quarta-feira, 9 de abril de 2014

SOBRE MENINAS E LOBOS

 por Dulci Lima


Essa noite tive pesadelos. Velhos fantasmas voltaram para me assombrar. Desde que soube que estava grávida de uma menina, esses fantasmas me rondam. Como proteger minha filha?




Dos 5 aos 11 anos passei por três situações de abuso sexual. Não vou relatar detalhes por uma série de razões que não vem ao caso aqui. Nem mesmo vou falar sobre o tamanho do estrago que isso causou na minha alma. Cabe apenas dizer que em nenhuma delas eu fui acolhida, nem mesmo me deram atenção quando expus a situação. Tive que descobrir meios de me proteger apesar da absoluta fragilidade da minha condição de criança. E como acontece na maioria absoluta desses casos eram pessoas “acima de qualquer suspeita”.

Quando as feministas bradam por maior atenção aos recorrentes casos de violência contra a mulher, exigem medidas de proteção e punição, investem em conscientização, falam de e por mulheres adultas.

Não significa que o combate à violência contra a mulher não resulte em benefícios para as meninas também, mas criança é outra condição e precisa ser discutida a partir de suas especificidades. E a infância feminina é uma condição ainda mais específica, pois também está submetida ao machismo nosso de cada dia. E isso é muito fácil de constatar. Basta prestarmos atenção na necessidade quase obsessiva das pessoas em ver as meninas enquadradas em certos códigos: brinco na orelha logo que nasce pra identificar de cara o sexo da criança (ou laços e tiaras na cabeça); cor de rosa em tudo o que se pode imaginar; eletrodomésticos travestidos de “brinquedos para meninas” e mais uma série quase infinita de estereótipos impregnados em bonecas, cadernos, roupas, desenhos animados etc.

Alguns vão dizer que estou falando bobagens. Afinal “qual o problema em furar a orelha da bebê? Ela nem vai sentir”, “Rosa é só uma cor. Não significa nada.”, “São só brinquedos”. Mas, tudo isso aí diz sobre o lugar que essa menina deve ocupar na sociedade quando for adulta. Diz que ela não tem direito ao próprio corpo, que deve ser suave e delicada e que seu espaço natural é dentro de casa, limpando, cozinhando e cuidando dos filhos.

A maioria dos adultos acredita que por serem responsáveis pelas crianças (tutores) possuem direito de propriedade sobre elas. A maioria dos adultos acredita que as crianças devem respeito a eles, mas acham quase absurda a ideia de se respeitar as crianças. A maioria dos adultos acredita que por terem necessidade de ser educadas, crianças são ignorantes, não tem direitos, “não tem querer”! Já ouviram essa frase? Ouvi muito na minha infância: “criança não tem querer!” Pode ser traduzido como “criança não tem voz”, “não tem opinião”, “não tem direitos”.Se essa criança for do sexo feminino então, aí que fica tudo mais complicado mesmo! E se for uma menina negra…bem, é fácil imaginar! E por incrível que pareça, muitos machistas de plantão (de ambos os sexos) atribuem o que eu disse acima também às mulheres adultas.

E o que isso tem haver com abuso sexual? Tudo!

Falando do meu lugar de criança do sexo feminino contra adultos do sexo masculino não tive minha voz levada em consideração. Fui orientada a me calar e não voltar a tocar no assunto. Foi o que fiz aos cinco anos, e de novo aos sete e de novo aos onze!

Como proteger nossas meninas? Além dos cuidados tradicionais (deixo aqui o link do Observatório da infância com orientações para as mães e pais) é fundamental ampliar e aprofundar a discussão e as ações acerca da infância feminina e de proteção às meninas em todas as esferas, mas especialmente entre as feministas. E falo das meninas em especial, embora os meninos também sofram esse tipo de agressão, porque 63,4% das vítimas de abuso sexual na infância são meninas e na maioria dos casos (88%), os abusadores são membros da família . Fala-se muito sobre “empoderar as mulheres”, comecemos por empoderar as meninas e quem sabe alcancem a idade adulta com menos cicatrizes em seus corpos e almas.[1] Fonte: http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol38/n4/143.htm. Acesso em 20 de mar. 2014.
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Dulci Lima
Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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