Gana
Uma janela entre sociedade e arte
A arte tradicional africana influenciou e continua influenciando as escolas estéticas do mundo todo, se tornando cada dia mais mainstream das culturas globalizadas. Cores fortes, vivacidade, conceitos abstratos, profundidade teórica e força de expressão são alguns itens que justificam o prestígio. A África agora começa também a se estabelecer como referência das artes contemporâneas, que juntam tradição e presente em uma harmoniosa coexistência. Em Gana, um dos destaques no mundo de novas tendências está na pintura. No entanto, é difícil agrupar os artistas em uma só escola e definir um estilo único para a nova estética que se forma no país.
A complexa estrutura social de Gana, que conta com 79 línguas e 25 milhões de pessoas, é uma das razões da existência desse pluralismo estilístico. Cada pintor traz em sua obra uma diferente história de influências, marcada por tecido social, etnia, religião, educação ou até graus de urbanização de seu entorno. Porém é essa mesma complexidade cultural que abre espaço para a imaginação e intenso ritmo de criação. A cultura dinâmica do país parece estar sempre em evolução, impulsionada por seus artistas que buscam constantemente o aprimoramento de ideias estéticas.
O país, na verdade, está longe de ser um principiante da área. Neste ano, Gana comemora 57 anos da criação da Faculdade de Artes Estéticas de Kumasi, o que para muitos artistas e teóricos da arte é o marco inicial da pintura contemporânea ganense. Neste último meio século de atuação, os integrantes do movimento caminharam velozmente em direção a uma consistência estilística inovadora, mostrando ao mundo que estão preparados para romper barreiras da estagnação cultural, e impressionar com o resultado de suas pesquisas e experimentações. A pintura contemporânea de Gana é um fruto que traz a força da tradição fundida no uso de novas técnicas, criando uma nova e múltipla identidade visual do país e narrando, por meio do olhar artístico, a história de seu povo.
Foto: Betty Acquah
Segundo George Hughes, pintor ganense e professor da Faculdade de Arte de Oklahoma, algumas marcas podem ser definidas como características do estilo que vem se consolidando em Gana. Simbolismo e tradição é a primeira delas. Os artistas, inspirados por símbolos africanos e formas tradicionais, como motivos adinkra, bancos tradicionais e esculturas, trazem para os quadros novas ideias sobre a identidade africana. Outra marca seria a figuração, onde os trabalhos procuram perceber e interpretar as formas, estruturas e atividades dentro de seu ambiente imediato. Geralmente as figuras são assinadas por cenas de ações e idealizações estilizadas e abstraídas do cotidiano.
O terceiro ponto apontado pelo teórico é a transcendência, em que artistas procuram escapar da representação direta, contextualizando seus trabalhos dentro de percepções intangíveis ou construídas. Hughes ainda aponta uma nova tendência, a de design vocativo, onde profissionais como carpinteiros, costureiras, alfaiates e cabeleireiros criam um novo parâmetro da arte contemporânea, rompendo conceitos universais da definição de uma obra. Esse novo estilo é muito bem representado nas obras de Kane Kwei, que inovou a forma de construir caixões, transformando-os, por meio da carpintaria e pintura, em arrojadas peças de arte.
Essas quatro teorias procuram ilustrar a pinceladas o rebuscado e complexo movimento que se espalha hoje pelo país. Movimento cuja delicadeza é quase intangível de definições restritas. Cada artista ilumina a sua maneira parte dessa nova concepção. Betty Acquah, por exemplo, traz no pontilhismo de seu trabalho a sua própria interpretação da sociedade ganense. Inspirada pela força da dança, seus pinceis buscam o movimento bailado. Para a artista de Cape Coast, a utilização constante de curvas e difusão dos pontos por todas as direções do quadro cria uma diálogo entre o fixo e o móvel. As cores escolhidas também fazem parte de sua marca.
Foto: Mills Ni
Predefinidas antes do início do trabalho, Acquah prefere trabalhar com paletas semelhantes de verde, vermelho e azul, assegurando que uma das cores prevaleça na gama selecionada. Seu processo criativo é inspirado sobretudo nas mulheres e nos temas femininos, explica a pintora: “Desde criança, toda vez que eu ia para o centro da cidade e via aquelas mulheres jovens, carregam seus potes, comprando e vendendo nos mercados, surgia em mim uma imensa inspiração. O jeito que elas se moviam, o jeito que elas fluíam pela multidão, carregando objetos maiores que elas mesmas. Eu costumava segui-las o tempo todo, e quando voltava para casa, as desenhava e pintava. Foi assim que eu escolhi a arte e arte me escolheu”.
Enquanto as impressões pontilhadas marcam a pintura de Acqua, Larry Otto, pintor e mestre em arte africana pela Universidade de Kumasi, traz em seu trabalho um fluxo entre o expressionismo e o impressionismo, com ocasional transparência do abstrato. Misturando temáticas que vão do global à diáspora, o pintor empenha-se em figuras alongadas e estilizadas para representar o contraste entre o cidadão de Gana tradicional e o contemporâneo. Otto apresenta em seus quadros a cultura nacional na forma de festivais, cenas de mercados, funerais ou eventos que ele acredita representar a vivacidade do país. Manipulando cores puras e vibrantes, direto do tubo, sem misturá-las, o pintor encontra inspiração no background de sua sociedade: “Sou diretamente influenciado pelo meu ambiente, suas tonalidades e vibrações. Aqui são 24h por dia de sol, um sol que gera a atmosfera, que marca o jeito que nos vestimos e nos comunicamos e que influencia o tipo de cores que escolhemos. Nessa atmosfera vibrante, todo mundo compete para colocar a melhor vestimenta, nos mercados as cores se sobressaem e ainda, a cultura do kente, com seus lindos tons de vermelho amarronzado, exaltam essa ardência. Para um artista em Gana acaba sendo espontânea e transparente essa influência cromática, uma vez que ela é onipresente”.
Outro destaque da arte contemporânea no país, Mills Nii, especializado em pinturas a óleo também traz representado em seus quadros a força das cores em sua forma pura. Para ele, a combinação entre elas é o que torna a pintura poderosa. “Cada cor se representa e se você a distorce, a pintura se torna disturbada. Você ficaria surpresa como um pequeno contorno pode mudar uma tela toda”, ilustra o pintor, que também acredita que muitas vezes a rigidez das técnicas pode acabar limitando a criatividade. Ele dá o exemplo de réguas e medidores como objetos restritivos da arte e que confinam o frescor de um quadro, por limitar o processo de erro e conserto. Apesar de ser considerado parte do movimento expressionista pelos teóricos, Mills se sente mais confortável não dando títulos ao seu estilo. Seu objetivo como artista é retratar a África como construtora da sociedade e mostrar aos cidadãos de Gana, seu objeto de estudo, a importância e beleza que eles representam. “Quando apresento para uma mulher a pintura que fiz dela mesma sentada na rua, ela se surpreende.
Foto: Obra de Ablade Glover
Ela não a enxerga daquele jeito. Não imagina que pode ser tão bela e forte. E se eu tenho sucesso naquela determinada pintura, é exclusivamente por causa dela, por aquilo que ela representa e a força que traz em seu existir. Há tanta beleza que eles estão perdendo, por isso meu alvo com a arte é levar mensagens para essas pessoas e mostrar o quão bom o ambiente deles é para viver. O quão belo é o aqui”, conclui o pintor.
Entre as inspirações de Acquah, Otto, e Mills existe um nome em comum: Ablade Glover. Chamado por eles de Mestre. Glover foi professor de arte da Universidade de Ciências e Tecnologia de Kumasi por mais de 30 anos. Quando se aposentou, voltou para Accra e fundou a Artists Alliance, um espaço que junta sob o mesmo teto toda a força da arte contemporânea ganense. São quatro andares recheados de obras de arte pra exibição e venda. Entre as duas dezenas de salas, uma é dedicada exclusivamente às obras de seu fundador, considerado uma das maiores referências da pintura do país. Sua marca é a encenação de multidões, com paletas imediatas, expressivas e de impacto. “A multidão parece representar o caos da sociedade. A nossa sociedade parece particularmente caótica.
Eu uso a multidão para estudar essa natureza: mercados, estações, cidades, em tudo a palavra caótica está implícita. Mas se você olhar de perto no caos existe a ordem. Eu uso minhas pinturas para olhar e estudar essa ordem, a bondade que existe nela e a beleza ali implícita. Eu me expresso e só me expresso”, comenta o Mestre, que também explica que parte de sua paixão está em representar as coisas mundanas que o povo não olha e assim criar uma janela entre sociedade e arte. Para Glover, a a definição da pintura contemporânea de Gana não será feita agora. “Não sou eu quem vai dizer se o que estou fazendo é o certo, se o que estamos fazendo é o certo, mas sim a posteridade, que vai olhar para trás e nos entender. O artista é o interprete que celebra sua cultura? Estamos nós celebrando nossa cultura? Estamos conectando mundo e arte? Não somos nós que responderemos. A posteridade é quem vai nos julgar”, conclui com a modéstia de quem na verdade já está fazendo história.
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