O principal escritor moçambicano diz que é mais velho do que o seu próprio país
Mia Couto, ou António Emílio Leite Couto, 47, uma das vozes mais originais da literatura de expressão portuguesa contemporânea, é também biólogo formado. Moçambicano de nascimento, filho de portugueses, vive em Maputo.
Militante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) desde a sua fundação, com a qual lutou pela Independência contra Portugal e trabalhou durante o período da guerra civil, ele se diz hoje afastado da militância e saudoso da época em que a ex-marxista Frelimo, liderada por Samora Machel, "um homem a quem nós endeusávamos", cantava nas reuniões e congressos.
Em seu escritório de em Maputo, Mia falou sobre o exercício de humildade que é fazer literatura de ficção num país pobre como Moçambique e da influência da literatura brasileira sobre sua obra. "Aqui, o nascimento de uma literatura nacional é contemporâneo do nascimento da própria nacionalidade. Eu sou mais velho que o meu país. É uma circunstância histórica realmente singular."
Couto é autor de, entre outros, "Cada Homem é Uma Raça" (Ed. Nova Fronteira, 1990) e "A Varanda do Frangipani" (1996).
Por que você tem tantas profissões? Medicina, por exemplo, você estudou quantos anos?
Mia Couto: Medicina eu fiz até o segundo ano; estudei três anos, repeti o segundo ano e repetiria infinitamente o segundo ano. Eu tenho tantas profissões porque não quero ter nenhuma. É uma estratégia de não ser coisa nenhuma. Porque a partir do momento que eu me entendo a mim mesmo como sendo biólogo ou sendo escritor ou sendo jornalista ou sendo outra coisa qualquer, eu acho que fecho algumas janelas para o mundo e passo a ter uma relação que depois se encaminha sempre por aí, e eu não quero. Acho que é um empobrecimento.
É evidente que eu posso fazer isso por uma felicidade conjuntural. Não mereço isso, mas posso fazer isso. Estou vivendo a um certo tempo num certo lugar. Sobre a segunda pergunta, eu tinha uma grande paixão. Era escrever. Desde menino que eu tenho essa idéia que uma parte da minha alma só se revela na escrita. Então, eu tinha uma certa idéia de que poderia ser psiquiatra. Esse era o meu desejo.
Ia para a medicina para ser psiquiatra, mas depois apercebi-me de que a imagem que eu tinha de psiquiatria era muito romantizada. E aquilo que eu depois fui visitar era um mundo horrível, um mundo de prisão, e houve um grande desencantamento com isso. Segundo, eu era já membro da Frelimo, já era militante da causa da independência e isso para mim era muito mais empolgante.
Eu vivia isso muito mais do que qualquer outra coisa. Portanto, quando chegou o momento da pré-independência, 1974, um período de transição, a Frelimo pediu-me para que eu, como se dizia na altura, me infiltrasse. Havia uma campanha de infiltração nos órgãos de informação, que estavam nas mãos dos portugueses. E eu fui destacado para essa tarefa. Gostei muito de fazer isso, porque tinha idéia de que estava fazendo qualquer coisa ética, em nome do país.
Como acontecia essa infiltração?
Couto: Os quadros que a Frelimo pensava que podiam contrariar esse domínio que os portugueses ainda tinham, que era o período de transição, era importante, e eu acho que isso de fato, no conjunto, essa campanha de infiltração, como foi chamada, foi importante porque ajudou a criar consciência e a contrariar aquela visão que ainda era dominante de que Moçambique não só não tinha o direito como seria um grande desastre se este país chegasse à independência.
Mas o que você fez exatamente para se infiltrar?
Couto: Eu pedi um emprego. Estava no banco dos desempregados lá no jornal e fui escolhido entre vários candidatos. Pedi emprego para a direção de um jornal chamado “A Tribuna”. O termo “infiltrar” era usado naquela altura para significar algo como uma pequena formiga corroendo, subvertendo um edifício que estava completamente criado para fazer uma certa coisa. Então nós havíamos de contrariar esse domínio. Mas não foi uma coisa heróica porque a direção desse jornal era simpática à causa. Então eu não corri grandes riscos com isso.
Mesmo tão envolvido com uma causa política, você encontrou uma dicção muito original e não panfletária para sua literatura. Como conseguiu?
Couto: Acho que não separei as duas coisas. Não havia sequer essa preocupação em nós. O nascimento de uma literatura nacional é contemporâneo do nascimento da própria nacionalidade. A maior parte dos escritores moçambicanos foram em algum momento jornalistas na sua vida.
Eles são ou correspondem a um seguimento desse país que faz fronteira com a modernidade, eles são quem está abrindo portas para a modernidade, para o universo da escrita. E isso foi vivido na altura de uma maneira muito empolgante. Nós acreditávamos mesmo que fosse uma ilusão, acreditávamos que estávamos fazendo uma coisa ética, estávamos ajudando a criar uma nação. E isso tinha algum sentido.
Nós acreditávamos nisso porque eu sou mais velho que o meu país. É uma circunstância histórica realmente singular. Eu assisti o parto da própria nação a que pertenço e também fiz poesia panfletária. Confesso que fiz poesia panfletária, e fiz poesia a serviço do país, fiz a letra do hino deste país.
O hino nacional de vocês está mudando exatamente agora, não é?
Couto: É. Está mudando agora. Tem uma história até muito engraçada. Em 1981, 1982, o presidente Samora, que era vivo na altura, pensou que o hino nacional não funcionava. Era um hino muito partidário. Começava por “viva, viva a Frelimo”. E ele tinha já a apreciação de que nem todos os moçambicanos seriam da Frelimo. Então, era preciso um hino que cobrisse os moçambicanos todos.
Ele (Samora) colocou seis poetas e seis músicos numa casa, fechou-nos lá e disse “vocês têm que sair daqui com várias propostas de hinos feitas”. E fomos fechados numa casa aqui na Matola e aquilo era ótimo. Aquilo não era uma prisão, era ótimo porque nós tínhamos comida, numa altura em que não havia comida. E, portanto, guardávamos comida para a nossa família quando nos iam visitar; tínhamos uma piscina na casa, vivíamos ali bem. E quando vinham as sirenes, nós corríamos para trabalhar.
Eles (a Frelimo) vinham nos visitar para ver como era que estava sendo feito. E produzimos meia dúzia de hinos que ficaram ali e nunca mais foram aprovados. Agora, por causa do novo clima político que a partir de 1995 passou a existir, um clima de democracia aberta e multipartidarismo, passou a ser mesmo obrigatório que este país tivesse um outro hino. Pelo menos uma outra letra.
Depois fez-se um concurso aberto e eu fiz parte do júri que acolheu essas propostas, mas eram todas muito fracas. E então alguém se recordou de revisitar aquelas propostas (da época de Samora), e foi uma daquelas que foi escolhida. Então, há razões que ajudam a triar essa idéia de que não é separável a literatura e a militância.
De todo modo, sua prosa de ficção hoje não é literatura de militância.
Couto: Certo. Esse foi um processo de tomada de consciência, por exemplo, que nasceu sempre em rupturas, em pequenos conflitos. Porque hoje eu tenho uma relação com essa militância já afastada, crítica, o que não quer dizer que não tenha essa militância. A dos outros mudou e a minha também, se calhar, mudou. E o primeiro livro de poesia que eu publiquei já foi numa briga, já foi numa zanga. Me irritava muito o fato de que toda poesia que falasse do eu, que falasse da intimidade fosse tida como uma poesia burguesa. e eu escrevi este primeiro livro em 1983, já como que em oposição a isto. Era uma poesia lírica e intimista, que falava do amor.
Teve medo de que a política engolisse o escritor?
Couto: Não, nunca sequer ocorreu-me de pensar nisso, porque enquanto a política foi uma coisa importante na minha vida, era importante porque eu me divertia, porque eu era aquilo. O processo depois de sedimentação, de diferenciação dessas duas áreas ocorreu tão naturalmente que não foi fruto de reflexão não, eu não me sentei a pensar no assunto.
Foi acontecendo e eu fui aprendendo que cada um, cada coisa tinha seu lugar. E também, eu acho que as circunstâncias de Moçambique ajudam muito, porque tu aprendes que ser escritor é uma coisa pequena, que faz muito bem ao ego. Os escritores pensam sempre que são muito importantes, que o mundo depende do que eles estão fazendo.
Aqui tu aprendes que não é tão importante, porque o universo dos que lêem é tão pequeno, o livro circula em áreas tão pequeninas que é uma espécie de aprendizagem de humildade que faz bem. Então tu tens, se queres contatar com outros, se queres ter outras áreas de comunicação, tu não podes depender do livro.
E por isso eu comecei a envolver-me com grupos de teatro, a trabalhar na rádio, na televisão, para ver se aquilo que eu queria dizer podia ter outros canais que não fossem só o livro. Aqui é muito importante que o escritor aprenda a não ser escritor, a deixar de ser escritor. Isso é um aprendizado que eu acho que nos faz muito bem a todos nós.
Você sempre estudou aqui? Nunca saiu? Você se diz muito influenciado pela literatura brasileira. Como foi?
Couto: Estudei aqui, e sempre vivi aqui. Eu acho que quando tomei consciência dessa contaminação pela literatura brasileira, eu já estava “doente”, no sentido bom. Acho que a minha geração e a geração anterior foram muito marcadas pela literatura brasileira. Havia uma certa redescoberta com Graciliano, com Jorge Amado, de que, afinal, a língua pode ser outra coisa.
Há quem esteja trabalhando a língua de outra maneira; e há outras culturas que pegam nesta coisa que é o português para trabalharem de outra forma. E não só. Também as temáticas políticas, no caso particularmente de Jorge Amado, eram coisas que coincidiam com uma época histórica aqui que era preciso pôr em causa. Certo tipo de valores. Então, quando eu começo a escrever, já havia toda esta envolvência, que era mais forte.
O ambiente literário de Moçambique estava muito mais fortemente ligado ao do Brasil do que ao de Portugal. E por uma outra razão também, a censura, que era muito forte em Portugal, aqui, nesse aspecto era mais tênue. Eram vendidos aqui livros que em Portugal eram proibidos. Então, era mais fácil. Tudo, até aquela revista “O Cruzeiro”, lembra? Era uma coisa que tinha aqui uma difusão enorme. Quando chegava aqui “O Cruzeiro”, era uma espécie de janela para um outro mundo que era muito familiar, e nós nos reencontrávamos, mais do que lendo as coisas que vinham de Portugal.
E a influência de Guimarães Rosa?
Couto: Primeiro tenho que falar de Luandino Vieira, o escritor angolano, que é o primeiro contato que eu tenho com alguém que escreve um português que é arrevesado, que está misturado com a terra. E Luandino marcou-me muito. Foi o primeiro sinal da autorização de como eu queria fazer.
Eu sabia que eu queria fazer isso, mas eu precisava de uma credencial do mais velho que disse “esse caminho é abençoado”. E ele confessa que foi autorizado, também ele, por um outro, um tal João Guimarães Rosa que eu não conhecia, porque não chegavam aqui estes livros. Depois da Independência deixaram chegar livros do Brasil e é uma coisa irônica, do ponto de vista histórico.
Houve mais cruzamentos e trocas de livros no tempo colonial e fascista do que depois da Independência. Então, eu tinha este fascínio. Eu tinha que conhecer este João, este tal Rosa. E um amigo meu trouxe as “Terceiras Histórias”. E de fato foi uma paixão. Foi de novo alguém que dizia “isto pode-se fazer literariamente”. Mas, como tu dizes, eu já queria fazer isto, porque já estava contaminado primeiro por este processo que não é literário, é um processo social das pessoas que vêm de outra cultura, pegam o português, renovam aquilo, tornam a coisa plástica e fazem do português o que querem.
É um processo muito livre aqui. As pessoas misturam português e como dizia uma camponesa da Zambézia, “eu falo português corta-mato”, uma prova de atletismo que se faz através do mato, de trilhas. E pronto. Eu não faria isto se não estivesse marcado antes de Guimarães Rosa, antes de Luandino Vieira, se não estivesse marcado por isto que é um processo que não é só lingüístico, não é, nem letrado.
Para sua geração, é como se fosse impossível ter vivido aqui sem se envolver com o movimento pela Independência e com a guerra civil?
Couto: Não havia outra possibilidade. Isso era uma espécie de solução existencial. Tu só eras se tu militasses. Nem nos colocávamos a questão de optar por outros caminhos. E nós casamos de tal maneira com esse período da história que eu agora fui para o Congresso da Frelimo e tenho muitas críticas. Eu acho que já não sou da Frelimo, porque acho que a Frelimo se converteu em outra coisa. Eles próprios confessam, já são sociais-democratas.
Qual a sua principal crítica ao partido?
Couto: Acho que a Frelimo passou a ter um discurso falseado, mascarado, com objetivos ainda socialistas quando eles todos já se tinham convertido em empresários de sucesso. Eu já não estou lá. Mas quando a Frelimo cantava era uma coisa que me fascinava. Lembro da primeira vez que eu vi Samora Machel, que era um deus para nós, nós endeusávamos aquele homem. Era nosso Guevara.
E quando nós fomos como jornalistas ter com este homem na Tanzânia, no percurso, todos nós íamos pensando em como íamos impressionar aquele homem. Queríamos que ele gostasse de nós. E cada um pensava no que dizer: “olha, eu sei parte dos discursos dele de cor, eu sei citar coisas da Frelimo”. E quando chegamos ao pé dele, a grande impressão que eu tive é que ele era um homem de um grande magnetismo, uma pessoa que exalava esta aura, e era muito pequenino, baixinho, com uma grande energia. E a primeira pergunta que ele nos fez foi “algum de vocês sabe cantar?”. E nós não sabíamos.
Como intelectuais sabíamos fazer coisas políticas etc. Esta coisa depois me fez pensar. Ele nos disse: ‘como é possível um homem que não sabe cantar, que não sabe dançar nada? Como é que vocês podem ser pessoas se não sabem cantar nem dançar? O que é que sabem fazer?” Então, nós sabíamos fazer coisas que, de fato, eram um pouco chatas, não é? Um pouco aborrecidas. E este era o grande fascínio, a Frelimo cantava.
E agora, quando chego a este Congresso e começam aquelas canções e começam aqueles velhos militantes que eu conheci e que eram jovens, todos, naquela época, estava ali um pedaço da minha própria história, e estavam ali os mortos, que sempre nos criam este sentimento religioso com o mundo, não é? Porque estavam presentes esse mesmo Samora, esses heróis nacionais, estavam sendo enfocados nesse clima de celebração, quase de missa. E eu pensava assim, eu não posso deitar essa parte da minha vida fora, não posso. Porque, senão, fica um vazio. Se eu não estivesse atento e vigilante, estaria dizendo os mesmos “vivas”.
Então, estou disponível para a defesa de certas coisas, mas tenho que passar pelo crivo da minha consciência de hoje. Então, a Frelimo credenciou-se desta maneira: “nós somos o país”. De fato, a Frelimo eram todos os moçambicanos que comungavam com essa grande causa. E isso foi bom enquanto um momento de grande euforia, mas, depois, passou a ser uma coisa má, antes mesmo da morte de Samora Machel. Quando depois tu tinhas o que já não era um plano de gerar, era um plano de gerir, e quando tu tinhas que instalar modelos, fazer a governação, não era bom, para um sentido crítico que devia estar presente. Pensar sempre que nós somos o país, acomoda. E deixa de ser verdade.
A guerra teria surgido por conta do descontentamento de vários grupos com a Frelimo?
Couto: Num certo momento particular, eu acho que todo o povo moçambicano comungava com a Frelimo. Era o grande objetivo nacional. Mas depois o que surgiu foi que alguns dos dirigentes da Frelimo se tinham afastado por causa do exílio, por causa de serem formados na Europa, por causa de terem sido atraídos pelos modelos soviéticos de experiência e distanciaram-se culturalmente do país. E o que eles desconheciam eram suas próprias raízes. Aprenderam a desconhecer isso. E os grandes erros tiveram uma razão mais cultural do que política, se é que se pode separar assim.
Os modelos de governação que foram instalados, quer fossem primeiro socialistas quer fossem depois capitalistas eram deslocados de nós, não despertavam aquilo que era a cultura mais profunda, que era a alma mais funda deste país. Eu acho que quando se fala em África, e agora já posso falar em África, normalmente se fala em África de uma maneira tão simplista, como se fosse uma coisa só. Mas em geral em África não se dá a devida importância àquilo que é a religião, o fator religioso.
Não posso compreender os brasileiros se não compreender aquilo que determina muito da alma brasileira, que é a religião, a católica no caso. E eu não posso compreender a África se não compreender uma coisa que nem tem nome, que é a religião africana, que chamam às vezes de animista.
Os próprios africanos também não entendem que têm de procurar esse entendimento do que eles são, das suas dinâmicas atuais, a partir deste entendimento do que é a sua ligação com os deuses. E eu acho que a Frelimo falhou principalmente aí. A guerra que se instaurou foi também uma guerra religiosa, era uma guerra de identidade, à procura de identidade. E isso explica a violência que essa guerra assumiu.
A guerra começou depois de quanto tempo?
Couto: Começou quase logo. Não se sabia bem. Eu acho que isto nem se pode chamar guerra, isso que houve aqui com o nome de conflito generalizado, de violência contra um Estado central e centralizador. Em 1977 tivemos a guerra contra a Rodésia, o atual Zimbábue, uma guerra clássica, mas por baixo dessa guerra já estavam sendo gerados os conflitos que depois se encaminharam para essa coisa da Renamo e da guerra civil.
Que você acha que teve origem na religião?
Couto: Eu acho que teve várias origens, uma delas é a religiosa. A Frelimo era um regime marxista. Combatia a religião de frente. Não chegou a atuar como a União Soviética porque não conseguia, não tinha capacidade, mas queria. O que foi mais grave foi o que foi mais silencioso e que não era visível, porque era essa guerra contra esta religião africana, que é a religião dos antepassados. E aí não há uma instituição.
Esta religião africana não tem vínculo com o Vaticano, não tem um corpo separado. O líder religioso é ao mesmo tempo o líder político, é o que faz a gestão da terra, são os chefes das famílias. Essa agressão acabou por ter conseqüências que eram logo imediatamente políticas.
Você percebeu isso logo?
Couto: Não. Demorou Percebi isso quando já era demasiado tarde. É sempre assim que acontece na minha vida, quando percebo alguma coisa já é demasiado tarde. Eu acho que na altura só tínhamos sinais. Eu percebia que alguma coisa não estava funcionando bem, não só do ponto de vista religioso como do cultural.
Por exemplo, as missangas foram retiradas como objeto de troca pela comissão agrícola, porque se achava que aquilo não tinha importância, que aquilo não tinha o valor monetário que se acreditava, e isso foi um dos erros (A população rural usava missangas como moeda de troca, ao invés de dinheiro.0 Eu percebia que alguma coisa não estava bem. Era um poder que era cego em relação a tudo isso, por isso não deu resultado, mesmo que politicamente tivesse boas intenções.
Ninguém, na época, conseguiu enxergar isso?
Couto: No início, as vozes críticas eram poucas, depois as vozes que se levantaram, principalmente contra as aldeias comunais, que foi uma grande questão. A Frelimo queria organizar o campo de acordo com um modelo de povoamento de território retirado de outros países. A idéia das aldeias comunais foi um desastre. Tinha uma certa lógica da governação, a coisa centralizada. Não podes fazer hospitais e escolas em todos os povoados.
Não funcionou porque foi feita de uma maneira apressada, administrativa. Não foi feita por um esquema de sedução, em que se criavam atrativos, e depois as pessoas se juntavam voluntariamente a isso, não é? Aqui a terra é uma igreja, os mortos são enterrados. E aquele é o lugar onde eu me comunico com o divino, com o sagrado. O valor da terra aqui tem que ser também dimensionado nesse aspecto.
Neste projeto que eu a estava a mostrar, provavelmente é preciso retirar pessoas de dentro dessa região do parque. Há 20 mil pessoas vivendo ali. Mas quando tu falas nisso, tu tens que pensar que a pessoa está ligada à terra por este outro vínculo, que não tem substituição possível, não tem compensação possível, é a mesma coisa que chegar no Brasil e destruir uma igreja.
O poder que têm os chefes tradicionais, embora eu não goste do termo, “chefes tradicionais” no poder rural continua presente. Este é um país rural, um país dominado pela oralidade, é um país em que a governação moderna só administra uma faixa, um verniz. De resto, é governado por outras forças, por outras lógicas.
Esses chefes tradicionais têm o poder que têm porque lhes foi conferida esta tarefa de gerir a sua terra, e pelos deuses, eles são simples instrumentos dos deuses para administrar a terra. Quando tu tiras um indivíduo do seu lugar, ele perde esse poder. Portanto, o assunto se torna imediatamente político também, torna-se um assunto de poder. E por isso não podes mexer nesses mecanismos de qualquer maneira.
Havia muitos brancos nesse grupo da sua geração?
Couto: Eu sempre fui um dos poucos brancos. Os brancos neste país sempre foram uma minoria que não conta.
Na época da crise mais intensa, você era discriminado? Seus pais são portugueses?
Couto: Meus pais são portugueses. O racismo colonial era contra os mulatos, e os pretos. Eu era tido como branco de segunda, porque nasci aqui. Eu não tinha acesso a certas funções no governo colonial. Meus pais eram brancos de primeira, e eu era branco de segunda. Meus filhos seriam brancos de terceira, e aquilo estava hierarquizado.
Era um sistema que discriminava mais os pretos. Mas criou-se uma porta que determinou a diferença na comparação com a colonização inglesa. Aqui tu podias, sendo preto, ser branco. Podias ser assimilado. E passar a ter privilégios que tua raça não tinha. Se abdicasses daquilo que seria tua cultura, tua religião, o teu nome, porque tinhas que mudar de nome.
O fator raça, era um fator, mas não era o fator. Era um fator pelo qual se podia transitar. Essa é a diferença do racismo inglês, que tu sendo preto não tens saída, és preto sempre. Podes ser educado como preto, mas lá no meio dos pretos. Depois da Independência, eu nunca fui objeto de racismo, nunca fui discriminado assim.
No cotidiano, não sinto. Esqueço-me da minha raça. Agora, de vez em quando, sim, há casos em que pontualmente, por razões de um certo oportunismo, por razões de quando a porta é estreita e só pode passar um. Aí lembram-se que eu sou branco e que portanto eu não seja tão representativo assim. Também tem uma grande força aquilo que falamos ontem, o modelo americano da ação afirmativa.
Isso tem força?
Couto: Tem força em alguns momentos. Não é uma política oficial, como é, por exemplo na África do Sul, mas tem. É usado como argumento quando é preciso.
Você concorda com essa política?
Couto: Eu, não. Eu não sei pensar essa política lá no lugar onde ela nasceu. Aparentemente ela nasce com propósitos completamente diferentes dos que estão sendo usados ou aplicados aqui. A ação afirmativa nasce para impor direitos de minorias. Aqui é usado pelo direito da maioria. O que é uma coisa estranha. Por exemplo, o rap, que é um movimento de revolta contra quem está no poder aqui tem tanta força porque mesmo os que estão no poder, sendo pretos, são brancos.
Neste sentido de que as pessoas que se sentem excluídas culturalmente e para terem acesso a certa posição social têm que copiar, têm que falar português, por exemplo. Tem que abdicar de sua cultura original e isso cria um sentimento de intranqüilidade. E no fim as pessoas acham legítimo um movimento de ação afirmativa porque estão lutando contra uma coisa que é quase fantasmagórica. Um movimento de ação afirmativa aqui devia defender a mim enquanto minoria, não é?
Mas você é o colonizador, não é?
Couto: Mas eu poderia ser chinês. Imagine que eu fosse chinês. Há moçambicanos chineses. São uma minoria ínfima, e eles podiam usar esse mecanismo da ação afirmativa para dizer “ah, eu também tenho que estar presente, que estar representado não sei onde”. E sucede o contrário disso.
Como seus pais reagiram na época da Independência? Eles pensaram em sair daqui?
Couto: Eles saíram, quatro vezes, sempre definitivamente e voltavam para Portugal, pois este já não era o país que eles conheciam, de que aprenderam a gostar.
Eles saíram por medo?
Couto: Não, por desencontros.
Como foram tratados os portugueses naquele momento?
Couto: Naquele momento havia 250 mil portugueses em Moçambique e saíram quase todos logo nos primeiros dois, três anos da Independência. Saíram em massa. Chamavam de o período dos contentores (“contêineres”), porque eles metiam todas as suas coisas, os seus pertences, toda a sua vida, naqueles grandes caixotes e iam de barco ou de avião.
Teus pais saíram também?
Couto: Não, nesse período, não. Na minha casa, eu tive sorte, porque quando meu pai saiu de Portugal, também já saiu por razões políticas, de oposição. Meu pai colaborou na medida que ele pôde com a Independência de Moçambique. Ele sempre nos dizia “vocês são outra coisa, são deste país, é como se eu tivesse dado filhos para uma terra que já não é minha. Ele sabia que isso ia acontecer. A minha mãe também.
São quantos filhos?
Couto: Três. E todos nós nos engajamos e demos a vida, arriscamos algo mesmo por este país, e lutamos contra aquilo que era Portugal. Nesse primeiro momento, havia uma ignorância profunda, os portugueses que viviam aqui genuinamente acreditavam que isto era Portugal. E foi uma surpresa. Para eles, eles foram vendidos, é isso que eles diziam.
Houve uma revolta, logo no período de transição para a Independência. Nesse mesmo dia houve uma revolta que se chamou "sete de setembro". Ficou conhecida assim. Por exemplo, minha casa foi invadida, foi partida, porque achavam que meu pai, porque era um jornalista que escrevia coisas a favor da Frelimo, era um traidor. Então, a idéia era que nós, os portugueses, nós, os brancos, estávamos sendo traídos, e os principais traidores, como eles não reconheciam na outra raça a capacidade de ser sujeito, eram os brancos.
A sua raiva toda era principalmente contra os de sua própria raça, que eram tidos como traidores que venderam o país à Frelimo. Aí tivemos que fugir. Tivemos que levar meu pai para a Beira, e ele ficou lá um tempo, até que a Frelimo tomou conta da situação novamente. Mas isso era uma situação excepcional. O resto dos portugueses, não é que eles tenham sido maltratados, mas eles achavam que o país não estava preparado, que os moçambicanos não estavam preparados, que vinha um desastre, que eles estavam dentro do Titanic e antes que aparecesse o iceberg eles tinham que sair.
E fugiram. Era inevitável. Hoje em dia há aquela tendência de tentar corrigir isso, quer dizer, de tentar retificar a história. Alegam que talvez se tivesse tido uma política de transição maior. Isso não é verdade. Foi uma transição bem feita. Não houve violência, exceto nos casos de que já falei, e que foi provocada por eles mesmos.
Você vive em um país em que 50% da população não sabe ler nem escrever. As edições de livros têm tiragens baixas, mil exemplares em média. Como isso te afeta?
Couto: A média chega a 3 mil exemplares. Obviamente é triste que haja esta condição de que a maior parte das pessoas não sabe ler ou não tem acesso aos livros. Por outro lado é um desafio que te obriga a perceber, como eu já disse antes, que tu tens que ter outros canais, saber usar outros canais. E eu acabo por transformar isso que é uma coisa negativa em uma coisa que é positiva para mim.
Por exemplo, a minha passagem pelo teatro foi uma das melhores escolas que eu tive, eu escrevia para um grupo de teatro, ao qual pertenço há 14 anos. E escrever para eles, e depois perceber como é que as pessoas reagiam ao ver as peças de teatro aqui na cidade, nas zonas rurais, quais eram as diferenças, me ensinou muito sobre o que é se comunicar com os outros.
Portanto, tu tens esse desafio, tu tens que perceber que a grande fronteira não é entre o analfabetismo e o alfabetismo, é entre o universo da escrita e o universo da oralidade. Esta é a grande fronteira. E o universo da oralidade não é uma coisa menor, é uma grande escola, é um outro sistema de pensamento. E é neste sistema de pensamento que eu aprendi aquilo que é mais importante hoje para mim.
Inclusive a maneira como eu escrevo nasce desta condição de que este é um país dominado pela oralidade, um país que conta histórias através da via da oralidade. E hoje eu me sinto assim, eu não tenho nenhum território, neste aspecto de quando algo me fascina. Por exemplo, eu leio Guimarães Rosa, eu leio 50 vezes a mesma página, porque aquela escrita me atira para fora da escrita, me empurra para fora da página, porque me acendem vozes dos contadores de histórias da minha infância.
Você acha que falta em Moçambique um escritor, uma voz negra?
Couto: Tenho uma opinião dividida. Por um lado, eu acho que não tem nenhum sentido falar em raças quando tu falas em literatura. Obviamente quando tu perguntas "falta", é "falta" para quem? Para a própria literatura? Essa seria a grande questão. Será que a literatura vive desse tipo de representações? Por sexo, por raça? Mas, por outro lado, eu entendo que o país precisa se rever naquilo que é alguém que constitui sua raça dominante. E entendo que isso é um processo que tem que acontecer e já está acontecendo, não pode acontecer administrativamente, não podes promover.
Obviamente os grandes escritores de Moçambique são vários, estão surgindo e são todos de raça negra. Eventualmente haverá um mestiço. Porque não há nenhuma hipótese. Só para se ter uma idéia, se os brancos moçambicanos forem 5 mil, já são muitos. Em um país de 17 milhões de habitantes, isto não tem significância nenhuma, este é um grupo condenado à extinção. Os mestiços serão quantos? 30 mil? 40 mil?
Existe miscigenação aqui?
Couto: Depende das regiões. No litoral, sim. No interior, não. Em algumas províncias onde a presença portuguesa é mais antiga, como a Zambézia ou Inhambane, há mais. Mas o problema para mim, para fechar esse trecho sobre a literatura, eu acho que acontece é que mesmo os pretos que estão afirmando-se como grandes nomes da nossa literatura são mulatos do ponto de vista cultural, são todos eles urbanos, nasceram na língua portuguesa já, é raro o que sabe falar uma língua que não seja o português. É assim que eu também me sinto. Não me sinto como um representante da raça branca, eu sinto que sou um mulato, culturalmente.
Você já leu alguma crítica sobre a maneira como você representa o negro na sua literatura? Sobre como o realismo mágico, que você utiliza muito, facilitaria essa tarefa?
Couto: Acho que isto é um disparate. O escritor é um construtor de mundos inventados. Desse ponto de vista aí, eu nunca deveria escrever sobre mulheres, por exemplo. Ou uma mulher nunca poderia construir personagens masculinas. No fundo, a literatura é a negação disso mesmo. A negação da nossa condição, um urbano não poderia escrever sobre o mundo rural.
O Guimarães Rosa, que era um urbano, não podia escrever sobre o sertão brasileiro. Eu, quando escrevo, na minha cabeça, estou construindo personagens, e obviamente que são negros, quase todos eles, a não ser que eu identifique-me de outra maneira. Porque este é o meu mundo, é o mundo que eu vivi, que eu nasci e, por osmose, quando chego à Europa fico admirado primeiro por uma sensação de ver tantos brancos.
É a primeira reação que eu tenho, de que não estou no meu lugar, porque há muitos brancos. Então, naturalmente na minha cabeça, quando construo um personagem, ele surge negro, porque sou moçambicano. Mas pode surgir outra coisa, claro. Acho que é um disparate ler um livro assim.
E por que o apelido "Mia"?
Couto: Por causa dos gatos. Eu era miúdo, tinha dois ou três anos e pensava que era um gato, comia com os gatos. Meus pais tinham que me puxar para o lado e me dizer que eu não era um gato. E isto ficou. Eu, lá fora, sou sempre esperado como preto ou como mulher.
Certa vez, numa delegação do Samora Machel, que foi daqui visitar Fidel Castro, eu fui o único homem na vida a quem Fidel Castro deu saias e colares e brincos, pensando que eu era mulher. Ele deu prendas a todos, e a minha caixa. Isso me diverte. Essas questões de identidade me divertem muito, quer seja do sexo, quer seja da raça. Eu não tenho raça. Minha raça sou eu mesmo.
Você acha que deveria haver mais contato entre o Brasil e Moçambique?
Couto: Tem que forçar nas áreas que é preciso forçar. Mas nas nossas áreas algumas coisas podem depender de pessoas. Eu não acredito nas instituições. Nesse aspecto as instituições vão seguir caminhos divergentes. O Brasil será cada vez mais América e nós seremos África. E ainda por cima nós somos África voltados para o outro lado.
Nós estamos de costas, geograficamente, para o Brasil. Então nós já somos Índia, já somos Oriente. Temos que nos inserir numa outra coisa, num outro universo. Agora acho que pelo fato de as relações históricas e culturais, estas que fizeram com que eu encontrasse um irmão, eu falei em Guimarães, mas há outros importantes como Caetano, Chico Buarque, que tiveram uma influência enorme.
O Chico, o Caetano, o Gilberto, essa gente nos fez ter orgulho desta coisa. Porque até certa altura até tínhamos vergonha de falar a língua do colonizador, a língua dos mais pobres mostrando que essa língua era rica e brilhava quando era cantada. Então isso tem que ser continuado, e isso sempre foi feito contra a corrente, sempre foi feito por pessoas e não por instituições.
Trechos desta entrevista foram publicados no caderno “Mundo” da “Folha de S. Paulo”, em 21 de julho de 2002.
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