quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A VERSÃO DOS CONVERSOS


REVISTA CULT




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Caetano Galindo assume a obsessão joyceana das palavras em sua edição brasileira de Ulysses

Omar Rodovalho
Jamais uma tradução se dispôs a seguir tão microscopicamente um texto dessa magnitude e não será exagero dizer que a versão de Ulysses feita por Caetano Galindo e publicada no Brasil pela Penguin/Companhia das Letras instaura um novo grau de atenção às peculiaridades da escrita joyceana: uma espécie de Gifford (o famoso autor, ou talvez coletor, da suma enciclopédica de conhecimentos conhecida por ‘Ulysses’ Annotated: Notes for James Joyce’s ‘Ulysses’ [1988]) para os leitores do português, mas um Gifford que ao invés de explanar recria. Dentre todas as suas versões em línguas neolatinas, pode-se pensar que somente agora a religião fundada por Joyce produziu seu primeiro rebento, o único a assumir a obsessão com as palavras como sine qua non para a consecução da obra. Houve quem se dispusesse a conciliar a scholarship de anos a fio com o fazer tradutório, o caso da edição espanhola de Francisco García Tortosa, mas o primor do texto ficou muito aquém do obtido aqui. E Galindo está tão ciente dos méritos do seu Ulysses que, sem sequer apresentar o excerto original, não pestaneja em exibir sua própria versão ao traduzir as citações que, no ensaio introdutório, Declan Kiberd traz para exemplificar peculiaridades da escrita joyceana.
Os desafios são inúmeros e surgem já nas primeiras páginas, por exemplo ao exigir do tradutor uma posição quanto aos triquestroques de Buck Mulligan com buck (“Sunny and tripping as the buck himself ” [U 1.42] e “Redheaded women buck like goats” [U 1.706]): Galindo é o único a aceitar o desafio em português, embora só o faça no primeiro caso (“Ágil e radiante como um buque de guerra” [98])1. Ainda no tocante aos nomes, o leitor acostumado com o original ficará perplexo ao se deparar não mais com Nosey Flynn, Hoppy Holohan, Bantam Lyons e Blazes Boylan, mas com os saborosos apodos Cheirão Flynn, Deixaqueeuchuto Holohan, Garnizé Lyons e Rojão Boylan, numa ousadia sem precedentes para o leitor da última flor do Lácio (nos demais idiomas, as tentativas ocorreram mais amiúde, como no caso de “Flam Boylan” de Jacques Aubert ou o “Lyons Gallito” de Tortosa). No caso de Blazes, Galindo vai muito além, pois pautou-se por traduzi-lo por Rojão não só nas vezes em que serve de alcunha a Boylan, como também em quase todas as aparições do substantivo em contextos envolvendo Bloom, sendo passível de crítica apenas ao verter “Come on to blazes, said Blazes Boylan, going” [U 11.430] pelo insosso “Vamos comigo, disse Boylan consigo, saindo” [445]. Outro ponto notável das suas experimentações surge ao verter “The ballad of joking Jesus” [U 1.608]: contrariando os caminhos já trilhados pelos demais tradutores e abdicando do JJ que permeia as palavras de Mulligan (“Joseph the joiner, jesuit jibes, jejune jesuit”), Galindo valeu-se dum trocadalho impagável ao propor “A balada do Cristo Ridentor” [118]! Ter em mente ainda a genial solução para os acrósticos “If you see Kay (…) See you in tea” [U 15.1893-6], respondidos à altura por “Se age, há o tio (…) Se use, Ah!, ó tio!” [740], ou então o fato de ser o único a ousar uma versão digna para o intraduzível-por-traduzir A.E.I.O.U. [U 9.213] pensado por Stephen em relação às dívidas que contraiu (“I owe you”, “Eu devo a você”) com George Russel (conhecido como A.E.): “A.E. e/ou eu, ai. Eia” [344].
As redes de repetições foram meticulosamente consideradas por Galindo e é justo dizer que o leitor de sua versão consegue senti-las sem custo. No entan- to, um reparo deve ser feito no que concerne às memórias do Bloom joyceano e do galíndico: embora em ambos a frase que se recorda seja óbvia, no original ela é ipsis litteris, nem sempre o sendo na tradução (estou pensando nalgumas frases da carta de sua amante epistolar Martha, nalgumas passagens do romance levemente pornográfico Sweets of Sin, que Bloom comprou para Molly, nos versos da canção de Boylan que não sairão da cabeça do protagonista, na vacilação entre “R.I.P.: rip” e “R.I.P.: fim” da carta jocosa que o marido de Mrs. Breen recebeu, dentre outros casos mais). Mas, se o trabalho com as teias de repetição é primoroso, não estou tão seguro do acerto no tocante à expansão do léxico. Em Joyce, esses dois impulsos se fundem, se confundem, mesmo no seio duma só palavra (como, por exemplo, no primeiro episódio, a polivalência que Mulligan concede ao slang kip [“aquilo que é agar- rado ou ganho; bordel; pensão; cama”, segundo Gifford], traduzido por Galindo sempre como “michê” – talvez por conta deste envolver tanto o ganho quanto a prostituição, além da associação com “mixe”), gerando efeitos de sentido próprios e demandando do leitor uma atenção especial para com tais movimentos. Pois bem, esse léxico no Ulysses de Joyce vai se avolumando página a página e a ele deve-se em larga medida a existência do ‘Ulysses’ Annotated de Gifford, pois, à medida que essa expansão ocorre, os melhores dicionários já não são bons o bastante para dar conta dum léxico mul- tilíngue que ultrapassa as trinta mil palavras, que flerta com o incognoscível e que incorpora o ruído de maneira exemplar. E enquanto existe a demanda por clareza no original, o texto de Galindo mostra-se ao demais translúcido, exigindo quan- do muito um dicionário excelente e às vezes, por ironia, o próprio Gifford (como ao traduzir “brollies or gumboots” [U 14.1442] por “jeitos e tundas” [659], segundo o comentador “Rhyming slang for ‘breasts or bums [bottoms]”’)! O exemplo máximo dessa submissão à leitura de Gifford pode ser visto no excerto final do episódio “Gado do Sol” [U 14.1440- 1591], quando Joyce submete a narrativa a uma tradução para as mais variadas gírias do inglês: nessa passagem, as explanações de Gifford foram seguidas à risca por Galindo mesmo quando um tanto descabidas e em completo desacordo com o Oxford English Dictionary (como no caso citado acima, brolly – “forma sincopada de umbrella, guarda-chuva” – e gum-boot – “bota feita de goma ou borracha” –, possíveis referências a métodos contraceptivos se considerarmos outras passagens do episódio). Nesse tocante, e a despeito das monstruosidades que fez, a versão de Antonio Houaiss para Ulysses (publicada em 1966, pela Civilização Brasileira) continua a única que buscou devolver um léxico à altura do original, ainda hoje exigindo a figura do comentador para se fazer compreensível, “a versão dos versados” (é, aliás, conhecida a anedota segundo a qual Houaiss, após traduzir o Ulysses, pôs-se a elaborar um dicionário que lhe permitisse a leitura).
Não pense o leitor, entretanto, que essa aparente clareza se deva a um simples desejo de comunicar, como ocorre na facilficação do dificiofícil de Bernardina Pinheiro (publicada pela Objetiva, em 2005), “a versão dos avessos” (a título de exemplo, considerar sua versão ímpar para “Agenbite of inwit. Conscience” [U 1.481-2]: “Remorso de consciência. Consciência” [2005: 18] – o que para o jovem Dedalus era título duma obra medieval e exercício de tradução literal do latim “remorsus” (“re” + “mordere” / again + bite) e “conscientia” (“con” + “scientia” / in + wit), em Bernardina torna-se um mero latinismo de etimologia apagada; como em a “Remorsura do inteleito” [114] de Galindo ou a “Remordida do imosenso” [1966: 18] de Houaiss): Galindo propõe-se a compensar essa amplitude lexical submetendo seu texto a diversos níveis de experimentação com o coloquial (como, por exemplo, o uso exagerado de “-inhos”), o informal (mesclando “você” com “te” nos diálogos), o regionalismo (o gauchismo “na ponta dos cascos” para tiptop), as expressões populares, as gírias, os falares adolescentes (como o “beijandinho” [582] pensado por Bloom). A impressão de clareza dá-se, antes de mais, por conta do português familiaríssimo de que se vale, mas um português que será explorado com mestria e sensibilidade ao longo de toda a tradução, buscando efeitos líricos e irônicos capazes de compensar a supressão léxica.
Além destes aspectos, é importante apontar a bela acolhida que Galindo oferece aos erros, desvios e ruídos que permeiam o original e que, em Joyce, servem para adensar a representação do humano via linguagem: pensamentos incompletos, palavras não ditas, gagueiras, incompreensão, superinterpretação, linguagem corporal, onomatopeias insólitas, tudo está ao dispor de Joyce para expandir o que compreendemos por verossímil e jamais esses distúrbios, tropeços, vacilos foram recriados com tamanha habilidade e atenção – “Sua mão à procura do onde será que eu pus achou no bolso do quadril sabonete loção tenho que ir lá buscar papel tépido grudado. Ah, sabonete aqui!” [336]. A isso vêm juntar-se outros traços marcantes da escrita joyceana, como a abolição do hífen nas palavras compostas (com consequências para a morfologia do português, como se vê no “Senhamor, senterra, senhesposa” [150] que traduz “Loveless, landless, wifeless” [U 3.253] – “Desamorado, despatriado, desesposado” [1966: 49], na versão de Houaiss), o enxugamento radical das vírgulas, a incorporação de vestígios da sintaxe inglesa ou então, ponto extremo de sua tradução, o ensaio sobre a literatura lusobrasileira oferecido em sua recriação do “Gado do Sol”, traços que dentre diversos outros fazem do Ulysses de Galindo um marco não só das traduções joyceanas como de nossa literatura.
Omar Rodovalho é doutorando do Programa de Teoria e História Literária da Unicamp, onde escreve uma tese sobre Joyce

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