Se em vários lugares a inclinação sexual pode ser punida com a morte, em outros o direito de escolher a identidade de gênero se conquista na primeira infância, abrindo todo um novo campo de desafios
Enquanto em vários lugares do planeta a inclinação sexual pode ser punida com a morte, em outros o direito de escolher a identidade de gênero se conquista na primeira infância, abrindo, assim, todo um novo campo de desafios. Gabi nasceu há seis anos com genitais masculinos, mas sempre se vestiu de princesa, usou colares e simulou tranças para que todos vissem nela uma menina.
“Não são crianças presas em um corpo errado, mas crianças que nascem com genitais contrários ao gênero com o qual se identificam”, disse a mãe de Gabi, Pilar Sánchez, em sua casa na cidade espanhola de Málaga. Em um armário guarda, desde setembro, sem usar, a saia verde do uniforme feminino da escola frequentada por Gabi e seus dois irmãos, de oito e 13 anos. A escola não permite que se vista como as demais meninas, contrariando as diretrizes fixadas pelo governo da comunidade de Andaluzia.
Junto à mãe de Gabi, outras duas famílias de meninos transexuais de oito e nove anos, matriculados em escolas de Málaga, solicitaram ao governo andaluz que seus filhos fossem chamados em aula com o nome do gênero com o qual se identificam, pudessem vestir roupa ou uniforme segundo sua identidade sexual e escolher o banheiro que usariam.
Duas escolas acataram a decisão do governo, favorável às famílias. Não a de Gabi. Nessa escola, uma centena de mães e pais tacham a medida de “arbitrária” e garantem que “não se pensa nos efeitos adversos que pode provocar no normal desenvolvimento social e psicológico dos demais alunos”, segundo uma carta que assinaram e enviaram ao governo da comunidade.
“Isso não é um capricho infantil. As crianças transexuais são uma realidade que está ofuscada pelos preconceitos”, ressaltou Sánchez. Ela reconhece que vive um “pesadelo”, porque sou “a louca do colégio, quando só o que quero é ver meu filho feliz”. “Têm direito de ser felizes, serem quem são. Negar isso é uma crueldade e um crime”, afirmou Mar Cambrollé, a presidente da Associação de Transexuais de Andaluzia durante algumas jornadas contra a discriminação e os crimes de ódio realizadas no dia 24 de outubro em Málaga.
“Em um Estado aconfessional devem prevalecer as leis e o direito sobre as ideologias e a religião”, destacou Cambrollé sobre a atitude do colégio de Gabi, gerido por uma fundação da Igreja Católica e subvencionado em parte com dinheiro público. O princípio de igualdade e de não discriminação por razão de sexo consta do Artigo 14 da Constituição espanhola.
Enquanto enrola a fieira em um pião, Carlos Martín, de nove anos, cabelo curto e pele morena, diz à IPS que está animado em sua nova escola de Málaga, onde é tratado como o menino que se sente, apesar de ter nascido menina. “Se portaram mal com meu menino desde que tinha sete anos”, lamenta sua mãe, María Gracia García, se referindo ao colégio anterior, “um inferno” onde o submetiam a “maus tratos”.
Os centros educacionais espanhóis não contam com protocolos de atuação para casos de menores transexuais. “São crianças que têm pesadelos, que não podem se concentrar, que não querem ir à escola. Tratá-los de acordo com o gênero com o qual se identificam é devolver-lhes a felicidade”, afirmou Cambrollé. Segundo ela, a identidade de gênero “é um sentimento inato e imutável que se estabiliza entre dois e cinco anos de idade”.
“Meio homem, meio mulher”: desenho de uma menina de oito anos, de Aragón, que mostra seu conflito antes que sua família aceitasse sua identidade feminina. “A parte do homem tem o coração partido”, disse a menina, que nasceu homem, à sua mãe. (Foto Cortesia Associação Chrysalis)
Eva Witt, mãe de David, que nasceu menina há oito anos, destaca que as crianças, “desde que começam a se expressar, reclamam sua identidade de forma persistente. Desenham a si mesmos de acordo com o gênero em que se sentem e assumem esse papel nas brincadeiras”. Aos seis anos, David obteve um documento de identidade com seu nome masculino, um dos três concedidos até agora na Espanha para menores transgênero, segundo Witt, presidente da Associação Chrysalis, com meia centena de famílias espanholas com meninas e meninos transexuais.
Na Argentina se foi mais além. Luana, de seis anos, que nasceu menino junto com seu irmão gêmeo, já figura como sendo do gênero feminino em seu documento de identidade e na retificada certidão de nascimento. Para a família, a história foi muito dramática e a levou a consultar médicos e psicólogos, contou sua mãe, Gabriela. O processo foi doloroso, mas ela diz que agora a menina é feliz. A psicóloga de Luana, Valeria Paván, acrescentou que “não há patologia nem déficit de nenhum tipo. Ela simplesmente constrói sua identidade de maneira diferente, e nós profissionais devemos refletir sobre como isso incide em nossa prática”.
É a primeira vez que um Estado intervém no reconhecimento de uma identidade transexual de forma tão precoce e sem exigir um processo judicial, segundo a Comunidade Homossexual Argentina. “De repente, você entende tudo, todas as peças se encaixam. Se dá conta de que não estava permitindo sua filha de ser quem era”, disse à IPS a mãe de uma menina de nove anos de Aragón (nordeste da Espanha) que nasceu com corpo de homem. Desde que foi reconhecida como gênero feminino “é muito feliz” e quer ir à rua com seu cabelo sem cortar e seus vestidos.
Mas as famílias ouvidas pela IPS não podem deixar de olhar o futuro e se preocupam com o que acontecerá quando seus filhos e filhas chegarem à puberdade. Na Espanha não é possível recorrer a cirurgias de mudança de sexo até a maioridade. Mas é possível iniciar um tratamento reversível com bloqueadores hormonais, que ajudam a evitar o sofrimento de adolescentes “que prendem os seios” para esconder as mudanças físicas que a biologia impõe, afirmou Witt.
Leis trans
A Argentina reconhece por lei o direito das pessoas serem definidas em seus documentos com a identidade de gênero com a qual se autopercebem inclusive na infância, se seus pais estão de acordo, para o qual só falta um trâmite administrativo.
Em Andaluzia, grupos transexuais conseguiram, no dia 6, que fosse desbloqueado o trâmite parlamentar do projeto de Lei Integral de Transexualidade, prometido desde 2009, e suspenderam, portanto, uma greve de fome que planejavam iniciar hoje. Essa iniciativa estabelece a livre autodeterminação do gênero e a descentralização da atenção sanitária, e põe fim ao tratamento da transexualidade como uma patologia.
No momento, uma pessoa transexual que necessite de atenção sanitária pública em Andaluzia deve ir até à Unidade de Transexualidade e Identidade de Gênero, do hospital provincial de Málaga. Nesse local são feitos exames psicológicos que determinam, para o sistema de saúde, se a pessoa é transexual e tem direito, portanto, a tratamentos com hormônios ou cirurgia.
Inés Benítez, agência IPS; com colaboração de Marcela Valente (Buenos Aires)
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