segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

SOBRE A LÓGICA DA REPRESENTAÇÃO RACISTA E A ISLAMOFOBIA


BLOG DO NEGRO BELCHIOR O ARTIGO É DA EDUCADORA, MILITANTE ANTIRRACISTA E MESTRA EM LITERATURA PELA USP


 


Por Douglas Belchior

A grande imprensa brasileira tem cumprido o papel de reprodução do discurso oficial acerca dos recentes atentatos ocorridos na França. O debate focado na ideia de “liberdade de expressão” e das barbaridades promovidas pelos chamados “grupos terroristas” é a interpretação hegemônica para o assunto. Sou pela vida. Não defendo o uso da violência gratuita, menos ainda aquela que leva à morte de pessoas. Mas, talvez, a comoção pelas mortes tenha ofuscado um elemento importante e caro a essa história toda: grande parte do conteúdo das publicações da revista Charlie Hebdo era e são ofensivos e racistas sim! Adriana de Cássia Moreira, educadora, militante antirracista e mestre em literatura pela USP nos ajuda nessa reflexão.

Charlie
Sobre a lógica da representação racista e a islamofobia


Por Adriana de Cássia Moreira

A ideia de raça que organiza o entendimento do que é o racismo se estabelece a partir de uma constante social, não biológica, que relaciona determinados traços fenotípicos a uma expectativa de desenvolvimento cognitivo e de comportamento social determinando, dessa maneira, tanto o lugar dos grupos sociais na estrutura quanto a expectativa que as pessoas tem em relação a esses grupos.

Sendo assim, quando aqui no Brasil, em especial em São Paulo, identifica-se as pessoas que tem um determinado padrão de crânio como “nortista” ou “baianão” e à elas se associa um expectativa de padrão cognitivo e de comportamento social observamos, então, a expressão de uma das variantes do racismo – entendido enquanto uma ideologia que tem como uma de suas finalidades a manutenção do status quo – faz-se, assim, a raça dos “nortistas” ou dos “baianões”.

Para se combater esse fenômeno de desumanização que é o racismo não se pode usar das mesmas estratégias racistas, isto é, da mesma lógica estrutural que organiza o pensamento racista. Isto posto, cabe agora duas observações fundamentais sobre os fatos recentes na França:

a) Ainda que a intenção dos cartunistas da revista Charlie Hebdo tenha sido a de combater o racismo deflagrado pelos grupos conservadores franceses ao comparar a ministra da Justiça, Christiane Taubira, a um macaco – um referencial racista – não consta que esses grupos tenham realizado desenhos, cartuns ou imagens dessa comparação. Sendo assim, o primeiro a produzir essa, no mínimo, deselegante imagem, ofereceu arma para o inimigo. Pode-se também apresentar o argumento de que essa charge vale-se da estratégia da ironia para expressar uma ideia antirracista, entretanto, a imagem deveria falar por si mesma, não poderia dar margem para outros tipos de interpretações. Se ao observar a imagem é possível uma interpretação racista a empreita do cartunista fora, neste aspecto, mal sucedida. Ocorre também outras duas questões: alguém perguntou para a ministra como ela se sentiu ao se ver desenhada como um macaco? E à coletividade dos homens e mulheres negros que historicamente tem a sua imagem associada ao macaco, à eles e elas foi perguntado como se sentiriam ao se ver representados por um macaco? Devo dizer que, sendo uma mulher negra não me sinto confortável com essa associação, muito menos com essa imagem, mesmo que, a princípio, a ideia tenha sido de combate ao racismo. Se a intenção foi antirracista a execução da ideia não rompe com a lógica racista da representação.

b) E quanto à manipulação das representações da imagem das pessoas praticantes do Islã e de Maomé, alguém já perguntou aos muçulmanos como se sentem ao se verem associados ao fundamentalismo religioso e ao terrorismo? Quando não se leva em consideração que ¼ das pessoas no mundo praticam Islã e parcela diminuta dessa população aprova, apoia ou pratica atos terroristas, opera-se em uma lógica racista, isto é, associa-se os praticantes de uma religião à um padrão de desenvolvimento cognitivo e comportamento social e determina-se o lugar social que essas pessoas devem ocupar. Desse modo, pode-se dizer, se organiza a racialização dos muçulmanos.

Com relativa frequência o Islã e, por consequência, seus adeptos, são desrespeitados pela revista Charlie Hebdo. Uma maneira de ser e estar no mundo que também é muçulmana, mas não única, é tomada como representação de todos os praticantes do islã pela revista Charlie Hebdo. Daí é possível concluir que a revista pratica o racismo e fortalece a Islâmofobia. Como será que se sente uma pessoa muçulmana, que não apoia os atos terroristas e que sabe que o profeta Maomé jamais deveria ser desenhado ao ver a charge do profeta em situação jocosa? Como será que se sente uma pessoa muçulmana que não apoia os atos terroristas ao ver sua imagem atrelada a atos de tamanha barbárie? Nunca se pode perder de vista que nem todo muçulmano é terrorista.

Isto posto, caso seja fato que a revista Charlie Hebdo tivesse como uma de suas pautas o combate ao racismo, falhava no momento em que não rompia com a lógica de manipulação das representações e construía estereótipos raciais, colocando-se assim como um veículo de comunicação que, no limite, fortalecia a islamofobia.

E isso nos traz uma consideração fundamental para os interessados em combater as desigualdades raciais e o racismo: há que se estar sempre alerta pois fugir à regra da cognição racista é tarefa das mais difíceis que já se viu, portanto, das poucas coisas que se pode afirmar categoricamente é que o fato de uma pessoa ou uma instituição colocar-se em posição de parceria e luta pela garantia dos direitos civis não faz com que essa mesma pessoa ou instituição tenha licença para usar de expediente racista, machista, homofóbico e para qualquer que seja a finalidade.

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