domingo, 15 de março de 2015

HENRIETTA LACKS: A MULHER QUE MUDOU A CIÊNCIA PARA SEMPRE (e nunca ficou sabendo)

Henrietta Lacks
Henrietta Lacks teve uma vida curta e dura. No fim dela, doente e pobre, acabou ajudando enormemente a ciência, de quebra salvando milhões de pessoas. E o que ganhou com isso?



Absolutamente nada.

A dura vida de Henrietta

Loretta Pleasant nasceu em Roanoke, Virginia, nos EUA, em 1 de agosto de 1920. Mais tarde, mudou seu nome para Henrietta.Henrietta perdeu a mãe quando tinha apenas quatro anos, sendo abandonada por seu pai, junto com seus nove irmãos, logo depois. As crianças foram distribuídas e a garota foi morar com seu avô materno, Tommy Lacks. Ele já estava criando um neto, David “Day” Lacks, abandonado pela tia de Henrietta nove anos antes.A menina frequentou uma escola segregada para afro-americanos, mas na sexta série abandonou os estudos por ordem do avô para trabalhar nos campos de tabaco que seus antepassados escravizados um dia também trabalharam.Apenas alguns meses após seu aniversário de 14 anos, ela e Day tiveram seu primeiro filho, Lawrence. Quatro anos depois veio Lucile Elsie, que sofria de epilepsia e problemas de desenvolvimento. Em abril de 1941, Henrietta e Day casaram-se e mudaram-se para um subúrbio de Baltimore, onde tiveram mais três crianças.
A doença e a ciênciaPouco antes de sua gravidez final, Henrietta começou a ter dor vaginal durante o sexo. Essa dor só se intensificou após o nascimento do último filho, Joe.Quatro meses depois, a pobre mulher encontrou um “nó” do tamanho da ponta de seu dedo mindinho em seu colo. Seu marido a levou para o Hospital Johns Hopkins, o único de Baltimore que atendia afro-americanos em 1951.Em janeiro, Henrietta foi diagnosticada com câncer de colo uterino; em 6 de fevereiro, foi ao Johns Hopkins para o seu primeiro tratamento com radiação. No entanto, antes da terapia, um cirurgião tomou duas amostras de seu colo, uma de tecido saudável, outra de tecido canceroso. Henrietta não sabia que amostras seriam tomadas, e nunca deu permissão para que elas fossem utilizadas. Naquela época, isso não era exigido por lei.
O que fizeram com as células de Henrietta?Richard TeLinde, chefe de ginecologia na Universidade Johns Hopkins, estava estudando o câncer em 51. Por isso, ordenou a seus médicos que colhessem rotineiramente células saudáveis e cancerosas durante procedimentos ginecológicos. Ele entregava essas amostras a George Gey, chefe de pesquisa de tecidos da Universidade, para que ele tentasse cultivar as células em laboratório e estudá-las.O problema é que as células sempre morriam. Sempre. Exceto as de Henrietta. Elas foram colocadas em tubos de ensaio com sangue de galinha e rotuladas de “HeLa” (as duas primeiras letras de “Henrietta” e “Lacks”). Em seguida, foram levadas a uma incubadora – e cresceram.

Micrografia eletrônica de uma das células de Henrietta
Micrografia eletrônica de uma das células de Henrietta
As células cancerosas dobravam de número a cada 24 horas e eram tão agressivas que se recusavam a morrer. O câncer de Henrietta tinha transformado suas células nas primeiras humanas “imortais” já cultivadas.
Células imortais coletadas em 1951 são usadas até hoje
Como isso ajudou a ciência?
Esse foi um excelente progresso para o estudo de infinitas doenças e condições. Gey começou a contar aos seus colegas sobre HeLa, e pedidos de amostras choveram.
Jonas Falk, por exemplo, usou as células para desenvolver a vacina contra a poliomielite – o que, por sua vez, salvou (e ainda salva) a vida de muitas pessoas. As células de Henrietta também se tornaram as primeiras humanas a serem clonadas, em 1955. HeLa ainda permitiu aos cientistas finalmente identificar o número de cromossomos humanos como 46, em vez de 48.
HeLa pode ser exposta a radiação, infecções e toxinas em doses impossíveis com seres humanos vivos. HeLa pode ser bombardeada com drogas, a fim de encontrar algo que mate o câncer. Com isso, mais de 10.000 patentes já foram registradas usando HeLa e, a partir de 2001, cinco prêmios Nobel foram concedidos para pesquisas com células HeLa.
Todo mundo quer um pedaço de Henrietta, de forma que o Instituto Tuskegee produz as células em massa, enviando 20 mil tubos de ensaio a cada semana. Estima-se que, se todas as células HeLa usadas nos últimos 60 anos fossem amontoadas, esse monte pesaria 50 milhões de toneladas.
Mas e a coitada da Henrietta?
O câncer agressivo de Henrietta se espalhou rapidamente para quase todos os seus órgãos, de forma que ela morreu em 4 de outubro de 1951. Desde fevereiro haviam colhido seu tecido, mas ninguém do Johns Hopkins pensou em dizer para Henrietta o quão importantes suas células eram.
Seu marido e filhos só descobriram sobre HeLa em 1973, quando pesquisadores apareceram em sua porta querendo amostras de sangue. A família Lacks foi totalmente surpreendida ao descobrir a indústria multibilionária que surgiu para vender as células de Henrietta.
E, mesmo assim, a contribuição da mulher pobre e negra passou despercebida. Pior, os Lacks não têm nenhum direito sobre as HeLas, e nunca puderam sequer decidir como as células são usadas. Com todas as vidas salvas por Henrietta, sua família ainda vivia em extrema pobreza, incapaz até mesmo de ter plano de saúde.
Isso começou a mudar quando a BBC filmou um documentário sobre Henrietta em 1998. A família Lacks foi homenageada pelo Museu Smithsonian e pela Fundação Nacional para a Pesquisa do Câncer, nos EUA.
Mais tarde, em 2010, Rebecca Skloot escreveu a biografia de Henrietta, “A Vida Imortal de Henrietta Lacks”, e Oprah Winfrey comprou os direitos para fazer um filme sobre ela. Skloot criou uma fundação usando alguns dos recursos obtidos com seu livro para ajudar financeiramente a família Lacks e prestar cuidados de saúde para eles e, no mesmo ano, finalmente uma lápide foi doada e plantada no que até então era a cova anônima de Henrietta – a verdadeira heroína desconhecida.


A ciência chama a minha mãe de HeLa, diz Deborah Lacks

fatima oliveiraLeio o instigante livro de Rebecca Skloot, "A Vida Imortal de Henrietta Lacks", presente de uma amiga, Valéria Augusto, cujo resumo diz: "Em 1951, uma mulher negra e humilde morre de câncer; suas células - retiradas sem seu consentimento - são mantidas vivas, dão origem a uma revolução na medicina e a uma indústria multimilionária. Mais de 20 anos, depois, seus filhos descobrem a historia e têm suas vidas completamente modificadas". Parece ficção, mas aconteceu.
Ouçamos Deborah Lacks, filha de Henrietta Lacks (18.8.1920 - 4.10.1951): "A ciência chama a minha mãe de HeLa (pronúncia: rilá), e ela está no mundo inteiro em centros médicos...
Quando vou ao médico, sempre digo que minha mãe foi HeLa. Eles ficam empolgados, contam coisas do tipo como as células dela ajudaram a produzir meus remédios para hipertensão e antidepressivos e como todas essas coisas importantes da ciência aconteceram por causa dela... Mas sempre achei estranho que, se as células da nossa mãe fizeram tanto pela medicina, como é que a família dela nem tem dinheiro para pagar um médico? Não faz sentido. As pessoas ficaram ricas às custas de minha mãe e a gente não recebeu um centavo...".
Henrietta descende de escravos plantadores de fumo. Teve cinco filhos. Nenhum transpôs as soleiras da universidade. Não possuem seguro-saúde. As células HeLa - do carcinoma epidermoide do colo de útero dela, extraídas por seu médico Howard Jones, em 6.2.1951 - se reproduziram "in vitro" no laboratório de cultura em tecidos do Hospital Johns Hopkins, um dos raros que atendiam negros, mas os segregava em enfermarias de "pessoas de cor" . Estima-se que as células HeLa, enfileiradas, dariam três voltas ao redor da Terra.
Rebecca Skloot conheceu as células HeLa em 1988, aos 16 anos, numa aula do professor Donald Defler, que disse: "As células HeLa foram uma das coisas mais importantes que aconteceram à medicina nos últimos cem anos. Era uma mulher negra". Rebecca indagou: "De onde ela era? Sabia da importância de suas células? Teve filhos?". Ele disse: "Eu bem gostaria de poder lhe contar, mas ninguém sabe nada sobre ela".
Foi a obsessão por ela que levou Rebecca a escrever o livro "contando a historia de Henrietta Lacks e das células HeLa, abordando aspectos importantes sobre ciência, ética, raça e classe". Sobre a foto de Henrietta, diz: "Passei anos contemplando-a, indagando que tipo de vida a retratada levava, o que teria acontecido com seus filhos, o que acharia de células do seu colo de útero vivendo para sempre - compradas, vendidas, embaladas e expedidas aos trilhões para laboratórios de todo o mundo".
Ela e Deborah Lacks, muito mística, ficaram amigas: "Como explica que seu professor de ciências sabia o verdadeiro nome dela, quando todos os outros a chamavam de Helen Lane? Ela estava tentando chamar a sua atenção". Era uma dedução de Deborah aplicável a tudo de Rebecca: ao casamento (ela quis que alguém cuidasse de você enquanto escrevia sobre ela); ao divórcio (ela viu que ele estava atrapalhando o livro); e, quando um editor insistiu em suprimir a família Lacks do livro, feriu-se num acidente misterioso, "Deborah disse que aquilo era o que acontecia com quem irritasse Henrietta".
É um livro que dói. Revela subterrâneos sombrios da produção da ciência e a necessidade de novo contrato social e ético entre ciência e sociedade; para além de maquiagens bioéticas, exige meios reais de contenção de abusos.
Fonte: O Tempo

Não há pesquisa ética sem respeito aos direitos humanos

fatima oliveiraFinalizei "A ciência chama a minha mãe de HeLa, diz Deborah Lacks" sobre o livro de Rebecca Skloot: "A vida imortal de Henrietta Lacks", dizendo que "É um livro que dói. Revela subterrâneos sombrios da produção da ciência e a necessidade de novo contrato social e ético entre ciência e sociedade; para além de maquiagens bioéticas, exige meios reais de contenção de abusos".
Várias pessoas, que conhecem a minha trajetória na área de bioética, escreveram indagando sobre maquiagem bioética. A bioética possui dupla face: movimento social e disciplina - a que adquiriu prestígio e aparece na mídia. A bioética disciplina muitas vezes tem servido de biombo para o nada fazer, só debater os problemas. Muita falação e zero de ação! É maquiagem.
Muita gente indagou sobre normas e leis que regulam a pesquisa em biociências, particularmente a médica, e deseja resposta no campo do "ainda pode acontecer o caso Henrietta Lacks?". No Brasil talvez não, mas nos EUA sim, pois lá não é exigido o consentimento livre e esclarecido para usar sangue e tecidos em pesquisa.
O Brasil revisou a sua Norma de Ética em Pesquisa em 1996, resultando nas "Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos do Conselho Nacional de Saúde" (CNS), mais conhecida como " Resolução 196/96" do CNS, que incorpora a Lei 8.489, de 18/11/92, e o Decreto 879, de 22/07/93, que dispõem sobre retirada de tecidos, órgãos e outras partes do corpo humano com fins humanitários e científicos.
Integrei o Grupo de Trabalho (GT) que elaborou a "Resolução 196/96" do CNS. Era a única feminista e a única negra. Aprovada a resolução, no pleno do CNS, integrei o primeiro Comitê de Ética em Pesquisa do CNS. Foi gratificante e cumpri meu papel a contento, mas não foi fácil. Em nenhum momento, sobretudo no que se refere à "questão racial". Até hoje é complicado.
Às vezes, e foram muitas, eu ficava em dúvida se estava falando português, porque eu dizia que ficava rouca e alguns dos membros do GT faziam cara de paisagem! Na véspera da reunião do pleno do CNS, que apreciaria e votaria a proposta de resolução, um dos integrantes do GT se achou no sagrado direito de dizer que não entendia o "quesito cor" e a importância dele no documento. Subi nas tamancas. Disse-lhe que não explicaria mais porque ele era burro e não iria entender.
E não expliquei! E o "quesito cor", nos dados de identificação pessoal de todas as pesquisas em seres humanos passou a ser obrigatório, embora o próprio Ministério da Saúde até hoje tenha dificuldades em exigi-lo nas pesquisas que patrocina. E quando reclamo, e reclamo sempre, dizem que foi um lapso. Mas como lapso se cabe, inicialmente, ao Comitê de Ética em Pesquisa onde ela será realizada, não autorizá-la sem o quesito cor? Aí tem! O esquecimento (recusa?) de não coletar e, se coletar, não analisar o quesito cor tem nome: é racismo mesmo!
Cumprir as regulamentações (normas ou leis) de ética em pesquisa exibe o grau de respeito de cientistas aos direitos humanos. A Resolução 196 é uma conquista monumental num país em que a pesquisa, sobretudo a biomédica, corria frouxa até 1996, como se o Brasil fosse terra de ninguém.
Uma pergunta que vem do GT é o que melhor cerceia abusos e garante os direitos humanos dos sujeitos de pesquisa: uma norma ou uma lei?
Tenho a opinião de que a Resolução 196/96 já cumpriu o seu papel pedagógico e que o Brasil precisa agora é de uma lei de ética em pesquisa.
Fonte: Tempo

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