publicado em literatura por Mariana Keller
Como o escritor português interpreta a real cegueira da humanidade.
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Já na epígrafe de “Ensaio sobre a Cegueira”, Saramago mostra sua real interpretação para a cegueira exposta no livro. Mais do que um retrato de como as pessoas agiriam se não pudessem enxergar, o autor propõe uma análise da sociedade em que vivemos.
Saramago joga com a diferença entre as palavras ver e olhar. O olhar aparece como a própria visão, o ato de enxergar. E o ver aparece como a capacidade de observar, de analisar uma situação. E para ele, a maior dificuldade do ser humano é justamente conseguir enxergar além do superficial.
A cegueira apresentada por Saramago pode ser encarada como a alienação do homem em relação a ele mesmo. No livro, quando a cegueira branca se torna uma epidemia, os problemas da nossa sociedade que não queremos enxergar se intensificam de tal forma que chega a um ponto em que o civilizado se torna primitivo. As regras da civilização são quebradas e o instinto de sobrevivência toma conta do homem.
Durante o tempo em que ficam sem visão, o desespero dos personagens faz com que alguns deles usem artifícios sujos para conseguir sobreviver. A partir disso, observamos situações como segregação de grupos, abuso de poder pelos mais fortes, disputas por comida, ganância, traição, violência e abuso sexual. E nas entrelinhas, inúmeras chances de praticar a solidariedade.
E quais dessas situações descritas acima não são comuns em nosso cotidiano? Todos esses fatores citados são problemas da sociedade em que vivemos. Freqüentemente lidamos com abuso de poder das autoridades; desigualdade social, em que grande parcela da população vive abaixo da linha de pobreza e nem se quer faz uma refeição por dia; todo o tipo de violência, física, moral ou sexual, inclusive, feitas também pelas próprias autoridades. Sem contar os diversos tipos de preconceito que geram a segregação de muitas pessoas.
Enfim, nada do que os personagens de Saramago sofrem no livro é estranho para nós. E o que ele queria nos mostrar é exatamente isso. Na verdade, o autor fala da nossa cegueira cotidiana em relação a crise de nossa própria sociedade. Que ironia, tudo parecer mais visível quando não se pode enxergar. Só damos valor quando o problema nos afeta diretamente.
Através de uma escrita densa e chocante, Saramago mostra como o ser humano reage às próprias necessidades e principalmente às próprias incapacidades. Mostra como não conseguimos suportar a impotência e o desprezo causado por ela. Além disso, nos faz refletir sobre a moral, a ética e as nossas próprias convicções.
A cegueira dos olhos é apenas uma metáfora para a nossa verdadeira cegueira mental. A perda de um dos sentidos aparece como pano de fundo para fazer um retrato da nossa sociedade: individualista, oportunista, chantagista, preconceituosa e por vezes solidária. A única diferença é que sem a visão, essas características não se discriminariam por classe social ou raça.
“Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”
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