quinta-feira, 24 de abril de 2014
RIANO SUASSUNA E O MOVIMENTO ARMORIAL
O MOVIMENTO ARMORIAL
BREVE HISTÓRICO
No dia 18 de outubro de 1970, através de um concerto da Orquestra Armorial de Câmera, intitulado "Três séculos de música nordestina: do Barroco ao Armorial", e de uma exposição de gravuras, pinturas e esculturas, lançava-se oficialmente, no Recife, o Movimento Armorial. Concerto e exposição aconteceram na igreja barroca de São Pedro dos Clérigos, no bairro de São José, e foram promovidos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - através do seu Departamento de Extensão Cultural (DEC) - e pelo Conselho Federal de Cultura.
Em 4 de julho de 1971, antes mesmo de o Movimento completar o seu primeiro ano de existência, e antes do lançamento, com enorme sucesso, do Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, o primeiro romance armorial brasileiro, o Jornal do Commercio do Recife publicava uma extensa entrevista com Ariano Suassuna, sob o título "Sucesso armorial no Sul", na qual o escritor demonstrava a repercussão nacional que o Movimento alcançava. Valendo-se de matérias publicadas em jornais de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, Suassuna resumia a impressão geral da crítica, logo após a primeira excursão da Orquestra Armorial, que se apresentara em Porto Alegre e no Rio. Suassuna viajou junto com a Orquestra, e mais do que os três concertos apresentados, os encontros com o público foram verdadeiras aulas de cultura brasileira. Com o auxílio de diapositivos, pinturas, gravuras, desenhos e livros de poemas, o escritor apresentava o espetáculo, o Movimento Armorial, suas origens e seus objetivos, suas primeiras realizações e os planos em defesa da cultura brasileira. Dom Marcos Barbosa, presente a uma das apresentações (a realizada na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro), afirmava, no dia seguinte:
“Aquilo não foi um concerto, mas uma verdadeira aula, curso de cultura, que ninguém percebia estar sendo ministrado naquele instante
[...] ao longo de três horas que voaram [...]. Música, sim, mas [...] pintura, e história, e pré-história, teatro, patriotismo, bairrismo e até Sagrada Escritura tudo disfarçado, escondido suassunamente na modéstia e simpatia que todos nós conhecemos”. (Jornal do Commercio, Recife, 4 de julho de 1971)
Por outro lado, referindo-se especificamente à arte armorial, Eurico Nogueira França escreveu, no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro:
“O forte caráter das composições apresentadas vem mais uma vez descerrar-nos os filões de brasilidade criadora [...] - como os há, também, por exemplo, na dramaturgia do próprio Suassuna, que fez comentários tão interessantes, com ‘slides’, sobre aspectos musicais e não musicais do programa. É mais do que nunca oportuno ressaltar esses veios preciosos, porque a nossa música de concerto, nas suas expressões de vanguarda, tende para manifestações abstratas e não nacionais, sob o pretexto principal de que o nacionalismo está superado nos centros musicais do exterior [...]. Ariano Suassuna, com a naturalidade saborosa e pitoresca de sua fala, passou então a ser o animador da noite, explicando as raízes do movimento armorial e comentando cada uma das peças. [...] Audição de perfeita originalidade, teve rumoroso e merecido sucesso”. (Idem)
Podemos dizer que o sucesso da excursão representou o lançamento, em nível nacional, do Movimento Armorial. A partir dela, de fato, o Movimento começou a ser conhecido e divulgado para além das fronteiras do que Suassuna considera o "coração do Nordeste" - Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. A Orquestra contava com músicos e compositores de talento, da categoria de um Jarbas Maciel ou um Clóvis Pereira, seu regente. Mas é preciso dizer que o sucesso desta primeira excursão (bem como o da segunda, no ano seguinte) deveu-se também às apresentações de Ariano Suassuna, homem que sabe, como poucos, prender a atenção de uma platéia, associando erudição à simplicidade e bom-humor. Nas notícias dos jornais da época, é possível perceber que a ênfase dada às apresentações de Suassuna, verdadeiros espetáculos à parte dos concertos, era de igual ou maior dimensão do que a concedida às apresentações da Orquestra propriamente ditas.
O NOME ARMORIAL
"Armorial", em nosso idioma, era somente substantivo: livro onde vêm registrados os brasões - uma palavra ligada à heráldica, portanto. Ariano Suassuna, idealizador do Movimento, passou a empregá-la também como adjetivo. Criou, assim, um neologismo para identificar a arte que defende, uma arte erudita que, baseada no popular, é tão nacional quanto a arte popular, elevando-se à importância desta e conseguindo manter, com ela, uma unidade fundamental para combater o processo de vulgarização e descaracterização da cultura brasileira.
A explicação do nome armorial foi legada ao público, pela primeira vez, quando do lançamento oficial do Movimento, através do texto "Arte armorial". Suassuna justifica a escolha do nome através de dois motivos. O primeiro é estético - a beleza da própria palavra. O segundo liga-se à sua visão de que a heráldica, no Brasil, é uma arte eminentemente popular, presente desde os ferros de marcar boi do sertão nordestino, dos estandartes das mais diversas agremiações populares, até as bandeiras e camisas dos clubes de futebol das grandes cidades brasileiras. Aproximar-se dessa heráldica seria, então, aproximar-se de um espírito popular brasileiro. Afirma Suassuna:
“Foi aí que, meio sério, meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte de Cavalhada era ‘armorial’, isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos, nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um toque de clarim. Lembrei-me, aí, também das pedras armoriais dos portões e frontadas do Barroco brasileiro, e passei a estender o nome à Escultura com a qual sonhava para o Nordeste. Descobri que o nome ‘armorial’ servia, ainda, para qualificar os ‘cantares’ do Romanceiro, os toques de viola e rabeca dos Cantadores - toques ásperos, arcaicos, acerados como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a viola-de-arco da nossa Música barroca do Século XVIII.” (Ariano Suassuna, Arte Armorial, texto veiculado juntamente com o programa do concerto “Três séculos de música nordestina: do Barroco ao Armorial”, Recife, 18 de outubro de 1970)
Após o lançamento oficial do Movimento, e tendo este, aos poucos, conquistado um espaço considerável na imprensa de todo o país, notadamente nos jornais, a explicação acerca da escolha do nome armorial foi repetida muitas e muitas vezes, em diversas entrevistas, com uma ou outra alteração. Em algumas ocasiões, em tom de brincadeira, Ariano acrescentava um terceiro motivo que teria influenciado na escolha do nome - a curiosidade que este despertava devido ao desconhecimento do seu significado. Foi assim, por exemplo, em uma entrevista concedida a um jornal do Rio Grande do Sul, em 1971:
“Primeiro, porque é bonito. Segundo, porque sendo um nome estranho, o pessoal pergunta como você – ‘o que é?’ - e ouvida a explicação, não esquece mais. Terceiro, porque significa esta palavra a coleção de brasões, emblemas e bandeiras de um povo”. (Correio do Povo, Porto Alegre, 13 de junho de 1971)
Quando se fala em um "movimento", pensa-se, logo, em um grupo de intelectuais reunidos para escrever um manifesto, para então, a partir daí, surgirem obras que expressem friamente as reflexões teóricas do grupo. Nada disso pode ser vinculado ao Movimento Armorial. Primeiro porque, neste caso, a arte armorial precedeu o próprio Movimento.
De fato, muito antes do lançamento oficial do Movimento, vários artistas, intuitivamente ou não, já trilhavam o caminho que mais tarde seria anunciado como bandeira maior do Armorial, procurando uma arte erudita brasileira que se fundamentasse na cultura popular. Em segundo lugar, apesar de existir, entre os artistas armoriais, uma concordância de visão sobre a direção a ser seguida, existe também a consciência de que os caminhos são inúmeros, todos apontando para a mesma direção. Nunca existiu tolhimento à liberdade criadora de cada um, às expressões particulares de cada artista.
No "Arte armorial", Suassuna já falava em uma certa unidade, uma identificação entre os trabalhos dos artistas ligados ao Movimento Armorial. Todos tinham a preocupação de fazer arte partindo das raízes populares da cultura brasileira. Como se tratava de um texto de apresentação, não houve espaço para um esclarecimento maior acerca dessa unidade. Mas, em outras ocasiões, sobretudo quando da divulgação do Movimento na imprensa, Suassuna enfatizou que os participantes do Movimento entendiam essa unidade como conseqüência dos princípios mais gerais em que acreditavam, e não como algo imposto anteriormente à criação, que viesse a comprometer a individualidade do artista. Em uma entrevista publicada no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, Suassuna já chamava atenção para o equívoco que a própria palavra "movimento" poderia sugerir:
“É um esforço para encontrar, no Brasil, uma arte que parta de raízes eminentemente populares. Com isso, a pretensão de encontrar uma arte brasileira, latino-americana e universal. O Movimento Armorial não tem uma linha de princípios. É um movimento aberto. Aliás, nós nem gostamos da palavra movimento, porque movimento é quase sempre feito por teóricos, que lançam manifesto e pronto. Nós partimos do trabalho criador. Começamos a criar juntos. Às vezes, isoladamente. Descobrimos, depois, características comuns. Então nos unimos e batizamos o movimento com esse nome, que serve apenas de bandeira nessa busca conjunta de uma arte brasileira”. (Correio de Manhã, Rio de Janeiro, 8 de setembro de 1971)
Mesmo tendo sido lançado quando Suassuna já se encontrava em plena maturidade de escritor (com várias peças escritas e amplamente conhecidas, e tendo já concluído sua primeira grande experiência no campo do romance, A Pedra do Reino), é em direção às idéias estéticas do Movimento Armorial que ele parece caminhar desde os seus primeiros poemas baseados no romanceiro popular nordestino. É por isso que, quando questionado sobre o início do Movimento, Ariano retrocede suas origens até 1946, mencionando a publicação desses poemas, já em ligação com os trabalhos de Francisco Brennand, José Laurenio de Melo e Hemilo Borba Filho. Ou seja: Ariano começa a debuxar o projeto estético do Movimento Armorial a partir do seu ingresso na Faculdade de Direito do Recife e das discussões surgidas no grupo do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP).
Por outro lado, o amadurecimento de Suassuna em direção ao Armorial passa, necessariamente, por sua poesia. É importante acrescentar que Suassuna já havia utilizado a palavra "armorial" enquanto adjetivo pelo menos três vezes antes do lançamento do Movimento, em três poemas. O mais antigo deles, datado de 1950, intitula-se “Canto armorial”; trata-se de um longo martelo agalopado, poema com que o autor abre a segunda parte do seu livro O Pasto Incendiado. O segundo poema intitula-se “Canto armorial ao Recife, capital do Reino do Nordeste”. Escrito em 1961, este poema foi publicado numa antologia organizada por Edilberto Coutinho (Presença poética do Recife, 3.ed., Rio de Janeiro, J. Olympio; Recife, FUNDARPE, 1983). Por fim, em 1963, no “Poema de arte velha”, a palavra armorial reaparece não mais em um título, mas num verso, sendo usada para designar um poeta – Francisco Bandeira de Mello, a quem Suassuna dedica o poema. Vejamos a primeira estrofe deste último poema:
Bandeira, Poeta-cortesão,
Bandeira, poeta Armorial!
Ó claro bardo provençal,
de galo, Peixe e hierofante,
de Fauno bêbado e bacante,
do sal do Mar, do Sol do mal.
(Ariano Suassuna, Poema de arte velha, Jornal do Commercio, Recife, 14 de abril de 1963)
FASES DO MOVIMENTO ARMORIAL
Em 1976, em extensa entrevista concedida ao Jornal do Commercio, do Recife, Suassuna já fazia referência a duas fases distintas que, segundo ele, poderiam caracterizar o Movimento Armorial, desde o seu lançamento oficial até aquele momento: a fase de 1970 a 1975, considerada por ele “experimental”, e a fase que era então vivenciada, "atual e nova", denominada de Romançal e iniciada precisamente no dia 18 de dezembro de 1975, com a estréia, no Teatro de Santa Isabel, da Orquestra Romançal Brasileira. (Ariano Suassuna, Movimento Armorial em nova fase criadora, entrevista, Jornal do Commercio, Recife, 25 de julho de 1976).
Alguns críticos contrários ao Armorial afirmam que, quando do advento do Movimento, devido ao respaldo que este possuía da UFPE, através do DEC, muitos artistas do Recife "viraram armoriais", porque queriam ver seus trabalhos divulgados ou, no caso específico dos poetas e escritores, publicados pela editora universitária. Não há dúvida de que isto ocorreu, como ocorreria com qualquer outro Movimento. É por isso que a fase de 1970 a 1975 é considerada por Suassuna como “experimental”. Referindo-se a ela, Suassuna reconhece os adesismos, mas considera o resultado geral bastante positivo:
[...] na primeira fase, eu tive que começar várias coisas de qualquer maneira, fechando deliberadamente os olhos para certos adesismos, improvisações, artificialismos e equívocos, algumas vezes graves. [...] Bastaria o aparecimento de Antônio José Madureira, do Quinteto Armorial e da Orquestra Romançal Brasileira para justificar todo o resto do trabalho. Não esquecer, por outro lado, que Gilvan Samico prestigiou o Movimento, que se engrandeceu com seu nome, respeitado por todo mundo. O tempo vai depurando tudo: uns, deixam o Movimento porque, de fato, nunca se interessaram verdadeiramente pela Cultura brasileira; outros porque, mais sensíveis às modas e às críticas, resolveram tomar outros caminhos; outros porque têm o temperamento mais solitário; e assim por diante. (Idem).
A fase Romançal revelar-se-ia como uma das mais fecundas do Movimento. O trabalho da Orquestra Romançal, o lançamento do Balé Armorial (origem do atual Balé Popular do Recife) e a estréia de Antônio Carlos Nóbrega de Almeida como teatrólogo, com o espetáculo A Bandeira do Divino, podem ser caracterizados como alguns marcos desta fase.
Como se não bastasse, dois acontecimentos salutares demonstrariam o equívoco daqueles que não conseguiam vislumbrar as propostas do Movimento fora do Nordeste: em Brasília, é lançado A guerra do reino divino (Editora CODECRI, 1976), trabalho de história em quadrinhos de Jô Oliveira, baseado n' A Pedra do Reino, e cujos desenhos seguiam de perto as propostas da gravura e da pintura armoriais; no campo da música, Renato Andrade, mineiro de Abaeté, lança o elepê A fantástica viola de Renato Andrade na música armorial mineira (São Paulo: Chantecler, 1977), expondo os primeiros resultados de suas tentativas de fazer, em relação ao seu estado, o que o Movimento Armorial vinha fazendo em relação aos estados nordestinos. Após as fases Experimental e Romançal, o Movimento Armorial volta às manchetes através da fase Arraial, iniciada durante a gestão de Ariano Suassuna na Secretaria de Cultura de Pernambuco, durante o terceiro Governo de Miguel Arraes
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