sábado, 14 de março de 2015

URUGUAI, UMA REFERÊNCIA PARA A ESQUERDA

REVISTA FORUM





Como foi construído o legado do ex-presidente José Pepe Mujica, que colocou o país de 3 milhões de habitantes no cenário da política mundial

Por Igor Carvalho e Vinicius Gomes | Foto: Frente Ampla
O Uruguai entrou no mapa político mundial após os recentes avanços em pautas progressistas, conquistados nos últimos cinco anos, ancorados na figura do carismático José Pepe Mujica, ex-presidente do país e símbolo maior desse período.
Politicamente, é possível dizer que as conquistas da sociedade uruguaia tornam o país uma referência para a esquerda sul-americana. Além da inovadora política de legalização da maconha, o país conseguiu, por exemplo, zerar o número de mortes de mulheres por aborto, se tornando o segundo país em todas as Américas com menor índice de mortalidade materna graças à mudança que passou a permitir a interrupção da gestação.
Ainda neste período do governo do presidente Mujica, o Uruguai avançou contra os oligopólios da mídia e aprovou uma Lei de Meios que regula o setor de comunicação no país. Após um intenso debate, a redução da maioridade penal foi rejeitada em plebiscito pelo povo uruguaio, resultado que seria impensável em outros países vizinhos.
Fórum esteve no Uruguai para investigar os quatro temas acima, que representam parte significativa dos diversos avanços do país. Confira abaixo como foi possível construir a lei que estabeleceu a regulamentação da produção, distribuição e venda de maconha; o projeto que assegurou a descriminalização do aborto, o processo que culminou na rejeição à redução da maioridade penal, e como foi elaborada e implantada a Lei de Meios no país.



O modelo de legalização da maconha 

Em um bairro residencial a 30 minutos do centro de Montevidéu, em frente a uma escola pública fica uma casa muito simples. A entrada tem uma porta branca, de madeira, com um portão de ferro. Só após um estreito e longo corredor, se revela uma vasta plantação de maconha.
Sede do Cluc. A cooperativa mantém 45 membros e 99 pés de maconha (Foto: Igor Carvalho)
Sede do Cluc. A cooperativa mantém 45 membros e 99 pés de maconha (Foto: Igor Carvalho)
Nada ali é ilegal ou clandestino. Ao fundo, um vizinho se move pelo telhado tranquilamente, sem se importar com o que acontece do outro lado do muro. Na casa, grande, funciona a sede do “Cultivando a Liberdade, o Uruguai Cresce” (Cluc), um clube para cultivo e consumo coletivo da erva que funciona no formato de cooperativa.
O clube está autorizado pela Lei 19.172, que regulamenta a produção, distribuição e venda de maconha aos usuários uruguaios. O projeto, seguramente, foi o que trouxe em definitivo os olhos do mundo para o país. O ineditismo do conjunto de medidas fez do Uruguai uma referência mundial.
O Cluc se distingue dos demais clubes que têm surgido pelo país, funciona em um formato de cooperativa e cada um dos 45 sócios, número máximo permitido pela legislação, estão incumbidos de funções internas. Nenhum associado paga matrícula, somente uma mensalidade de R$ 60. Para ingressar em outros clubes, calcados em valores comerciais, a matrícula custa R$ 1,2 mil e a mensalidade pode chegar a R$ 250. Os clubes podem ter de 15 a 45 membros, e todos devem ter mais de 18 anos e ter residência fixa no Uruguai, estrangeiros não podem participar de nenhuma das modalidades que permitem o acesso à maconha.
Está garantida, na lei, uma cota de 40 gramas por mês aos membros do clube. “Se você fumar mais de 40 gramas por mês, há aí um claro problema de saúde. O Estado não pode estimular isso, como não estimulamos o consumo de álcool, que é liberado e de livre acesso”, defende o secretário da Junta Nacional de Drogas, Julio Calzada, um dos responsáveis pelo projeto.
O Cluc é formado majoritariamente por membros do ProDerechos, o coletivo que organizou a internacional “Marcha da Maconha” no Uruguai e que também se manifesta sobre diversos outros assuntos ligados aos direitos humanos, como o aborto. A fila de espera para se tornar membro do Cluc é de 120 pessoas. O endereço não é divulgado por exigência da lei, que também proíbe qualquer tipo de identificação visual na frente dos espaços.
Na sede do Cluc, os membros plantam, colhem, dissecam e distribuem igualitariamente a maconha. O máximo permitido por lei é 99 pés da planta, o que garante as 480 gramas anuais para 45 membros. “Nos é suficiente, não precisamos mais que isso”, garante Diego Pieri, um dos administradores do espaço. “Poderíamos cada um cultivar em casa e sairia mais barato e menos complicado, mas acreditamos nesse formato onde podemos nos reunir e ter uma experiência conjunta”, afirma Victoria Verrastro, integrante do ProDerechos.
Outras modalidades
Para além dos clubes, a Lei oferece outras duas formas para se consumir maconha no Uruguai, o auto-cultivo e a aquisição nas farmácias. Ao adotar uma modalidade, o usuário não poderá usar outra.
O plantio feito em casa já é formato escolhido por 1,2 mil uruguaios, devidamente cadastrados no Instituto de Regulação e Controle de Cannabis (IRCCA). É permitido que se plante até seis pés por endereço (independente do número de pessoas que vivam ali). Caso o número seja excedido, o usuário tem sua autorização cancelada.
Julio Calzada, secretário da Junta Nacional de Drogas (Foto: Igor Carvalho)
Julio Calzada, secretário da Junta Nacional de Drogas (Foto: Igor Carvalho)
“Aqui não vamos permitir que a convicção moral de um policial ou juiz determine se uma pessoa estava vendendo drogas, isso deve ser provado. Se alguém, em casa, mantém oito pés, ele não será preso e nem acusado de tráfico, não cometeu um delito, cometeu uma infração, e terá seu registro cassado”, pondera Calzada, rechaçando a possibilidade de que usuários sejam confundidos com traficantes.
Para o governo, a compra em farmácias deve ser a modalidade mais buscada. “Não temos dúvida, será a forma mais fácil e rápida de se chegar até a maconha”, explica Calzada. O usuário que quiser ter acesso à maconha nas farmácias deverá, também, se cadastrar no IRCCA. A cota mensal é de 40 gramas e a compra só pode ser feita uma vez por mês, mediante receita de um médico.
Nas farmácias, poderão ser comprados remédios que contêm maconha em sua fórmula ou a erva para ser fumada. A morosidade do processo de contratação das empresas responsáveis pela distribuição e venda nas farmácias empurrou a implementação desta modalidade para o governo do presidente recém-empossado, Tabaré Vázquez, que anteriormente se manifestou contra a liberação da planta.
Porém, a sucessão presidencial não será problema para a continuidade do projeto, garante Calzada. “Temos certeza de que não haverá retrocessos, não há como se mexer na lei, que já se provou eficiente, temos que continuar avançando, sem olhar para trás”, defendeu.
Outro empecilho foi a oposição da classe médica. Um dia após a regulamentação da venda em farmácias, o vice-presidente do Sindicato de Médicos do Uruguai (SMU), Gerardo Eguren, declarou que “nem todo médico está capacitado para receitar maconha a paciente.”
“Até que se inicie a fase prática do projeto, o governo promoverá encontro com os médicos e temos certeza que todos vão estar capacitados”, afirma Calzada.  “Não tem grandes dificuldades, a bibliografia médica sobre maconha é extensa, temos certeza que é um processo cultural, os médicos não vão ter problemas”, defende Diego Piri.
A lei
“Arruinaremos o narcotráfico. Venderemos mais barato [a maconha], a um preço que não se conseguirá comprar no mercado paralelo”, afirmou o presidente José Pepe Mujica à época da aprovação da Lei 19.172.
Desde o princípio, o discurso utilizado para justificar o projeto deixava evidente que a intenção era atingir economicamente o tráfico, abrindo mão da guerra bélica que fracassou em todo o mundo. A necessidade de se debater o tema surgiu a partir dos números de criminalidade no Uruguai. Em abril de 2012, em uma semana três pessoas foram assassinadas e outra decapitada. “Vivemos 72 horas de horror, com capas sangrentas mostrando os assassinatos. Por 48 vezes foi noticiado nas televisões. O título de um dos jornais foi: ‘A mexicanlização do Uruguai’, associando os crimes ao tráfico de drogas”, recorda Calzada.
Partiu de Mujica a iniciativa de promover a mudança. “Neste momento, o presidente nos chama e diz que temos que parar e refletir sobre a violência, uma parte importante dessa criminalidade estava ligada ao tráfico de drogas.” Do encontro ministerial nasceu a carta de Estratégia pela Via de Convivência, que prevê a regulamentação da produção, distribuição e venda de maconha.
“90% dos usuários de droga, no Uruguai, consomem maconha. Há estudos mostrando que esse número acompanha as estatísticas pelo mundo. Temos 290 milhões de usuários de drogas no mundo, 260 milhões usam maconha. O certo é que esse mercado da erva movimenta de U$$ 30 a U$$ 40 milhões por ano em nosso país”, aponta Calzada, que vê outras vantagens em estabelecer uma concorrência de “mercado” com o comércio ilegal. “Esse dinheiro que estamos tirando da mão do narcotráfico sustenta outras práticas como o tráfico de pessoas e compra de armas, por exemplo. Vamos romper com esse círculo.”
Uruguaios marcham por regulamentação da maconha (Foto: Frente Ampla)
Uruguaios marcham por regulamentação da maconha (Foto: Frente Ampla)
No último censo realizado no Uruguai, 150 mil pessoas se declararam usuárias de maconha. Porém, o governo estima que esse número possa chegar em 400 mil uruguaios. Outra preocupação foi garantir a saúde dos consumidores da erva. “É uma tremenda hipocrisia fazer de conta que isso não existe [consumo], enquanto narcotraficantes distribuem drogas completamente degradadas. As pessoas se submetem a ir em locais com gente armada, que se porta mal, para comprar algo que é um hábito social”, pondera Calzada.
O processo de amadurecimento do debate, com ponderações importantes sobre o combate ao narcotráfico e a preocupação com a saúde dos uruguaios, fez com quem até mesmo setores religiosos não se opusessem ao projeto no país. “Tivemos uma 'não-oposição' aberta dos líderes religiosos, mas não chegou a ser um apoio. Somente grupos evangélicos brasileiros, de igrejas que vieram do Brasil, que se opuseram”, lembra Calzada.
Reflexo imediato do sucesso do projeto é o aumento no número de turistas e jornalistas no país, curiosos com o conjunto de mudanças. Porém, não há preocupação de que o país se torne um destino por conta do “turismo da maconha.” “Pelo contrário, queremos garantir uma licença especial para turistas. Chega de hipocrisias. Não queremos que pessoas venham em nosso país e se submetam ao narcotráfico”, defende Victória Verrastro, do ProDerechos. Calzada explicou que o tema ainda não foi discutido, mas pode ser um dos “aperfeiçoamentos da lei no futuro.”



A regulação da comunicação

Uma das últimas medidas aprovadas na gestão Mujica foi aquela que ficou conhecida como a Ley de Medios, que visa regular o mercado de comunicações no Uruguai. Como não haveria deixar de ser, o debate em torno da lei girou muito entre uma suposta inconstitucionalidade da lei, a “coerção” da liberdade de expressão, ou pura e simplesmente a possibilidade de censura. “Parece que qualquer coisa que se queira regular é um pecado mortal. Penso exatamente o contrário, se isso não for regulado, os tubarões de fora acabam nos tragando”, afirmou Mujica, no final do ano passado, além de deixar clara uma de suas principais preocupações: “Eu não quero que o Clarín, a Globo ou [Carlos] Slim se achem os donos das comunicações no Uruguai”.
Gustavo Gomez, autor da Lei de Serviços de Comunicação Audiovsual (Foto: Vinicius Gomes)
Gustavo Gomez, autor da Lei de Serviços de Comunicação Audiovsual (Foto: Vinicius Gomes)
A Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual – a Ley de Medios – foi aprovada pouco antes do Natal por conta da maioria governista da Frente Ampla no parlamento. Segundo Gustavo Gomez, assessor de comunicações de Mujica e um dos autores da lei, não ocorreu uma campanha midiática contra o projeto, apesar de não ter sido uma cobertura equilibrada. Curiosamente, os veículos que seriam diretamente afetados pela regulação, os canais de televisão e a rádio, pouco trataram do assunto, exceto em momentos excepcionais. A verdadeira oposição a lei foi travada pela imprensa escrita, especialmente pelo periódico de maior circulação no Uruguai, o El País. 

“Houve mais de 50 delegações nas discussões dentro da Câmara dos Deputados, e quase não existiu nenhuma entrevista com pessoas que eram a favor da lei, porém, todas as opiniões que se posicionavam contra, sobretudo empresariais, eram publicadas”, conta Gomez. Na luta contra a concentração no setor de telecomunicações audiovisuais, a lei proíbe que uma pessoa física ou jurídica privada possa ter a titularidade total ou parcial de mais de seis concessões ou licenças para prestar serviços de televisão por assinatura em todo o território uruguaio, por exemplo
Na Câmara, a discussão levou um ano, permitindo que todas as opiniões fizessem parte do debate – além dos políticos, participaram acadêmicos, sociólogos, empresários, advogados. No parlamento, a oposição foi claramente contra a lei, principalmente nos artigos que estabeleciam que o tempo de propaganda eleitoral gratuita seria definido com base nos votos de cada partido na lei anterior. “A lei tem um grande viés ideológico”, vaticinou Álvaro Delgado, do partido nacionalista. O deputado do partido colorado Walter Verri afirmou que “aqueles que creem na liberdade de expressão não podem ser a favor do projeto”. Até mesmo quem não era necessariamente de partidos conservadores, como o senador Iván Posada, do partido Independente – que inclusive já foi aliado do governo em pautas como a do aborto – disse que “nem durante a ditadura existiu algo que atentasse tanto contra a liberdade de expressão”.
No dia da votação, por exemplo, o ex-candidato à presidência e senador colorado Pedro Bordaberry, se resignou a aceitar que a lei seria aprovada, por 16 a 15. Mesmo assim, citou uma passagem do clássico da literatura Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, onde o personagem principal dizia que “a liberdade era um dos bens mais precisos do homem”. O senador, no caso, é filho de Juan María Bordaberry, o homem que liderou o golpe de Estado no Uruguai. Ironicamente, Dom Quixote era um dos símbolos da Frente Ampla, que derrotou Bordaberry na última eleição. A lei também prevê a criação de um Conselho de Comunicação Audiovisual, composto por cinco membros, sendo quatro indicados pelo Legislativo e apenas um pelo Executivo.
Internet de fora
Um dos motivos para a imprensa escrita não ser contemplada na lei é que ela já é regulada pelos códigos civil e penal. Há também uma lei específica chamada Ley de Prensa(imprensa), que fundamentalmente protege aquilo que chamam “direitos da honra”, contra difamações ou injúria. Outro meio de comunicação deixado de fora é a internet. “Quando se fala de internet, estamos falando de coisas muito distintas”, explica Gomez, “Não é que nós esquecemos isso do Uruguai ou não achamos importante, mas em um primeiro momento não está muito claro como regular ou o que regular, nem no Uruguai, nem no mundo”.
Porém, mesmo com a discussão sobre a internet não fazendo parte, necessariamente, do programa do novo governo da Frente Ampla com Tabaré Vásquez, a discussão a respeito inevitavelmente ocorrerá ao passo que a nova lei sobre televisão e rádio começar a ser aplicada. Outro ponto que Vásquez também tratará, e que não foi contemplado a princípio, é sobre as verbas estatais para os meios de comunicação. O modelo uruguaio, afirma o governo, absorveu da América Latina o que achava que melhor cabia ao país, e os exemplos foram Venezuela, Equador e Argentina. Porém, a Europa foi a principal referência na regulação dos serviços audiovisuais que passou a ocorrer no continente a partir de 2010, especialmente no que envolve a proteção da produção nacional, estabelecendo que, na televisão pública, ao menos 60% da programação deva ser uruguaia, ou de co-produção uruguaia, e proteção às crianças. “Nesse quesito, poderia dizer que há uma regulação de conteúdo, mas não como censura e sim defesa das pessoas, principalmente no que tange ao público infantil”, explica Gomez.
"Eu não quero que o Clarín, a Globo ou [Carlos] Slim se achem os donos das comunicações no Uruguai”, disse Mujica (Foto: Reprodução)
"Eu não quero que o Clarín, a Globo ou [Carlos] Slim se achem os donos das comunicações no Uruguai”, disse Mujica (Foto: Reprodução)
De fato, a exposição de crianças e adolescentes foi tema recorrente nos debates sobre o plebiscito da redução da maioridade penal, assim como na discussão da regulação da maconha. Anteriormente, no horário nobre televisivo, explorava-se violência e a criminalidade, contabilizando 90% do noticiário sobre esses temas. “São programas que passam entre 19h e 21h, são 20 e 40 minutos só com imagens e temas que tratam da criminalidade”, afirmou Julio Calzada, secretário da Junta Nacional de Drogas. De acordo com a nova lei, estabelece-se que entra 6h e 22h estão proibidos programas que promovam atitudes ou condutas violentas, discriminatórias ou pornográficas. Proibi-se também a participação de menores de idade em qualquer publicidade prejudicial à saúde, como bebidas alcoólicas e cigarro.
Assim sendo, o objetivo não se limita à prevenção do monopólio e oligopólio – principal bandeira encampada pela esquerda –, muito menos de censurar ou tentar restringir conteúdo para fins políticos – o que escandaliza a direita conservadora. “Trabalhamos para que o Uruguai tenha um conjunto de leis em matéria de meios de comunicação que enfoque a democratização da informação em um sentido amplo, incluindo pontos como o fim da concentração, o reconhecimento das rádios comunitárias, a proteção ao público jovem, uma lei de acesso à informação pública, uma lei de publicidade oficial do governo, entre outras”, enumera Gomez.


Aborto, o resultado de uma longa jornada

Uma intensa jornada de lutas, debates, protestos e votações intermináveis em diversas esferas de poder foi consagrada no dia 17 de outubro de 2012. Nesta data, por 17 a 14 votos, foi aprovada, no Senado, a lei que despenaliza o aborto no Uruguai, sancionada uma semana depois pelo presidente José Pepe Mujica.
A despenalização do aborto provocou uma radical alteração nos índices de mortalidade materna, que estava, após a década de 1990, entre os seis piores índices do mundo. Aproximadamente 30% dessas mortes eram por conta de abortos clandestinos. Com a nova legislação, o Uruguai se tornou o segundo país com menor índice de morte materna entre todos das Américas, com apenas 14 para cada 100 mil nascimentos. O Canadá, que lidera as estatísticas, alcançou 11 mortes para cada 100 mil nascimentos.
“A mortalidade materna é o indicador mais importante para se saber da saúde de uma sociedade e cremos que esta foi uma notícia maravilhosa para se encerrar esse governo”, comemora o ministro da Saúde Pública do Uruguai, Leonel Briozzo. Para que se tenha uma ideia do avanço uruguaio, o Brasil registrou, em 2013, 62 mortes para cada 100 mil nascimentos. A meta estabelecida pela ONU é de 35 mortes para 100 mil nascimentos.
Em 2013 (os dados de 2014 ainda não foram divulgados), realizaram-se 6.676 interrupções de gravidez no país platino e nenhuma morte foi registrada. “É um problema religioso? Sim. É um problema político? Sim. É um problema legal? Sim. É um problema moral? Sim. É um problema filosófico? Sim. Mas antes de tudo, é um problema de saúde. Nenhuma mulher quer abortar ou gosta de abortar, o faz porque é o último recurso”, pondera o ministro Briozzo.
O embrião do projeto
Data de 1985 a primeira tentativa de despenalizar a interrupção da gravidez no Uruguai. Com uma bancada feminina reduzida, a articulação política em prol do projeto foi irrisória e a ideia foi engavetada. Em 1995, o projeto foi revisto, mas não foi possível, naquela legislatura, fazer com que fosse votado na Câmara dos Representantes (deputados), muito menos no Palácio Legislativo (senadores).
Margarita Percovich, ex-senadora e fundadora da Frente Ampla (Foto: Igor Carvalho)
Margarita Percovich, ex-senadora e fundadora da Frente Ampla (Foto: Igor Carvalho)
Com o crescimento da bancada feminina nas eleições de 1999 e depois de 2004, a descriminalização do aborto volta à pauta. “Conseguimos, finalmente, aprovar o projeto na Comissão de Saúde, com pressão das mulheres deputadas que priorizaram esse tema”, recorda Margarita Percovich, ex-deputada e ex-senadora, uma das responsáveis pela nova redação do projeto.
Em outubro de 2008, o Palácio Legislativo aprovou a Lei de Saúde Sexual e Reprodutiva, que previa a descriminalização do aborto. Porém, o presidente à época, o médico Tabaré Vázquez, vetou o capítulo que pedia a retirada do artigo que criminalizava, no Código Penal, a interrupção de gestação. “Foi uma derrota tremenda. Eu já conhecia Tabaré, sabia que ele vetaria. O que se deu é que fomos às ruas”, conta Margarita, recordando as inúmeras manifestações que se espalharam pelo país após o veto presidencial, com milhares de mulheres vestidas com roupas pretas. “Não posso negar a existência da vida humana desde sua gestão”, argumentou, à época, Tabaré.
Somente em 2012 surgiu uma nova orpotunidade de se discutir a questão. Margarita, fundadora da Frente Ampla e agora senadora, articulou a inclusão de um artigo na Lei de Saúde Sexual e Reprodutiva que autorizava a descriminalização do aborto. “A interrupção voluntária da gravidez não será penalizada e em consequência, não serão aplicados o artigo 325 do Código Penal, caso a mulher cumpra com os requisitos que se estabelecem nos artigos seguintes e se realize durante as primeiras doze semanas de gravidez”, afirma o texto inserido na lei.
A nova redação do projeto, com apoio do presidente Mujica e de sua companheira, a também senadora Lucía Topolansky, foi aprovado na Câmara dos Representantes e no Palácio Legislativo. A sanção presidencial, no dia 30 de outubro de 2012, sacramentou a vitória das mulheres uruguaias que passaram a ter o direito de decidir sobre seu corpo e suas gestações.
Porém, para Margarita, hoje coordenadora do projeto “Cidadania em Rede”, ainda restou um gosto amargo. “Convivemos com uma hipocrisia, pois não mexemos no Código Penal. Nesse ponto de vista, somos absolutamente hipócritas. Como fazíamos com a droga. Não se penaliza que use, mas o lugar onde compra era criminalizado”, afirma a ex-senadora. Ela rechaça o que julga serem “análises simplistas”, que atribuem a conquista ao governo Mujica. “No mundo, vocês pensam que aqui fizemos uma revolução em cinco anos, mas lutamos por tudo isso faz dezenas de anos. Em toda a América Latina foi assim, a luta das irmãs argentinas e brasileiras não se diferencia da nossa.”
Aplicação da lei
A regulamentação da Lei de Saúde Sexual e Reprodutiva, em 2012, determinou que todas as unidades públicas de saúde do Uruguai deveriam ter uma equipe de cinco profissionais que cuidariam da saúde sexual e reprodutiva das mulheres.  “Pudemos assegurar, por conta dessas equipes, que a lei poderia ser aplicada em todo o país, pois poderíamos atender a demanda”, lembra o ministro Briozzo. Após 20 dias da sanção presidencial, mulheres já podiam recorrer ao aborto em qualquer unidade de saúde do país, sem que isso acarretasse em qualquer sanção criminal.
Manifestação no Uruguai contra a mortalidade de mulheres (Foto: Flickr/Frente Ampla)
Manifestação no Uruguai contra a mortalidade de mulheres (Foto: Frente Ampla)
De acordo com a lei, qualquer mulher, com até doze semanas de gestação, pode optar pelo aborto. Para interromper a gravidez, é necessário que a gestante procure uma unidade de saúde, que a encaminhará a uma equipe formada por um ginecologista, um psicólogo e um assistente social. Passadas as consultas, a mulher deverá esperar cinco dias para anunciar sua decisão. O período é dado para reflexão das gestantes e tem se mostrado importante, já que 9% das grávidas que buscam o serviço desistem de abortar após conversas com a equipe na unidade de saúde.
O método abortivo determinado como prioritário se dá através por meio de remédios, Misotropol ou Mifepristone. “Por três motivos: porque as experiências científicas mostram que é o menos danos podem trazer à mulher; porque o aborto com medicamentos empodera a própria mulher, pois dispensa a participação de uma segunda pessoa; e o terceiro é que o médico se responsabilizava pelo acompanhamento profissional da paciente, mas era isentado da responsabilidade do aborto, o que foi um motivo importante para convencer a classe”, justifica Briozzo.
Após a aprovação da Lei, ginecologistas começaram a apelar pelo “direito de objeção de consciência”, previsto na Constituição uruguaia. O uso do recurso garantia ao médico o direito de se recusar a atender uma paciente caso isso ferisse sua moral. A prioridade dada ao remédio retirou o impacto político da medida. Os dois medicamentos podem ser adquiridos gratuitamente em toda a rede pública do Uruguai.
O êxito da lei deve garantir a continuidade do projeto, mesmo durante a gestão do recém-empossado presidente. “Não podemos confiar em Tabaré, mas acho que esse assunto é superado, o sucesso é inegável”, afirma Margarita. Para Briozzo, o Uruguai continuará respeitando o direito soberano de decidir das mulheres. “O presidente Mujica pensou na saúde e nos direitos das mulheres. Ele nos disse que as mulheres pobres não poderiam continuar morrendo por aborto. Não podemos e não vamos parar.”



O “não” à redução da maioridade penal

Em 26 de outubro de 2014, no mesmo dia em que no Brasil ocorria o segundo turno das eleições presidenciais no Brasil, a população uruguaia também comparecia às urnas para votar. Porém, no caso do país vizinho, a votação consistia em um plebiscito no qual os uruguaios deveriam responder com um simples “sim” ou “não” se o Uruguai deveria diminuir a maioridade penal de 18 para 16 anos. Ao final do dia, o “não” venceu.
Manifestantes uruguaios rejeitam a redução da maioridade penal (Foto: Flickr/Frente Ampla)
Manifestantes uruguaios rejeitam a redução da maioridade penal (Foto: Frente Ampla)
O argumento básico para os 53% da população uruguaia que recusaram a proposta era que a redução da idade penal não evitaria que crimes fossem cometidos no futuro. Na realidade, no entendimento de boa parte dos uruguaios, o cenário mais provável era exatamente o inverso: um aumento do encarceramento de adolescentes aumentaria, potencialmente, a reincidência criminal destes. A principal força por trás dessa conquista foi a comissão No a La Baja (“Não à Baixa”, em tradução livre) que, desde 2011, quando as frações mais conservadoras do Uruguai impulsionaram o plebiscito para a redução, iniciou o processo e a discussão na imprensa, no parlamento e junto à sociedade para conquistar o apoio para o “não”. Nesse momento, o apoio popular para a redução estava próximo a 70%.
“As pessoas estavam muito assustadas”, conta a advogada Fabiana Goyeneche, uma das líderes do No a La Baja e o principal rosto da luta contra a redução. “Nosso argumento é que não estávamos negando a existência dos delitos, todos havíamos sido vítimas de crimes, por vezes cometidos por adolescentes”, afirma ela, que diz ter sido vítima de assalto cometido por adolescentes, conhecendo esse medo e frustração por experiência própria. “Primeiro, essa medida de redução não vai evitar que eu seja vítima de crime novamente e estávamos absolutamente convencidos de que isso [a redução] pioraria a situação e que, se queremos mudar algo, a mudança penal e constitucional eram equivocadas”, diz a advogada. Porém, para os 47% restantes, essa era exatamente a crença: a solução para o problema da segurança pública residia na responsabilização penal de adolescentes por delitos. O que na realidade, não era algo novo na experiência uruguaia.
“No Uruguai sempre tivemos um 'problema' com a juventude”, argumenta Andrés Risso, militante do ProDerechos, coletivo que também tomou a frente das mobilizações contra a redução. “Isso começou no início do século 20, mas depois, na metade do século, através da imprensa, acontece a estigmatização dos adolescentes como delinquentes infanto-juvenis e sempre os mais conservadores e os mais punitivistas dos partidos políticos tentavam encarcerar essa juventude 'desviada'”. De fato, o Uruguai já havia testemunhado 17 tentativas anteriores de reduzir a maioridade penal e isso apenas entre os anos de retorno da democracia ao país, um período que correspondia a 26 anos até o momento em que o plebiscito passou a ser discutido, em 2011.
“Mas depois do ano 2000, a insegurança foi crescendo. Mesmo com o bem-estar econômico e social da população se estabilizando, os delitos continuaram crescendo e essa foi uma oportunidade muito boa para esses setores”, conta Risso, que novamente sugere que a imprensa é o principal motor por trás do argumento responsabilizando os adolescentes pela insegurança. “Em uma consulta popular, 40% da população afirmava que seu principal problema era esse: insegurança. E, através da imprensa, que colocava os delitos dos jovens nos minutos centrais [do noticiário], as pessoas acreditavam que o problema da segurança se solucionava com as crianças na cadeia.”
A fala de Risso é ecoada por Goyeneche. A advogada aponta que, mesmo com a taxa de crimes cometidos por adolescentes sendo muito inferior à de adultos, a exposição midiática sobre delitos juvenis cresceu exponencialmente. “Enquanto o número de crimes cometidos por adolescentes e adultos se mantinham, proporcionalmente, pouco alterados, a exposição da 'cronica roja' [noticiários sensacionalistas] – sobre os crimes de adolescentes aumentou em mais de 400%. Eles começaram a dedicar muito mais tempo a esses crimes e isso causou um temor nas pessoas – o que também é compreensível, porque estavam vendo essas notícias todos os dias”.
Para conseguir reverter o cenário de 70% da população apoiando a redução da maioridade penal, Risso conta que o ProDerechos entrou na campanha por já ser um protagonista nas conquistas anteriores em relação a direitos, como aborto e maconha, e por compreender que a redução seria um retrocesso em relação a todas essas conquistas. “Então, se tínhamos como certo que a redução estava consolidada, começamos a fazer contatos com as organizações que lutaram por todas as demandas anteriores a fim de gerar um debate político mais profundo sobre a segurança”.
E foi essa coordenação entre No a La Baja, ProDerechos e diversos outros atores sociais, como sindicatos e a própria igreja, que fez com que, no dia 16 de outubro de 2014, as ruas da capital uruguaia fossem tomadas por mais de 50 mil pessoas, naquela que foi a manifestação com maior adesão no país desde o final da ditadura. E, entre esses milhares, estavam muitos menores de idade. “Porque, claro, não podiam votar no plebiscito que estava tratando sobre eles. Todo o país estava discutindo sobre seus comportamentos e seu futuro, mas eles se sentiam, obviamente, diretamente afetados”, explica Goyeneche.
Fabiana Goyeneche, militante do No a La Baja  (Foto: Vinicius Gomes)
Fabiana Goyeneche, militante do No a La Baja (Foto: Vinicius Gomes)
Mesmo assim, muitas coisas jogavam contra a mobilização. “Apesar de a campanha pelo 'sim' não conseguir mobilizar nem metade das pessoas que nós mobilizávamos, os canais de televisão e os jornais estavam todos os dias fazendo campanha a favor deles”, relembra Goyeneche. Para Risso, outra desvantagem durante a campanha foi a falta de uma contraproposta. “Não tínhamos uma proposta para garantir a segurança da população e esse foi um ponto contra nós”, afirma Risso. “Em termos racionais, tínhamos muitos argumentos para demonstrar que a falta de segurança não é produto das crianças e adolescentes, mas a gente não se guiava por isso. Quando falamos do problema da insegurança, não estamos falando racionalmente, no entanto, a proposta de redução era tão primitiva e a segurança é um problema tão atual no mundo que, mostrando as evidências e criando um empoderamento da juventude e da sociedade civil, fizemos com que as pessoas que foram votar gostassem muito de estar colocando a papeleta”, explica.
Então esse é um assunto encerrado no Uruguai? Para Goyeneche, qualquer tentativa de voltar a esse assunto seria um “disparate jurídico” e, teoricamente, “inconstitucional”. Risso também acredita nisso, mas pondera: “Se não tivermos sucesso em alterar o impulso punitivista do Estado e dos políticos, ocorrerá algo similar, que não seja estritamente baixar a idade, mas sim recrudescer as penas aos menores”. E completa: “Estamos pensando no que fazer porque a demanda segue. Afinal, 47% das pessoas ainda acreditam na redução. Estamos nos preparando para um debate maior que tente contemplar essas pessoas.”

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