segunda-feira, 30 de março de 2015

UM NOVO MUNDO EM PALAVRAS

Um novo mundo em palavras



Aluna mais velha da rede pública a se alfabetizar, Dona Mocinha busca ressignificar a vida pelas palavras. Aos 94 anos, ela é inspiração para outros alunos da EJA

João Paulo Freitasjoaopaulodefreitas@opovo.com.br

O colégio é um lugar que eu gosto de estar, porque eu sei que vou aprender e isso pra mim é o que me motiva


Os santos em miniatura há tempos dividem o espaço da escrivaninha do quarto com livros, cadernos e lápis. O que antes era “tristeza de viver sozinha”, deu lugar a uma rotina de estudos e leitura para dona Mocinha. Há quatro anos ela encontrou na educação um ressignificado para a vida. Quem tiver uma audição apurada e passar por perto da casa dela, no bairro Parangaba, é capaz de ouvir a voz acanhada soletrando letras e completando as palavras.


Maria das Dores de Sousa tem 94 anos e é a aluna mais velha da rede pública de ensino de Fortaleza a se alfabetizar, segundo a Secretaria Municipal de Educação. O sonho de escrever o próprio nome só veio a ser concretizado após quase um século de vida, e mesmo diante das dificuldades que a idade impõe, ela já se mostra realizada com os resultados. “Para muita gente que tem estudo escrever o próprio nome pode não significar nada, mas pra mim é tudo”, revela.


Mas, escrever o próprio nome não foi o bastante. A senhora recorta palavras e imagens de revistas, constrói histórias. Brinca com os números e descobre que pode somar as contas das compras do supermercado. Atualmente, dona Mocinha está no nível 3 da Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Escola Municipal Raimundo Soares de Souza, que fica próxima a sua residência.
Quando o relógio marca 18h30, ela prepara a mochila com o material e vai para a aula. As dores no joelho direito não são motivo para faltas. “Vivo muito cansada, mas toda a minha vida foi de muito esforço. O colégio é um lugar que eu gosto de estar, porque eu sei que vou aprender e isso pra mim é o que me motiva”, decide.

Autonomia
Dona Mocinha mora sozinha desde quando o seu único filho foi embora para Juazeiro do Norte, há mais de 30 anos. Ela ressalta que a educação sempre foi prioridade e que transferia para ele o sonho que durante toda a vida lhe foi castrado. “Tinha vezes que ele ficava fazendo corpo mole pra estudar. Eu pegava ele pelo braço e jogava na cadeira, daí ficava pastorando ele fazer a tarefa”. Valeu à pena. José Calixto de Sousa, 56, formou-se em Produção Civil pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE).


Dona Mocinha é aposentada e recebe um salário mínimo. Para ganhar um dinheiro extra, precisa lavar roupa por encomenda. A força para trabalhar remete a um passado que viveu em Quixadá, sua cidade natal. “Desde menina eu tinha que trabalhar e isso era o suficiente pro meu pai. Minha mãe vivia doente e não podia empatar quando o meu irmão me surrava, nem quando meu pai me dava puxões de orelha se me visse tentando ler um livro. Cresci sabendo que o trabalho era mais importante que a educação”.


A autonomia veio quando decidiu fugir de casa, aos 25 anos, rumo à Capital. Suas únicas profissões em Fortaleza foram como empregada doméstica e lavadeira. “Quando eu tentava estudar nunca dava certo, porque não tinha quem me sustentasse, por isso trabalhava o dia inteiro e nunca dava pra ir à escola”. Após engravidar, a dedicação ao lar foi redobrada e devido aos problemas no relacionamento preferiu viver só com o filho.


Orgulhoso da mãe, Calixto lembra que um dos maiores sonhos de Dona Mocinha era vê-lo formado. “Ela sempre dizia que estava me dando o que não havia recebido quando jovem e eu guardei isso pra mim e fui atrás dos meus objetivos”. É uma satisfação para ele ver que a mãe nunca desistiu de um desejo antigo. “Queria muito que ela viesse morar comigo aqui no Cariri, mas sei que ela ainda tem o sonho de terminar esse curso. Eu acredito nela, pois é muito autônoma”.

Inspiração
A rotina de estudo para Diana Paula Lima, 29, sempre esteve associada à evasão escolar. A depressão acompanhou a adolescência e o início da fase adulta, e todas as tentativas de retorno à escola foram frustradas pela doença. Já recuperada, aos 25 anos, decidiu voltar aos estudos e é dona Mocinha quem dá força para que continue estudando. “Quando eu pensava em desistir novamente, ela me aconselhava a persistir e acreditar na educação”.

Atualmente Diana está no quinto e último nível da EJA e se forma no fim deste ano.


A paixão pelas letras é uma herança que Daniel Cisne, 22, recebeu dos pais. Ele estuda na mesma turma que dona Mocinha e o afeto pela senhora foi demonstrado num poema que fez como presente de aniversário para ela. “És Maria sem dores, cultivadora de flores de todas as cores, para distribuir com seus amores”, diz a poesia. Apesar de todas as dificuldades para se alfabetizar, é com dona Mocinha que o jovem compartilha a vitória de
continuar estudando.


Acompanhar a formação de alunos adultos e tornar a aula atrativa é um esforço diário para a professora Joice Garcia. “Como a dona Mocinha começou a estudar já idosa é fundamental ter mais calma, mais cuidado. Ela é bastante atenta e, apesar das dificuldades que tem para aprender, nos dá retornos positivos de sua aprendizagem”. Segundo Joice, existe uma singularidade que a distingue dos outros, “pois ela entende a alfabetização de uma forma pura, que possibilita a integração social, o companheirismo, sem competições. Deparar -me com essa visão é muito inspirador pra mim”, conclui.


As seis netas da idosa já são adultas e estudadas, mas sempre que as vê, dona Mocinha mostra o seu talento e sai lendo tudo o que está a sua frente.

Há ainda quem ousa desconfiar do seu esforço, e para essas pessoas, ela retruca com altivez. “Um dia uma mulher me disse que não adiantava mais estudar, pois eu já estava perto de morrer. Ela nem sabe, mas eu já nem uso mais a digital do dedo, já assinei até meu nome quando votei nas ultimas eleições”, declara empolgada.
“Eu respondi que ainda ia viver muito”.

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