domingo, 8 de fevereiro de 2015

DOM HELDER CÂMARA, O ARCEBOS´P VERMELHO


Se eu fosse supersticioso, estaria meio abalado neste fim de semana. Pelos seguintes motivos: eu já estava à beira de desistir da coluna de hoje. Estava completamente vazio, sem assunto, sem prosa, poesia ou rima. Primeiro, pensei em escrever sobre Humor e Política. Haveria limites para o humor? Fui ao ponto de rascunhar anotações, que faziam um gancho com os assassinatos dos humoristas na França. Mas aí aconteceram duas imensas dificuldades: o assunto, como gancho, parecia ter perdido o seu tempo de abordagem neste 6 de fevereiro. Segundo, o texto ficou insatisfatório, porque por um lado eu não posso admitir que exista limite para a criação humana, mas por outro sei que liberdade implica responsabilidade,  e o mais profundo  respeito para com os oprimidos.  Então eu fiquei vagando feito alma penada. A razão mais simples é que eu estava, estou ainda esgotado pelos acontecimentos de hoje. Passei toda a manhã passeando pelos manuscritos de Dom Hélder Câmara, por seus livros, com vistas a uma reedição. Tantas coisas vi, e mais que vi, pude acompanhar a opressão política sobre o espírito rebelde, da pessoa de Dom Hélder, que amava o espírito santo, inclusive pelo símbolo das asas abertas, libertadas.
Isso queria dizer, eu estava rigorosamente sem assunto, esgotado, porque o pensamento divagava em outra coisa, em outra matéria, de outra maneira, e tudo até há pouco me parecia ausente de sentido. Então fui para a Wikipédia – esse é meu último recurso, quando estou perdido e tenho que cumprir uma coluna. Lá na Wikipédia eu vou porque no calendário do dia eu vejo assuntos e homens públicos, batalhas, cientistas, escritores, associados ao dia pesquisado. Então fui ao dia 6 de fevereiro. Nada, quero dizer, nada para o qual eu estivesse preparado, pronto e em curto tempo, para falar alguma coisa menos trivial ou medíocre.  Então eu fui para o dia seguinte, o 7 de fevereiro. E o que descubro? Estava lá, como se estivesse à minha espera: Hélder Câmara. Estava e está lá como se aguardasse e guardasse este dia: 
Hélder Pessoa Câmara (Fortaleza, 7 de fevereiro de 1909 – Recife, 27 de agosto de 1999)...”
Então ganhei o meu assunto, o tema e a hora oportuna que eu procurava. Depois de passar o dia entre os livros de Dom Hélder, de me sentir esgotado pelas coisas que vi, e quando pensava que estava sem nada mais para falar ou escrever, Helder Câmara estava à espera. E nem preciso mais me perturbar, porque  ele é um dos verbetes do nosso Dicionário Amoroso do Recife. Meus amigos, eu não sou supersticioso, sou apenas desconfiado com os acasos que  acontecem à gente. Em resumo: a seguir, para vocês, na letra H do Dicionário Amoroso do Recife a feliz coincidência deste aniversário de Dom Hélder Câmara.          
H
Hélder Câmara
Hélder Pessoa Câmara sempre recebeu, no amor de toda a gente, o nome de Dom, como se o cargo na Igreja lhe fosse nome de batismo, como se a posição de bispo e arcebispo lhe tomasse toda a pessoa. Aliás, no Dicionário Houaiss, como uma prova indireta da sua glória, para a palavra “dom” a primeira definição é: ecles hist denominação que acompanha certos cargos eclesiásticos, inicial ger. maiúsc. (D. Hélder Câmara).
Na verdade, Dom Hélder Câmara possuía muitos dons além do título na Igreja. Nos 105 anos do seu nascimento, completados em 7 de fevereiro de 2014, muitas homenagens surgiram. Pelo tom geral que vimos, quase fazem dele uma nova Madre Teresa de Calcutá. Ainda que tenha nascido seis meses antes da santa Madre Teresa, há uma tendência de fazer de Dom Hélder uma ovelha, só mansidão e paz. Mas esta seria uma boa ocasião de rever os anos de ditadura no Brasil.
Quem foi jovem no Recife, no Brasil depois de 1964, sabe: Dom Hélder era o arcebispo vermelho, o perigoso comunista disfarçado em padre, um ilustre morto-vivo cujo nome e fotos não apareciam nos jornais, apesar de ter sido o brasileiro mais famoso no mundo, depois de Pelé. A sua prática sacerdotal, em um Recife que vinha da pedagogia de Paulo Freire, de governos socialistas, longe estava da simples pregação da caridade, ou de se mostrar superior ao povo miserável. Ao mesmo tempo, os comunistas jamais pensaram, sequer por hipótese, que o arcebispo fosse um dos seus. Havia encontros, havia diálogos entre suas políticas, com mais de um ponto de conflito.
Lembro-me de Dom Hélder Câmara em duas ocasiões. Na primeira delas, nos anos 70, a repressão política havia aprisionado vários auxiliares dele, poucos anos depois de haver assassinado o Padre Henrique, auxiliar direto do seu trabalho na Arquidiocese. Nessa ocasião, em que o vi pela primeira vez, pude notar um dom desse padre poucas vezes mencionado. Estávamos concentrados, reunidos em frente ao Palácio dos Manguinhos, para um protesto. Então Dom Hélder Câmara nos dirigiu uma fala. E vi, ouvi e notei: Dom Hélder era um orador, um excepcional orador. Franzino, baixinho, havia um cérebro de pensador na sua voz, um talento de ator que o fazia crescer com uma dicção a acentuar as palavras conforme o seu desejo. Ele fazia pausas no discurso, intervalos cujo único fim era imprimir o seu pensamento em nossos espíritos.
No discurso vivo de Dom Hélder havia uma chama calorosa, que os crentes e ele próprio diriam ser um fogo do Espírito Santo, que tomava conta do seu rosto, da sua expressão, de suas palavras. Com os olhos grados, sem gritar, ele comovia a todos, e para comover não recuava diante dos motivos mais piegas. Lembro que para falar do afeto que nos unia aos presos, da nossa comum preocupação, para ressaltar que éramos solidários, ele fez com que todos cantassem o “Como vai você?”, de Antonio Marcos, que era sucesso na voz de Roberto Carlos.  Confesso que até eu cantei, com a voz embargada, a canção.    
Da segunda vez, eu não o vi, mas pude ouvi-lo e percebê-lo, no rádio. Quem já leu suas crônicas, que em boa parte foram reunidas no livro “Um olhar sobre a cidade”, entenderá o que vou dizer. Para mim, ele escrevia textos modelares de crônica radiofônica. Nessas crônicas há um escritor, que deveria corar de vergonha muito imortal da Academia Brasileira de Letras. Nelas, Dom Hélder pega um motivo, um tema de aparência distante, e traz para o seu texto, com observações poéticas e líricas, que se aplicam ao cotidiano de todos, intelectuais ou analfabetos, ateus ou cristãos. Para todos os públicos, valeria dizer. Leiam, melhor dizendo, ouçam se puderem: “Flores murchas”.
Dom Helder pergunta: “O que fazer quando as flores murcham?”. E adiante, fere mais fino: “Uma roseira já me perguntou se eu acredito que Deus ressuscitará também as flores...”, para concluir: “Os teólogos que me perdoem, se é teologicamente sem base o que vou dizer: eu não posso imaginar um céu sem flores”.  
O que fazer quando as flores murcham? O que responder a uma roseira sozinha, que não terá um Deus a seu lado na ressurreição, porque um dia ela será murcha? Eu não posso imaginar um céu sem flores, respondia o poeta Hélder. Todos nós, leitores ateus e ouvintes, nisso também acreditamos.
*Áudio na Rádio Vermelho

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