“Não vos conformai com o século presente, mas sede transformados pela renovação de vosso pensamento” (Romanos, 12:2)
Gilson Iannini
1 O que pode estar errado com isso?
— A riqueza das oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo equivale à dos três bilhões e meio mais pobres.
— É fantástico. E é uma coisa ótima, porque inspira a todos, dá motivação para olhar para os 1% e dizer “eu quero ser uma dessas pessoas, eu vou lutar muito para chegar ao topo”. [...] O que pode estar errado com isso?
— Sério?
— Sim, sério. Eu celebro o capitalismo.
— Então, alguém que ganha um dólar por dia na África acorda de manhã e diz “eu vou ser Bill Gates”?
— É essa a motivação que todos precisam.
— A única coisa entre eu e essa pessoa é “motivação” [...].
— Eu não sou contra caridade. Veja, não me diga que você quer redistribuir riqueza outra vez. Isso nunca vai acontecer.
Esse diálogo, infelizmente, não é ficcional. Ocorreu entre a repórter Amanda Lang e o investidor Kevin O’Leary, a respeito de um relatório que mostrava que as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo detêm a mesma riqueza que os três bilhões e meio de pessoas mais pobres. Isso mesmo, oitenta e cinco pessoas, que poderiam caber confortavelmente num jantar entre amigos num apartamento de cobertura, possuem o equivalente do que os três bilhões e meio de pessoas, contingente que ocuparia quase a totalidade do território da Ásia. Isso corresponde a dizer que a chance de alguém realizar essa “promessa inspiradora” é de bem menos do que 1%. Na verdade, é algo em torno de uma chance a cada quarenta e quatro milhões de pessoas. Como se uma pessoa num país do tamanho da Espanha pudesse ser extremamente rica, e todas as demais extremamente pobres. O que pode estar errado com isso?
Além disso, segundo o relatório, nos últimos vinte e cinco anos, houve um fenômeno mundial de concentração de renda. “Esse fenômeno global levou a uma situação na qual 1% das famílias do mundo são donas de quase metade (46%) da riqueza do mundo”, concluiu o documento do PNUD. Mas o que nos espanta nesse diálogo surreal é, justamente, o entusiasmo com que o investidor comenta o relatório. Para ele, são notícias fantásticas, inspiradoras, que deveriam motivar os mais pobres a trabalhar duro! A rigor, O’Leary disse apenas uma verdade grotesca, e disse sem véus, sem dissimular nada. Como um bufão. Retirou o verniz de cinismo necessário que, no dia a dia, encobre essa verdade acerca do modo de funcionamento do capitalismo. Quando retirado esse verniz, quando expostas as vísceras, sentimos apenas repulsa. Pois sabemos que o máximo que é permitido segundo essa lógica é que alguém (um em quarenta milhões) consiga furar o bloqueio e entrar para o seleto grupo dos podres de ricos. Mas mudar algo no próprio funcionamento do negócio, isso não, isso nunca vai acontecer. A história acabou, temos que aceitar os fatos. Redistribuir riqueza? Não, eu celebro o capitalismo. O diálogo termina assim:
— Nós estamos falando de pessoas que estão em abjeta extrema pobreza [...].
— Não, não estamos. Estamos falando de pessoas realmente ricas.
Para o investidor, os pobres não existem sequer como fatos de discurso. Não existem nem ao menos simbolicamente. Não por acaso, é plenamente possível saber de cor os nomes dos oitenta e cinco endinheirados, ao passo que os três bilhões e meio são, necessariamente, sem-nome. O máximo que podemos fazer é alguma caridade e contar-lhes histórias inspiradoras.
2 Histórias inspiradoras
Nas antípodas desse cinismo grotesco, o professor de ética prática Peter Singer, em sua palestra “O porquê e o como do altruísmo eficaz” convida-nos a nos valermos de nossa razão a fim de perspectivar o sofrimento do outro e nos engajarmos no que ele chama de “altruísmo eficaz”. Mobilizando nosso altruísmo e compaixão, podemos ajudar, por exemplo, crianças pobres dos países pobres. No entanto, apesar de estarem em extremos opostos quanto ao significado da pobreza e nossa tarefa diante dela, as duas perspectivas, ironicamente, se tocam num ponto: a naturalização da própria lógica que fundamenta tal estado de coisas. O melhor exemplo disso é o conselho de que estudantes desistam da carreira acadêmica e se tornem banqueiros ou trabalhem no mercado financeiro, porque quanto mais rico o indivíduo for, mais caridade poderá fazer. O que esse inspirador exemplo nos mostra é a total cegueira, senão a total impossibilidade de pensar fora da lógica que, justamente, resulta no estado de coisas que pretende remendar. Pois é justamente essa lógica financeira que resulta necessariamente na produção da miséria. Contudo, a má consciência pode dormir tranquila: depois de doar o excedente inútil, a consciência deita no travesseiro reconciliada consigo mesma. Esse é o altruísmo mais efetivo do mundo: reconcilia a consciência narcísica consigo mesma. Minha forma de vida, meu conceito de razão aprofundam a miséria social. Mas não há problema algum, pois minha moral me lembra de doar o excedente, ou até mesmo um tanto mais do que o excedente. No fundo, a lógica que inspira esse pensamento não é ainda pensamento, mas apenas justificação conceitual de uma forma de vida historicamente determinada. Uma forma de vida cuja lógica produz miséria e exporta pobreza. Nesse sentido, o altruísmo eficaz é um exemplo perfeito de um pensamento afásico e, no limite, conivente. Um pensamento piedoso e benevolente, i.e., culpado. Incapaz de interrogar seus próprios pressupostos, naturaliza formas de vida contingentes; impossibilitado de interrogar o próprio conceito central, o conceito de razão, naturaliza a razão instrumental calcada no individualismo, sem se dar conta de que é essa própria razão que é responsável pelo crime que sua consciência infeliz tenta expiar através da caridade. Em termos lacanianos, tal perspectiva solda o real à realidade.
Não restam dúvidas de que ações altruístas como essas devem ser aplaudidas e incentivadas. Mas elas pertencem ao domínio da ética. Não são ainda políticas. Não são ainda capazes de engendrar políticas públicas para fazer face àquele estado de coisas. Remendar os efeitos insuportáveis da desigualdade seria tarefa dos indivíduos, não do Estado ou da sociedade. Quando a moral serve para tampar o furo da política perdemos a capacidade de pensar, capitulamos diante do peso do já existente. Incapaz de interrogar sua própria ideia de razão, a filosofia se torna religião. Ou seu nome no mercado das palestras: motivação. Diante do conselho de Singer não há como não lembrar Brecht: o que significa roubar um banco, comparado a fundar um?
3 Fúria e economia
Certa feita, a filósofa Hannah Arendt escreveu: “A fúria não é de modo nenhum uma reação automática diante da miséria e do sofrimento em si mesmos; ninguém se enfurece com uma doença incurável ou um tremor de terra, ou com condições sociais que pareçam impossíveis de modificar. A fúria irrompe somente quando há boas razões para crer que tais condições poderiam ser mudadas e não o são”. Por essas razões, o maior desafio do sistema capitalista global é justamente o de naturalizar a crença de que é impossível modificar nosso sistema social, é nos fazer crer na naturalidade de nossas relações sociais. A única maneira de evitar a revolta dos segregados é envolvê-los nessa crença da inexorabilidade das condições sociais e econômicas. Para funcionar bem, a máquina precisa encobrir suas engrenagens. O véu cínico é absolutamente necessário para gerir os afetos sociais. A democracia liberal funciona como um desses sete véus. Histórias pessoais de sucesso, do tipo “comecei do zero e cheguei ao topo”, servem como um cimento imaginário que esconde as fraturas. O problema é que inclusão social massiva, quando ocorre, sugere que a doença não é tão incurável assim.
Mas como funciona essa inculcação sistemática da crença de que o estágio atual do capitalismo é um fato fechado em si mesmo e que a sociedade e a história devem se curvar a isso? As estratégias são muitas: a própria reprodução material de uma forma de vida esculpida para esses fins, com seus sonhos de consumo, de sucesso individual, de aquisição de bens. Tais desejos são esquematizados na indústria cultural do sucesso, incluindo aí o culto à personalidade, impregnado na verdadeira religião das celebridades, suas ilhas caras e suas carreiras. Contudo, uma das estratégias mais eficazes raramente é lembrada: trata-se da naturalização da linguagem econômica.
Acostumamo-nos a medir a política pela economia. Fomos habituados a escutar e falar em economês: “o Mercado está apreensivo com as eleições”. Bingo. Quem é o mercado? Alguém já fez essa simples questão? Essa entidade metafísica pós-moderna a que chamamos de mercado parece ser um vetor de humores extremamente voláteis: falamos em temor, apreensão, confiança, pessimismo, credibilidade, etc. Uma certa economia, e mais ainda o jornalismo econômico, é, na verdade, o prolongamento de uma psicologia mal fundada (com suas teorias dos jogos, da escolha racional etc.), que não consegue esconder seu viés ideológico debaixo da camada científica de modelos matemáticos e de estatísticas. O mercado, essa entidade metafísica, nem é tão metafísico assim: metade de seu capital pertence a pouco mais de algumas dúzias de investidores e seus grupos, todos de carne e osso, com fotos sorridentes nas listas da Forbes. Parte do jornalismo é, no melhor dos casos, um psico-economês pseudo-científico.
Em nosso jornalismo, não há lugar para a política. De um lado, a política é reduzida à economia. De outro lado, é judicializado, transformado numa novela, com seus maniqueísmos grotescos, seus mocinhos e bandidos, como mostrou Ivana Bentes recentemente. O paradigma dos programas de polícia vigora no noticiário político. Nos dois casos, estamos diante de uma espécie de corrupção da política pela antipolítica.
Há alguns meses, um programa televisivo resolveu debater um tema importante, a polarização do debate “esquerda x direita” na política nacional. Para falar de “esquerda x direita”, W. Waack escalou L.F. Pondé, B. Lamounier e R. Azevedo! O equivalente de assistir a um Fla-Flu em que o juiz, o narrador e o comentarista estão todos de um lado só. Entre outras pérolas, eles diziam que não havia nada como uma “guinada direitista da midia”. Ao contrário, completavam, “a midia é toda de esquerda”! Só se esqueceram de olhar para si mesmos: a própria forma do programa comprovava o inverso do que eles diziam. Tecnicamente, isso se chama “contradição performativa” – ou seja, quando minha forma de dizer prova o contrário do que digo.
O resultado disso é que a média da população brasileira, inclusive aquela que se orgulha de seu bom nível de escolaridade, simplesmente desconhece que existe pensamento político de esquerda. E que existe um pensamento sofisticado, posterior à queda do muro de Berlim. Um pensamento que embasa políticas sociais em vários países democráticos ou que serve de contraponto ao discurso hegemônico das democracias liberais como realização máxima da justiça possível. Não por acaso, qualquer “crítica ao capitalismo” é rapidamente sugada para o buraco negro dos exemplos de fracasso de ditaduras comunistas: “vai pra Cuba”, “bom é na Coréia do Norte”, ouvimos recentemente nas patéticas manifestações contra os resultados das eleições brasileiras. Como escutamos de alguns sábios jornalistas, gestores do medo e do ódio: “estão querendo implantar uma espécie de bolivarianismo tropical!”.
Uma nova política necessariamente passa pela distinção entre ato e potência, como bem mostra Agamben. Nenhuma forma de justiça efetivamente existente no presente ou já experimentada no passado pode nos dar a figura de uma sociedade justa. Ideais normativos de justiça já realizados não podem ser tomados como critérios definitivos de validade de um pensamento político renovador, pois isso equivaleria a renunciar à possibilidade de criticar nossa forma de vida contingente, como se vivêssemos na realização máxima da justiça social. Ali onde o pensamento se conforma ao positivamente dado, eliminando a historicidade do existente, retiramos aquilo que é mais caro ao pensamento: ultrapassar coordenadas efetivamente dadas. Nossas democracias liberais querem fazer crer que o real e o possível são equivalentes. Trata-se de uma redução do real à imagem. Um efeito colateral disso é que ali onde não há pensamento, tudo o que temos são imagens, com seus véus. Ora, não nos ensina Lacan que a colonização do real pelas imagens é a fonte da agressividade especular?
4 Quem disse “corrupção”?
Para concluir, não poderia deixar de dizer uma palavra sobre a corrupção. A corrupção é um problema muito mais grave do que parece. E a solução, muito mais difícil. Não é um problema de um ou outro partido. É endêmico. Não é um problema exclusivo da classe política, está enraizado em nosso jeito de levar vantagem em tudo, e isso nivela o porteiro do prédio ao empresário que mora na cobertura. A única maneira de realmente enfrentar o problema da corrupção é reconhecer sua gravidade. Reconhecer que ele envolve não apenas o Estado e a classe política, mas parte considerável do sistema financeiro e do empresariado, assim como o cidadão comum, com diferença apenas de escala, não de natureza. A tentativa de amalgamar a ameaça em apenas um culpado é, na verdade, uma tentativa de encobrir o funcionamento podre de toda a máquina, dos indivíduos ao Estado, passando pelo mercado, há muitas e muitas décadas.
A ideia de que tirar este ou aquele partido do poder seria uma maneira de combater a corrupção é, na verdade, uma tentativa de deixar tudo como está, trocando apenas as peças, sem mexer nas engrenagens.
Gilson Iannini é psicanalista, Doutor em Filosofia e Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
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