quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

PENSAMENTOS Á ESPERA

REVISTA CULT


Novo livro psicanalista e ensaísta Tales Ab’Sáber apresenta modo inusitado de pensar a cultura.

Renato Tardivo
O psicanalista e ensaísta Tales Ab’Sáber
Ensaio, fragmento – 205 apontamentos de um ano (Editora 34), livro recém-lançado do psicanalista e ensaísta Tales Ab’Sáber, apresenta um modo inusitado de pensar a cultura. Conforme indicação do título, a obra extrapola as fronteiras de gênero, e é justamente esse o seu mérito: reunir forma ousada e conteúdo polêmico.
Para começo de conversa, é bom alertar, não se trata da aplicação de conceitos da psicanálise a questões culturais ou históricas. Com efeito, trata-se de ideias pensadas por um psicanalista, mas o interesse do autor neste trabalho não é propriamente a psicanálise. Qual o interesse então? Poderia dizer: a influência de José de Alencar cronista no Machado de Assis ficcionista, a obra de Caetano Veloso, o lulismo, o mundo contemporâneo. E é isso tudo, mas não só. Por meio de argumentações originais, constatações sensíveis e erudição histórica, o invisível do livro alude aos mecanismos de construção das próprias teses que defende.
Os 205 apontamentos são separados por espaçamentos entre os parágrafos – não há divisão em capítulos. Há temas que retornam, sendo construídos, portanto, em alternância uns com os outros e consigo mesmos. Tudo aqui se entrelaça. Algo próximo à espinha dorsal do livro (não se pode falar propriamente em espinha dorsal por conta da fragmentação) talvez seja a tese de que a obra madura de Machado de Assis, a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas, foi influenciada pelas crônicas de José de Alencar, mais exatamente as reunidas no livro Ao correr da pena (Tales analisa uma delas, incluída como anexo deste Ensaio, fragmento). A propósito, já no fim do livro, escreve o autor:
“Por fim: Machado de Assis pode ter lido Ao correr da pena e ter sido influenciado conscientemente pela forma de apresentação e ocupação do espaço literário e público do jovem José de Alencar, que tem vínculos íntimos com a sua obra-prima [Memórias póstumas de Brás Cubas]. Ou pode ter chegado sozinho, de modo inconsciente, pela pesquisa, observação e avaliação do tempo, àquela mesma forma, que para além de todo o radical talento e habilidade do escritor, também existia concretamente lá, em seu mundo. Este segundo caso é ainda mais interessante.”

O mergulho na obra desses dois escritores – e na de outros – que viveram e pensaram o Brasil em diferentes períodos vai desordenadamente – como é próprio aos processos históricos – preparando terreno para a reconstrução de elementos da história do país, desconstruindo o discurso hegemônico. Nessa medida, por exemplo, a leitura da poética de Caetano Veloso (“nosso Goethe?”), tomada em seu “lirismo dialético”, é extremamente inventiva.
Mas, além das argumentações mais extensas, que se aproximam da forma ensaio, os 205 apontamentos também incluem observações incisivas, condensadas e poéticas: aforismos, microcrônicas, fragmentos do cotidiano, flashes de pensamento. Conquanto presentes ao longo de todo o livro, é no início e no fim que os parágrafos curtos mais aparecem. Alguns casos:
“Lula é realmente a liderança que o Brasil merece. Muito melhor que tudo à sua direita e irrelevante do ponto de vista da esquerda”; “Se concentra no seu silêncio. Intensifica a vergonha de ser humano. E anda pela rua”; “E a felicidade explícita dos pobres?”; “De um paciente: ‘Dá para ver nos seus olhos o quanto eu estou triste’”; “E a felicidade obscena dos ricos?”; “A lei deve ser cumprida. Ou comprada?”; “Viajamos para lembrar o que de melhor se chegou a realizar em algum outro mundo e que na experiência histórica no nosso foi esquecido”.
A viagem a que se refere o autor nesse último fragmento citado talvez diga algo a respeito da viagem que ele próprio empreende neste livro: parte do presente, investiga o passado e retorna ao presente. O presente do Facebook, da música de Criolo, da possibilidade sempre próxima de colapso econômico e político, das mesmas novidades… As marcas e inscrições do livro desvelam, ainda que indiretamente, o processo de sua própria construção: os pensamentos à espera de ser pensados, à espera do “estranho afeto, o duplo encontrado”. Afinal, “na hora da perda de si mesmo no morto surgem palavras que nunca foram ditas”. Mas que já estavam lá.

Ensaio, fragmento
205 apontamentos de um anoTales Ab’SáberEditora 34144 pags. – R$34

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