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No dia 8 de fevereiro, o fotógrafo completa 70 anos, "com uma bagagem colossal", como ele conta na entrevista exclusiva que concedeu à EOnline, por telefone, de sua casa, em Paris. Na conversa, Sebastião falou sobre sua história, sobre sua curiosidade em ver o mundo, seu processo de sensibilização aos ciclos da vida, sua relação com a idade e com a fotografia. "Na realidade, a maior viagem que fiz, em Genesis, não foram as 32 regiões que fui fotografar, e sim a viagem que fiz ao interior de mim mesmo, me descobrindo enquanto sujeito ligado ao meu planeta, a partir desses momentos de paz total. Esse é o maior presente que uma pessoa pode dar a si mesma".
A seguir, você confere este e outros trechos da entrevista com o fotógrafo que também completa 40 anos de fotografia.
EOnline: Além do sucesso de sua trajetória artística, o que mais você comemora nessa chegada aos 70 anos?
Sebastião Salgado: Comemoro a grande escola que frequentei durante esses anos. Creio que a principal coisa que aconteceu em minha vida não foram a escola primária, secundária, a universidade e a preparação para um doutoramento pela qual passei. Tive a oportunidade de ir a mais de 130 países durante toda a minha vida, e de uma forma muito intensa, pois passei tempos no interior de cada um desses locais, fotografando, trabalhando, conhecendo as pessoas. Então eu acho que esses setenta anos de escola de vida, para mim, foram de uma riqueza muito grande.
Chego aos 70 anos com uma bagagem colossal. Eu sinto muito o fato de as pessoas, quando chegam aos 60, 65, terem de se aposentar, pois essa é a época em que elas sabem mais. É quando elas já viram tudo e mais têm a contribuir. Então têm que deixar o lugar para os outros. É normal que se deixe o lugar em favor dos que vêm, mas é uma pena perder essa grande bagagem. No meu caso não será assim, porque sou independente e continuo fotografando, fazendo. A minha vida continua. Mas eu fico com pena que as pessoas se aposentem justamente nesse momento de grande acumulação de uma bagagem incrível. Nós precisamos encontrar uma maneira de aproveitar essa experiência acumulada, coisa que existia nas comunidades antigas: havia o conselho dos anciãos. Mas hoje nossa sociedade é muito técnica – e a tecnologia muda muito rápido -, existe uma valorização muito grande do jovem e os mais velhos, com tudo que têm a contribuir, não têm sido tão valorizados.
EOnline: O que veio primeiro: a curiosidade de viajar e ver o mundo, a fotografia, ou os dois apareceram ao mesmo tempo?
S.S.: A curiosidade de viajar e ver o mundo veio primeiro. Eu a tenho desde muito novo, lá no interior de Minas Gerais. Tenho sete irmãs e, entre todos, sou dos mais novos. Então minhas irmãs casaram - as mais velhas - e foram para longe. Eu ia visitá-las, meu pai me deixava ir. Eu adorava viajar. Como eu era o único filho homem, meu pai me deixava ir para eu ganhar experiência. Depois fui trabalhar em Vitória, no Espírito Santo, em uma empresa de exportação de madeira. Naquela época, a gente ainda cortava a mata para exportar e eu viajava muito pelo interior do estado do Espírito Santo, sul da Bahia, adorava viajar! Depois eu virei economista e fui trabalhar em Londres, na Organização Internacional do Café. Viajei muito para a África, em missões junto ao Banco Mundial.
Quando me tornei fotógrafo, eu apenas continuei! Me lembro quando ainda era estudante, em Vitória, porque na minha cidadezinha eu só fiz a primeira parte da escola secundária. Aí a segunda eu fiz no Espírito Santo. Eu tinha aula aos sábados pela manhã e, na parte da tarde, eu sentava na beira do Porto de Vitória e via aqueles barcos entrarem no canal, carregarem e saírem. Tinha todo aquele movimento de barcos. Eu tinha o sonho de ir mais longe. Eu via aquelas equipagens estrangeiras, aqueles barcos com bandeiras da Noruega, Japão, Panamá... e isso alimentava meu sonho de ir a esses países. E acabei indo mesmo! E a fotografia foi a continuidade dessa minha vida de curiosidade.
EOnline: As imagens expostas em Genesis remetem muito à sensação de silêncio, à imagem do artista encontrando a si mesmo por meio do contato com paisagens/povos remotos e intocados. Para você, o silêncio foi uma questão durante a expedição? Quais sensações passaram por você durante o trabalho que você percebe estarem impressas nas fotografias?
S. S.: O silêncio para mim foi uma coisa muito importante. Por muitas vezes eu me encontrei só, ou com meu assistente, mas meu assistente é uma pessoa muito discreta. Por muitas vezes, eu me colocava em um ponto e ficava lá por horas observando, aprendendo a conhecer realmente a natureza, a importância do mundo mineral e do mundo vegetal, dos ventos, das luzes... Na realidade, a maior viagem que fiz, em Genesis, não foram as 32 regiões que fui fotografar, e sim a viagem que fiz ao interior de mim mesmo, me descobrindo enquanto sujeito ligado ao meu planeta, a partir desses momentos de paz total. Esse é o maior presente que uma pessoa pode dar a si mesma. Para mim, Genesis foi um encontro comigo mesmo, dentro de um sistema maior que é o nosso sistema planetário, do qual sou parte.
EOnline: Nos trabalhos que antecederam Genesis, a figura humana era o motivo central em suas fotografias. Em Genesis, o planeta Terra é o protagonista. Depois dessa experiência, em algum momento você teve o desejo de fotografar mundos além de nosso planeta?
S.S.: Antes eu fotografava um só animal: o homem. Em Genesis eu ainda fotografei bastante o homem. Aproximadamente um terço das fotos ainda se refere a comunidades humanas. Mas fotografei também os outros seres vivos: animais, seres vivos vegetais, os seres vivos minerais, são todos vivos. Então encontrei um prazer imenso fotografando tudo que eu havia negligenciado até então. Eu tive vontade, em determinado momento ao iniciar o projeto, de sondar a possibilidade de embarque em uma cápsula espacial, nesses lançamentos russos ou americanos, para fazer uma fotografia da Terra a partir do espaço; ver como é o meu planeta visto de fora. Mas em primeiro lugar, eu não tinha os recursos, pois isso custa caríssimo. Os russos levam, mas paga-se uma fortuna. E eu também já não tinha mais a idade, pois no esforço do lançamento espacial você recebe uma pressão muito forte no corpo, e você precisa ser jovem para resistir a todo esse nível de atmosferas que acabam incidindo sobre você, então eu não poderia ir de qualquer jeito.
Eu não tive a vontade de ir fora da Terra para fotografar outras coisas, porque nosso planeta é tão rico, tão vasto... Os oito anos que passei fotografando Genesis não foram absolutamente nada. Eu fotografei apenas uma amostrinha muito pequena da Terra, mas de forma que esses oito anos pudessem resultar em uma representação coerente do planeta na hora de apresentar o trabalho, como apresentamos no Sesc, ou mesmo no livro que publicamos. Mas foi muito pouco. Eu poderia ter continuado por mais 30 ou 40 anos a fotografar Genesis e eu não fotografaria, ainda, tudo o que eu poderia ter fotografado na Terra. Existem tantas coisas maravilhosas a fazer. É uma pena que eu já esteja chegando ao final de minha vida, completando agora 70 anos. Se tudo der certo para mim, eu ainda tenho mais 20 anos, no máximo (se não houver nenhum acidente, entretanto). Com 90 anos, realmente, 95% das pessoas já se foram, então eu devo ter ido também. É pena que a gente não tenha mais tempo para ir e ver mais, mas eu estou contente com minha limitação terrestre!
EOnline: Na entrevista que você deu ao Roda Viva da TV Cultura, você descreve diversas e curiosas abordagens que utilizou, em Genesis, para se aproximar dos grupos de animais e fotografá-los. Nesse sentido, o que você acha que todos nós (humanos e outras espécies) temos em comum? A que você atribui sua destreza ao se aproximar dessas comunidades de animais não-humanos?
S.S.: Temos tudo em comum! Um dos primeiros animais que fotografei, em Galápagos, foi uma iguana. Olhando para ela, eu pensei: “Gente! Esse animal não tem nada a ver comigo”. E me deu mesmo uma pequena aversão. Pensei que aquilo era muito mais próximo de um dinossauro que de mim. Continuei a fotografar e, em determinado momento, ao utilizar uma lente especial – uma macro de 120mm – eu fotografei a pata da iguana. E quando eu fotografei essa pata, eu vi que era a mão de um guerreiro da idade média, coberta com aquelas escamas de metal, utilizadas para se defender. Era uma mão humana! E nesse momento eu compreendi que a iguana era minha prima. Que nós descendíamos todos da mesma célula. Ali eu simplesmente tive uma constatação da teoria evolutiva de Darwin. Salvaguardadas as devidas diferenças entre ecossistemas, a minha espécie evoluiu e a iguana evoluiu também, a ponto de parecermos muito distintos. Mas se voltarmos ao passado, veremos que saímos todos do mesmo lugar. E a iguana é a minha prima, sabe? Então eu passei a ter profundo respeito e admiração pela iguana e por todos os outros animais, que passei a ver como iguais.
Os outros animais somos nós mesmos. Nós somos animais. Todo mundo diz que nós somos uma espécie especial, racional. Não. Todo animal tem uma racionalidade profunda dentro de sua espécie, como nós temos dentro da nossa. E todos eles merecem um respeito incrível, porque fazem parte do nosso reino: do reino dos animais. Então, se dedicarmos certo tempo a observá-los, a respeitá-los, nós acabaremos também compreendendo a lógica deles, assim como eles compreendem a nossa. Então, a partir desse momento, nós teremos alguma coisa em comum e poderemos nos aproximar. Foi isso que me fez, de uma certa forma, me aproximar um pouco desses animais para fotografá-los. Eu me dediquei, em média, dois meses para cada reportagem, e eu acho pouco. Se pudesse ter dedicado seis meses para cada uma, ou um ano, eu teria aprendido mais, teria chegado mais perto, teria compreendido mais coisas das que compreendi.
EOnline: Na mesma entrevista, você disse que, ao fotografar “Trabalhadores”, já era possível enxergar, sobre as relações de trabalho e dinâmicas sociais, os efeitos da globalização, palavra que só “apareceria” posteriormente. Ao fotografar Genesis, qual palavra poderia aparecer posteriormente?
S.S.: Integração. Vai haver uma integração. Nós vamos ter que voltar em direção ao nosso planeta. Nós nos afastamos do planeta; viemos para a cidade. Vocês moram aí nessa grande megalópole que é São Paulo, então vocês não vivem mais no Brasil. Temos aquela floresta maravilhosa na Amazônia e, com muito poucas exceções, ninguém aí foi ver. Esses rios incríveis que o Brasil tem. O rio Paraguai é uma coisa maravilhosa! Aquele Pantanal é maravilhoso! As montanhas de Minas Gerais são uma coisa! E ninguém conhece; ninguém foi ver.
Nós saímos do nosso planeta e fomos para as cidades. Como os franceses estão aqui em Paris, os japoneses estão lá em Tóquio – e assim é com outras cidades. Ao nos urbanizarmos, nós saímos do planeta. Vamos ter que voltar. Vamos ter que fazer um movimento de retorno. Vamos ter que fazer a integração. Olha o que estou lhe dizendo: vamos ter que fazer! E essa palavra vai aparecer: a reintegração ao nosso planeta. Não creio que teremos condições de voltar fisicamente. Mas teremos que voltar espiritualmente. Essa volta espiritual terá de ser empreendida para que possamos respeitar e não destruir mais; para podermos reconstruir parte do que já foi destruído. Veja você essa quantidade de chuvas que houve alí em Minas, no Espírito Santo, em minha região, durante o final de 2013 e início de 2014. A seca que está havendo agora. O calor que vocês estão passando. A quantidade de tempestades que está havendo aqui na França. Cidades sendo atacadas pelo mar aqui na Grã Bretanha, com ondas incríveis que batem lá nas casas, onde nunca haviam chegado. Então, com esse aquecimento, com essa modificação, com essa destruição das florestas, com esse não-respeito ao nosso planeta, nós estamos provocando um desequilíbrio grande. Se quisermos sobreviver como espécie, teremos que fazer esse retorno. Essa reintegração vai existir e vai-se falar disso dentro de muito pouco tempo.
EOnline: Você relata, de uma maneira bastante emocionada, sua experiência com um gorila da montanha e seu fascínio ao perceber a própria imagem refletida na lente da sua câmera. E mais adiante você completa: “Se eu estivesse com uma câmera, fotografando nós todos aqui, a partir de um momento (...) nós seríamos uma unidade”. A que você atribui o fascínio que a imagem – e também a imagem de si mesmo - exerce sobre nós, primatas?
S.S.: Aquele gorila que fotografei, ao ver-se no espelho - ou na lente plana de minha câmera - pôde identificar, pela primeira vez, a sua imagem. Ali ele estava dando um salto no elo evolutivo de sua espécie. Nós, humanos, já demos esse salto há alguns milhares de anos quando, pela primeira vez, fomos à beira de um rio tomar água e pudemos identificar nossa imagem refletida no lago. Como espécie, deve ter havido alí a mesma emoção sentida por esse gorila. Esse momento também foi um salto no elo evolutivo de nossa espécie. Essa diferença de cinquenta ou cem mil anos - desde que o homem pôde identificar sua imagem refletida no lago até os dias de hoje, onde o gorila se vê em minha lente - de um ponto de vista histórico, é muito pequena. Se a gente imagina a evolução do nosso planeta – e apenas do nosso planeta, sem que se leve em consideração todo o universo –, constatamos que a nossa chegada, enquanto seres humanos, à vida de nosso planeta, talvez corresponda a um milímetro de história do universo. Então, nós chegamos há muito pouco tempo. A diferença entre nós e esse gorila, em termos históricos, não é nada: é quase simultâneo, segundo a projeção da vida em nosso planeta. Então, aquilo que aconteceu ainda está acontecendo. Assim, essa identificação está muito próxima a mim. Eu quase que vi a mim mesmo olhando dentro daquela lente. A respeito desse fascínio que a imagem exerce sobre o ser humano, isso eu não posso te explicar. Talvez fosse melhor fazer essa pergunta a um antropólogo ou um sociólogo, mas posso afirmar com certeza que ele existe. Quando você vai a um museu e vê as pinturas, os desenhos, todos eles são representações de uma realidade. Fotografias são representações, pinturas são representações, assim como os são os desenhos e filmes. Essas representações são importantes. No fundo, a história é muito importante. E as representações materializam a nossa história; a história do nosso entorno. E as nossas referências são as coisas mais importantes para nós. Essas imagens são representações do que a gente já viveu; das maneiras como já existimos. Então eu acho que esse é o caráter real das representações: o aspecto da memória. Nós precisamos da memória do vivido, e o vivido é materializado através da imagem.
EOnline: Você é otimista com relação à “gestão” humana sobre o Planeta Terra?
S. S.: Não, eu não sou. Sobre a gestão humana, não. Sobre a vida do planeta Terra, sim. Seja o que for que acontecer com o planeta Terra, ele vai sobreviver, se refazer. Ele tem uma capacidade muito forte de autorreconstrução. Nós vamos ter que tomar uma decisão muito forte, muito rápida e unânime. Todos nós vamos ter que chegar à essa conclusão e fazermos juntos. Fazermos com que os indivíduos e nossas governanças todas – municipais, estaduais, federais, planetárias, nossas empresas e organizações –, nós todos vamos ter que nos integrar a esse objetivo comum e mudarmos o nosso comportamento em relação à nossa gestão ao planeta, porque o que está em perigo é a nossa sobrevivência, não é o planeta; o planeta não está em perigo. O que está em perigo é a nossa espécie. Com esses acontecimentos, com os Tsunamis, explosão de vulcões, o rápido aumento no nível das águas... perante toda essa mudança, é a nossa espécie que está em perigo. O planeta não; ele se refaz e, mesmo que a gente desapareça, dentro de alguns milhares de anos outra espécie humana pode voltar a existir. Então é a gestão conosco mesmo que está em perigo, e não a nossa gestão em direção ao planeta. Vamos ter que cuidar de nosso comportamento em relação ao nosso planeta, senão não vamos sobreviver enquanto espécie.
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