Enquanto ainda se discutem os significados dos protestos dos dias 13 e 15 de março, movimentos e segmentos sociais que apoiaram a reeleição de Dilma Rousseff lutam para que o governo tome um rumo distinto do sugerido neste início de segundo mandato
Por Vinicius Gomes | Foto: Renato Stockler
Na última sexta-feira (13), os gritos eram pela reforma política, contra a perda dos direitos trabalhistas e em defesa da Petrobras. Dois depois, centenas de milhares em algumas das principais cidades brasileiras bradavam contra a corrupção, pelo impeachment da atual presidente do país e muitos defendendo uma nova intervenção militar no país – estes estavam longe de ser a maioria, mas não eram tão insignificantes como muitos querem fazer crer. Por fim, ambos episódios mostraram que, quatro meses e meio depois das eleições, parte da sociedade parece continuar com o clima de acirramento que caracterizou a disputa presidencial de 2014.
Um dos pontos-chave sugerindo a validade da tese do terceiro turno no país é o estado de São Paulo. Na esteira da polêmica sobre o “um milhão de pessoas na Avenida Paulista”, número calculado pela Polícia Militar paulista, o Datafolha divulgou que 82% das 210 mil pessoas que o instituto estima terem passado pelo local disseram ter votado em Aécio Neves no segundo turno das eleições do ano passado. No dia 13, 71% afirmaram ter votado em Dilma Rousseff. Porém, a principal motivação de ambas manifestações, e a consequente resposta do governo federal são os fatos mais sugestivos. A defesa dos direitos trabalhistas (25%) e o protesto contra a corrupção (47%) foram as bandeiras principais nos dias 13 e 15, respectivamente. Dilma Rousseff, na segunda-feira (16), confirmou a criação de um “pacote contra a corrupção” e voltou defender a política econômica do governo e as medidas de austeridade.
Estaria o governo ouvindo apenas o dia 15 e negligenciando a demanda da parcela fundamental que a reelegeu em outubro passado? E, se assim o for, a ideologia da classe média, majoritária no dia 15, poderá ser abraçada pelas classes mais baixas e as que ascenderam nos últimos anos, principalmente durante a gestão de L
As motivações do 15M brasileiro
A primeira vez que cunharam um movimento com a denominação “15M” – referência à data 15 de março – foi na Espanha, em maio de 2011, quando as ruas de diversas cidades espanholas foram tomadas por cidadãos descontentes com a política neoliberal adotada pelo governo do PSOE (Partido Socialista dos Trabalhadores da Espanha, sigla em espanhol), originalmente de centro-esquerda, jogando o país em uma enorme recessão econômica e caos social. Das ruas tomadas no 15M, surgiu o partido Podemos, uma sigla à esquerda. Assim sendo, qualquer semelhança entre os “15M” espanhol e brasileiro é, de fato, mera coincidência.
De acordo com o Datafolha, além da corrupção, as principais motivações dos manifestantes paulistanos no último domingo foram o impeachment de Dilma (27%), protestar contra o PT (20%) e contra os políticos em geral (14%). Todavia, os dados mais interessantes residem no perfil dos manifestantes: 74% participavam de um protesto pela primeira vez na vida e 41% declararam ter renda familiar de mais de 10 salários-mínimos.
Diante da questão se de fato era apenas a classe média protestando ou se a insatisfação deste segmento já chegava até outros extratos econômicos, o sociólogo Rudá Ricci afirma que a ideologia da classe média, especialmente a paulista, se espraia, mas ainda se concentra em quem votou em Aécio. “A crise econômica piorada pela recessão do pacote de Dilma Rousseff ainda está fazendo suas vítimas. O caldo pode engrossar, mas pelos dados de perfil dos manifestantes ainda não engrossou”, diz.
Para Francisco Fonseca, cientista político e professor na Fundação Getúlio Vargas e na Pontifícia Universidade Católica, ambas de São Paulo, os manifestantes do domingo tinha um perfil claramente conservador, alguns sendo de extrema-direita, membros de uma classe média constituída em grande parte por profissionais liberais. Porém, para ele, a maior marca da manifestação era o baixo grau de politização daqueles que foram às ruas. “As pessoas do dia 15 têm, de modo geral, um perfil individualista, despolitizado e com uma visão de política bastante primária, tanto que mais de 70% dos que estavam lá [na Avenida Paulista] iam pela primeira vez na vida a uma manifestação e com uma pauta extremamente ampla e sem um objetivo específico”, afirma Fonseca.
O cientista político dá como exemplo a pauta do combate à corrupção no atual sistema político, discutida de forma a não se combater suas causas, em especial o financiamento privado de campanha. “Os próprios organizadores são outsiders da vida política brasileira, não têm visão do que é política” argumenta. Todavia, Fonseca alerta para os “inocentes úteis” das chamadas “classes médias ascendentes”, cujo papel das políticas governamentais como o ProUni, a valorização do salário-mínimo, a ampliação e consolidação do mercado interno, a extensão do crédito (produtivo e ao consumidor) é crucial para sua ascensão.
Esses grupos, genericamente chamados de “classe C”, tendem a reproduzir o discurso de valorização do mérito individual, esquecendo-se que sua ascensão é resultante da vontade política, consolidada em políticas públicas. Daí deriva o perigo do discurso das classes médias tradicionais e das elites se “popularizarem”, invertendo o que Fonseca considera como tendência reformista incremental de centro-esquerda representada – embora de forma bastante contraditória – pelo petismo, em prol do conservadorismo de uma “nova direita”.
Segundo Gilberto Maringoni, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e ex-candidato ao governo paulista pelo Psol, a direita está atingindo sucesso em hegemonizar um descontentamento difuso com o governo federal e a culpa seria do próprio governo. “As pesquisas indicam que a classe média foi majoritária nos atos de domingo. Mas esse setor só ganhou musculatura porque a piora das condições de vida se generaliza”, afirma. Ele sugere que a série de medidas tomadas após a reeleição, principalmente a elevação dos juros e o ajuste fiscal, podem minar a esquerda de uma forma geral. “A percepção de que a vida piorou e vai piorar começa a transformar a decepção em raiva. Para a maioria, a esquerda é responsável pela situação, pois, em tese, quem governa é um partido de esquerda. Quem ganha força é a direita golpista.”
As redes e a mídia
O papel da mídia tradicional na cobertura dos protestos de domingo foi contestado por muitos. Em uma atitude incomum, a Folha de S.Paulo, por exemplo, deu o “serviço” dos protestos do dia 15, orientando seus leitores. Mas as principais críticas recaíram sobre a Rede Globo e seu canal de TV fechada, a Globo News.
Rodrigo Vianna, autor do blogue O Escrevinhador, detalhou o modus operandi da emissora. “A tática foi muito clara: de manhã, manifestações fracas Brasil afora (com exceção de Belo Horizonte e Brasília) serviram pra Globo fazer o 'esquenta' para a tarde. O que interessava era um “show” na tela, pra animar a paulistada a sair de casa. O Esporte Espetacular da Globo era interrompido a cada dez minutos para 'giros de repórteres', descreve. “A Globo é o centro do golpe. Põe gente nas ruas, sim – especialmente em São Paulo, Brasília. No Rio, põe menos. A Globo tem força, mas o #globogolpista e o #famíliaMarinhonoHSBC comandando as redes sociais mostram que a direita não vai dar um passeio.”
Na opinião de Fonseca, o desserviço à democracia que o aparato de emissoras de rádio e televisão – que sãoo concessões públicas, nunca é demais relembrar – e os grandes jornais e revistas fizeram e fazem ao país é elemento crucial para a constituição da visão despolitizada de parte dos manifestantes. Assim, o “interesse de classe”, que motiva defesa de privilégios, se manifesta junto com a despolitização generalizante, na incapacidade de reflexão (senso comum) e na insolidariedade social. O cientista político cunhou os manifestantes como “filhos da midia”. “Apesar do processo organizacional ter sido realizado por alguns outsiders (Movimento Brasil Livre e Revoltados Online), as manifestações de domingo foram conclamadas, infladas e coordenadas pelos grandes meios privados de comunicação, principalmente o Sistema Globo de Comunicação”, pontua Fonseca.
“A mídia tradicional pertence à classe dominante. Não há nada de novo em seu comportamento: ela não apenas apoia, como convoca as manifestações”, alfineta Maringoni. Entretanto, assim como ocorreu durante a corrida presidencial em 2014, as redes sociais têm sido a principal ferramenta desses outsiders, que servem tanto para a direita, quanto para a esquerda.Um dos principais nomes no mapeamento de redes sociais é o professor Fábio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo. Ele criou uma fanpage que, durante três meses, curtia apenas páginas associadas à crítica política conservadora. Em seguida, usando o Netvizz (plugin do Facebook), solicitou que o sistema identificasse, em cada uma dessas fanpages, quem elas seguiam. O resultado é o mapa abaixo.
A construção de uma saída
“A ideia de que você vai enfrentar o golpismo ficando calado, para assim preservar o governo, é uma ideia cega, é uma ideia burra”, sacramenta Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). O MTST colocou milhares de pessoas de volta à rua na terça-feira (17) para enviar seu recado de que as ruas serão disputadas com a direita, mas sem deixa de criticar o governo federal.
De acordo com Boulos, o governo Dilma, desde que assumiu o novo mandato em janeiro, tem dado todos os sinais de diálogo para a direita, para a elite e os setores mais privilegiados. “O governo está fazendo um ajuste fiscal antipopular, compôs um ministério ligado à direita tradicional, aumentando os juros, colocou um banqueiro no Ministério da Fazenda, ou seja, o governo dá todos os sinais para a direita, buscando um pacto com esse setor, na expectativa de domar esses setores insatisfeitos – e nem isso consegue”, argumenta Boulos. “O que tem conseguido é afastar o governo de uma base popular, que inclusive foi a base que o elegeu, sem conseguir pacificar a direita e o golpismo”.
O sociólogo Ricci afirma que a esquerda se enfraqueceu por ser governista. “A esquerda não se confunde com governos ou se torna populista, como ocorre em tantos países latino-americanos”, afirma o sociólogo. “A saída para a crise não é o ajuste [fiscal], e sim encampar um programa de reformas populares no Brasil. O ajuste tem que ser do outro lado, falar em ajuste deveria ser falar em taxação das grandes fortunas, de reforma tributária, a auditoria da dívida pública”, afirma Boulos, que, ecoando Fonseca, diz que a reforma política, em especial o financiamento privado de campanha, tem de se tornar pautas a fim de oferecer uma resposta à insatisfação popular. “É fundamental fazer um enfrentamento com essa direita golpista e reacionária que tem tomado as ruas. Não podemos ter um milímetro de tolerância com o golpismo”, conclui Boulos.
Para Fonseca, é possível realizar alguns ajustes, por conta da conjuntura econômica mundial desde 2008, que de fato são necessários, mas sem mexer em determinadas agendas e sem ser fiscalista. “Pode-se fazer alguns ajustes, como por exemplo, diminuir subsídio, mas não se precisa – e nem se pode, a meu ver, reduzir direitos sociais trabalhistas. Pode-se diminuir o crédito para a compra de automóvel, mas não diminuir o seguro-desemprego”, exemplifica.
Quem talvez possa ter resumido o espírito que reina em parte da esquerda que apoiou a reeleição de Dilma foi o líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, em evento realizado hoje no Rio Grande do Sul. Na presença da presidenta, ele foi assertivo. “Os ministros da senhora têm que ser mais humildes. Humilde para ouvir o povo, para saber quais são as propostas. Se o orçamento tem problema, por que o 'seu Levy' não vem discutir conosco?”, questionou. “Quem tem que pagar a conta não são os trabalhadores. São os ricos e os milionários”, disse.
Enquanto a pergunta se a direita continuará mobilizada e tomando as ruas permanece sem resposta, a maior certeza, por enquanto, é que o governo Dilma precisa se fortalecer urgentemente, sendo necessário olhar menos para o dia 15 e mais para aqueles do dia 13 – os mesmos que fizeram a estreita diferença no segundo turno de 2014 e que pode ser sua única base de sustentação frente aos inevitáveis ataques que sofrerá até o final de seu mandato. A próxima manifestação contra o governo está marcada para 12 de abril, mas entre embates do Executivo e do Legislativo, as concessões públicas de televisão e os jornais tradicionais convocando a população às ruas e uma base de eleitores divididos entre defender a democracia e um governo cujas políticas atuais não lhe agradam, todos os sinais parecem apontar que a saída é uma nova guinada – assim como aconteceu após o primeiro turno – para a esquerda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário