos terminais eletrônicos da Caixa Econômica Federal. Em um fim de semana, R$ 152 milhões foram sacados. A Polícia Federal e a Caixa Econômica – banco que faz a gestão financeira do programa – foram acionadas para rastrear a origem do boato e possíveis falhas que permitiram os saques antecipados de benefícios, mas até hoje não conseguiram explicar exatamente o que motivou o desespero de mais de 900 mil pessoas.
Fonte: Isto É
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