Para historiadora, a prática encontra eco na sociedade brasileira, que “espanca e acorrenta adolescentes negros em razão de um furto comum”
Por Anna Beatriz Anjos
Mariana Jofily, historiadora e professora da Universidade do Estado de Santa Catarina
“Não houve uma ruptura radical com o regime militar e suas práticas. Não houve, portanto, um rechaço claro, contundente e generalizado da sociedade em relação ao uso da tortura.” Essa é a conclusão de Mariana Joffily, historiadora e professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), que em sua tese de doutorado estudou a fundo o mecanismo da tortura durante a ditadura em São Paulo.
Na semana em que o golpe de 1964 completa 50 anos, a pesquisadora diz que a prática continua recorrente. “Hoje, ela está disseminada nas delegacias comuns, é praticada tanto por policiais civis como militares, voltada à contenção social e dirigida a cidadãos de baixa renda considerados suspeitos de algum crime”, explica.
O trabalho que, em 2008, deu a Mariana o título de doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) virou livro. No Centro da Engrenagem. Os Interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975), lançado em agosto do ano passado, é baseado em documentos do acervo do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e do projeto Brasil: Nunca Mais. A professora leu diversas transcrições de interrogatórios e denúncias de abusos por parte dos militares. “Tive acesso às denúncias realizadas por pessoas que tiveram a coragem de descrever as torturas sofridas e até o nome dos torturadores”, conta.
Confira a entrevista na íntegra:
Fórum: Pode-se dizer que a tortura é uma herança das épocas de regime militar?
Mariana Joffily: Não. O Brasil tem um histórico muito longo do uso da violência como enquadramento social, que remonta à colonização, com o tratamento dispensado às populações indígenas e ao castigo infligido a escravos de origem africana que não se submetiam a seus senhores. Estou convencida de que, a menos em casos patológicos, a prática da tortura requer certo grau de alteridade, seja ela de classe social, de raça, de condição (dentro/fora da lei) ou ideológica. Quantas vezes não ouvimos falar que “bandido não é gente”?
No Brasil, a tortura contra os presos comuns de baixo estrato social sempre foi empregada. Na época logo anterior à ditadura, por exemplo, havia os esquadrões da morte, que não se contentavam em torturar os bandidos comuns, assassinando-os com requintes de crueldade. Um dos famosos integrantes desses Esquadrões da Morte, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, foi transferido para a Delegacia de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo e passou a atuar na repressão política.
A tortura como ferramenta de submissão propriamente política também não era inédita, tendo sido utilizada durante o Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas, que era anticomunista.
O que ocorreu durante a ditadura militar foi que a tortura passou a ser empregada como forma de impor a ordem política e social inaugurada pelo golpe de 1964. Passou a atingir setores das classes médias e altas da população brasileira (universitários, profissionais liberais, professores) e não poupou oficiais dissidentes das Forças Armadas. Foi ainda sistematizada e sofisticada, com o uso de aparelhos importados – as máquinas de choque vindas dos EUA, o compartimento fechado que submetia os presos a baixas temperaturas, apelidado de “geladeira”, trazido da Inglaterra – ou confeccionados no Brasil – como a cadeira do dragão, construída pelo Liceu de Artes e Ofícios, para manter o indivíduo preso durante a aplicação de choques.
Além disso, houve uma militarização da segurança, apoiada nas teorias da Doutrina de Segurança Nacional, que identificava todo e qualquer cidadão como potencial inimigo interno e o controle da dissidência política como uma questão de guerra interna.
Fórum: Como ela ocorria, durante a ditadura? Como ocorre hoje, quem a exerce? Quais as diferenças entre os dois períodos?
Mariana: Durante a ditadura militar, além da tortura já tradicionalmente praticada contra presos comuns, foram criados órgãos especializados nos interrogatórios de ativistas políticos de oposição, em particular de militantes das organizações clandestinas de esquerda. Com a montagem da Operação Bandeirante e dos DOI-Codis em seguida, com a ajuda dos Dops, que remontavam à era Vargas, a tortura passou a ser utilizada com método e de forma metódica para arrancar informações que pudessem ser úteis na destruição das organizações de esquerda e de outras formas de organização que fizessem oposição ao regime.
Hoje, ela está disseminada nas delegacias comuns, é praticada tanto por policiais civis como militares, voltada à contenção social e dirigida a cidadãos de baixa renda considerados suspeitos de algum crime. O caso do Amarildo é paradigmático de como ela acontece cotidianamente, embora muito raramente alcance a mesma projeção. Talvez os instrumentos sejam menos sofisticados do que os usados pela ditadura militar, porém continua sendo utilizada para forçar a confissão de crimes que se acredita terem sido cometidos.
Fórum: Por quais razões a prática da tortura sobreviveu ao período de democratização e continua ocorrendo?
Mariana: Porque não houve uma ruptura radical com o regime militar e suas práticas. Muitas das autoridades políticas e militares que desempenharam um papel importante durante o período autoritário se mantiveram no poder após a democratização e estão ativas na vida nacional até hoje. Grande parte dos torturadores foi absorvida pelo funcionalismo público e pela máquina burocrática das Forças Armadas. Não houve, portanto, um rechaço claro, contundente e generalizado da sociedade em relação ao uso da tortura.
Além disso, como método de investigação, a tortura é considerada eficiente e rápida. Falta às forças de segurança pública investimento pesado em outras formas alternativas de investigação e tende-se a sobrevalorizar o interrogatório como procedimento e a confissão como evidência.
A militarização da segurança pública faz com que se veja o criminoso – ou suposto criminoso – como um inimigo interno, e não como um cidadão que agiu contra a lei. E há a noção de que contra esse inimigo todos os instrumentos de violência são válidos, sobretudo se for pobre e negro ou mulato. Essa concepção está profundamente ancorada na mentalidade da sociedade brasileira, bastante autoritária, que exulta com programas de TV de baixo calibre que enaltecem a ação violenta dos policiais, que torce para o agente do Bope nas cenas de tortura do filme Tropa de Elite, que espanca e acorrenta adolescentes negros em razão de um furto comum. Nossa sociedade dá mais importância à propriedade privada do que aos direitos básicos do ser humano.
Outro fator fundamental é a impunidade . É preciso lembrar que os policiais militares são julgados por tribunais militares, o que faz com que não apenas não sejam punidos, como o acompanhamento dos casos passa a ser desviado para a corporação, quando deveria ser aberto para toda a sociedade civil. Há pouquíssimos casos de policiais condenados a penas de prisão por atos de tortura, sobretudo se o alvo dessas torturas são suspeitos – com ou sem ficha criminal – oriundos das classes populares, com poucos recursos para se defender.
Fórum: Durante as pesquisas para o seu livro, você consultou os arquivos do Dops e do projeto Brasil: Nunca Mais. Quais os principais dados e informações a que teve acesso?
Mariana: A documentação em que me baseei foram interrogatórios preliminares realizados na Operação Bandeirante e depois no DOI-Codi que podem ser encontrados no acervo do Dops, no Arquivo do Estado de São Paulo. No registro, dos interrogatórios há uma lógica de ocultação dos métodos violentos que permitiam que as informações transcritas fossem extraídas.
O que fica claro na leitura dos documentos é que, na transcrição dos interrogatórios, há uma série de operações linguísticas que apontam para a violência, sobretudo na sobreposição de termos típicos do jargão da polícia sobre termos empregados preferencialmente pelos militantes de esquerda. Assim, o militante se transforma em “subversivo”, o guerrilheiro, em “terrorista”, o (a) companheiro(a), em “amásio”, o órgão repressivo, em “órgão de segurança”, recrutar para a organização passa a ser “aliciar”, conscientizar vira “doutrinar”, expropriar se torna “assaltar”.
A violência, dessa vez mais explícita, pude encontrar quando cruzei essa documentação com as denúncias realizadas pelos presos políticos nas Auditorias Militares, na fase em que o indivíduo já havia sido torturado no DOI-Codi ou no Dops, tinha sido alvo de um inquérito policial e estava respondendo a um processo movido pela Justiça Militar. Nessa documentação, compilada pelo projeto Brasil: Nunca Mais, temos acesso às denúncias realizadas por pessoas que tiveram a coragem de descrever as torturas sofridas e até o nome dos torturadores. Assim foi possível identificar que tal pessoa interrogada em tal dia, durante tanto tempo, sofreu um tratamento X.
Fórum: Por que, ao seu ver, a tortura foi o “centro da engrenagem” do regime militar?
Mariana: Ao usar essa expressão no título, refiro-me aos interrogatórios preliminares e aos órgãos que estudei (Operação Bandeirante e DOI-Codi). Mas claro que a tortura tem um lugar de destaque nisso tudo. O emprego da tortura atendia simultaneamente a múltiplos intuitos, sendo o principal deles coibir as reações contrárias à ordem política autoritária estabelecida pelo golpe de 1964.
Serviu, nesse sentido, como estratégia de dissuasão do engajamento na esquerda, seja buscando enquadrar ideologicamente aqueles que se mostraram insubordinados, seja como efeito sobre os não torturados, que percebiam um risco imenso na atividade política. Além disso, servia como punição extralegal dos indivíduos contra os quais não necessariamente havia provas contundentes para que fossem condenados pela Justiça Militar. Buscava, por fim, por incrível que pareça, a “regeneração” social do militante político, um castigo exemplar para que se arrependesse de suas atividades oposicionistas.
A tortura era um dos elementos capitais da estratégia de contenção da oposição política, complementada com outros instrumentos, igualmente importantes, como a censura, a propaganda ufanista, as intervenções nos sindicatos, as cassações de mandatos políticos, a expulsão das Forças Armadas, a revisão dos currículos escolares e outros.
Também se utilizou com sucesso a infiltração nas organizações de esquerda, seja de agentes de informação, seja de militantes “virados” (que passaram a trabalhar para a repressão) através de ameaças ou de torturas. Esse é um tema ainda pouco estudado, pela delicadeza de suas implicações e pela dificuldade em conseguir documentação que embase um estudo consistente.
Fórum: Qual era a relação entre os órgãos que promoviam a tortura – Oban, DOI-Codi – durante o regime militar?
Mariana: A Operação Bandeirante foi criada em 1969 em São Paulo como um núcleo especializado em perseguição política que continha representantes das diversas forças armadas, policiais e de informações. Após um ano de atividades, tendo obtido diversos resultados considerados positivos pelos militares, foi substituída pelos DOI-Codi (Destacamentos de Operações de Informação – Centros de Operações de Defesa Interna), implementados no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Recife e em Brasília, em 1970; em Curitiba, Belo Horizonte, Salvador, Belém, Fortaleza, em 1971 e em Porto Alegre em 1974.
Os Codi eram responsáveis pelas atividades de coordenação e comando, ao passo que os DOI executavam a repressão: a captura ou sequestro de suspeitos de atividades políticas de esquerda (Equipe de Busca), o interrogatório sob tortura (Equipe de Interrogatório Preliminar) e a análise de informações contidas nos documentos apreendidos aos militantes ou nos interrogatórios (Equipe de Análise de Informações).
Os DOI-Codis se tornaram símbolos da tortura política, mas também torturava-se no Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), no Centro de Informações da Marinha (Cenimar), em unidades do Exército, em Batalhões da Polícia do Exército, em delegacias comuns, e mesmo em centros clandestinos de tortura.
Fonte: Revista Fórum
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